ISSN 1806-9312  
Quarta, 30 de Outubro de 2024
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3452 - Vol. 72 / Edição 6 / Período: Novembro - Dezembro de 2006
Seção: Relato de Caso Páginas: 845 a 848
Carcinoma de células escamosas da hipofaringe em mulher jovem com anemia de Fanconi
Autor(es):
Henrique de Lins e Horta 1, Fernando Fernandes Guimarães 2, Luiz Otávio Savassi Rocha 3, Roberto Eustáquio Santos Guimarães 4, Eugênia Ribeiro Valadares 5

Palavras-chave: anemia de fanconi, carcinoma de células escamosas, hipofaringe.

Keywords: fanconi's anemia, squamous cell carcinoma, hypopharynx.

Resumo: A anemia de Fanconi é um raro distúrbio autossômico recessivo caracterizado por malformações congênitas, aplasia da medula óssea e instabilidade genômica, com predisposição ao desenvolvimento de neoplasias malignas, em especial as leucemias e os tumores do trato aerodigestivo alto. Em razão de características inerentes à síndrome em questão, o tratamento de tais neoplasias é particularmente difícil. Relata-se o caso de anemia de Fanconi uma jovem de 24 anos, que desenvolveu carcinoma de células escamosas da hipofaringe, na ausência de fatores de risco como o tabagismo e o alcoolismo, e faz-se uma revisão sumária da literatura a respeito do tema.

Abstract: Fanconi's anemia is a rare autosomal recessive disorder characterized by congenital malformation, bone marrow failure and genomic instability, with a predisposition to develop malignancies, especially the leukemias and upper aerodigestive tract tumors. Due to inherent characteristics to this syndrome, the treatment of such neoplasms is particularly difficult. In this paper we report the case of a 24-year-old woman with Fanconi's anemia who developed a squamous cell carcinoma of the hypopharynx; she had none of the traditional risk factors, such as smoking and alcohol abuse. We also briefly review the literature about this topic

INTRODUÇÃO

A anemia de Fanconi (McKusick 227650), também conhecida como pancitopenia hereditária, é uma síndrome caracterizada por distúrbios hematológicos associados a malformações congênitas, de herança autossômica recessiva, com expressão clínica variável. Entre as manifestações clínicas mais características incluem-se o atraso do crescimento, polegares hipoplásicos (ou ausentes) e rádio curto (ou ausente). Ao lado de outras afecções hereditárias como a síndrome de Bloom e a ataxia-telangiectasia, a anemia de Fanconi faz parte do grupo de síndromes marcadas pela instabilidade genômica, o que predispõe os pacientes a diferentes tipos de câncer. A instabilidade genômica manifesta-se, no estudo citogenético, como quebras e rearranjos em diferentes cromossomos.

O tratamento da anemia de Fanconi baseia-se em medidas de suporte, no uso de medicamentos (andrógenos, corticosteróides, fatores de estimulação de colônias) e, em casos selecionados, no transplante alogênico de medula óssea. A maior parte dos pacientes morre em conseqüência de complicações hematológicas ou sépticas relacionadas à pancitopenia. Por outro lado, aqueles que desenvolvem neoplasias malignas, além de não serem bons candidatos ao tratamento cirúrgico, são mais propensos aos efeitos adversos da radioterapia e da quimioterapia, de modo a dificultar ainda mais o planejamento terapêutico.

A seguir, faz-se uma revisão sumária da literatura e relata-se um caso de carcinoma de células escamosas da hipofaringe numa jovem com anemia de Fanconi.

REVISÃO DA LITERATURA

Inicialmente descrita em 1927, a anemia de Fanconi é um raro distúrbio autossômico recessivo, genotípica e fenotipicamente heterogêneo, caracterizado por anemia aplásica constitucional, malformações congênitas, instabilidade cromossômica e predisposição ao desenvolvimento de neoplasias.1,2 As manifestações clínicas são bastante variadas e incluem: retardo no crescimento e na maturação sexual, baixa estatura, anormalidades esqueléticas (rádio e polegar), aplasia de medula óssea, manchas café-com-leite e malformações cardíacas e renais. O diagnóstico é feito por meio de estudo citogenético, que demonstra uma maior tendência à ruptura cromossômica por agentes alquilantes como a mitomicina C e o diepoxibutano.

A base genética da anemia de Fanconi é tão complexa quanto a grande variação na apresentação clínica. Pelo menos oito subtipos (A, B, C, D1, D2, E, F e G), cada qual com um defeito genético distinto, já foram identificados. A patogênese está relacionada a uma falha nos mecanismos de reparo do DNA, com o conseqüente acúmulo de uma grande quantidade de mutações. Estudos recentes sugerem que os genes da anemia de Fanconi, assim como os genes BRCA1 e BRCA2, atuam numa via final comum, que se relaciona com o reparo do DNA.3

Em virtude da incapacidade de manter a integridade genômica, observa-se um alto grau de instabilidade cromossômica. Os pacientes possuem um risco aumentado de desenvolver neoplasias, que se acentua com o aumento da expectativa de vida.4 O tipo mais prevalente é a leucemia (principalmente mielóide aguda), seguindo-se, em ordem decrescente, os carcinomas de células escamosas (trato aerodigestivo alto, ânus, genitália e pele) e as neoplasias hepáticas, cerebrais e renais.5 As neoplasias manifestam-se em geral por volta dos 16 anos, não sendo incomum, com o avançar da idade, o aparecimento de outros tumores na mesma pessoa.6 Ademais, relatam-se casos em que o diagnóstico do câncer precedeu o diagnóstico da síndrome.

O tratamento dos tumores sólidos associados à anemia de Fanconi deve ser preferencialmente cirúrgico, mesmo com um risco operatório aumentado em decorrência da aplasia de medula óssea.7 Os carcinomas epidermóides de cabeça e pescoço costumam ser biologicamente mais agressivos, de modo a exigir uma terapia adjuvante. No entanto, por causa dos defeitos nos mecanismos de reparo do DNA, os pacientes são muito suscetíveis aos efeitos colaterais da radioterapia e quimioterapia, em especial a mielossupressão. Mesmo assim essas modalidades terapêuticas devem ser consideradas quando a intervenção cirúrgica for contra-indicada. Nesses casos, recomenda-se o uso de doses menores que as habituais, regimes individualizados (que não incluam agentes alquilantes ou cisplatina) e o uso de agentes radioprotetores como a amifostina.8-10

RELATO DO CASO

Trata-se de uma mulher de 24 anos, de cor parda, solteira, estudante, que, após receber, aos 12 anos, o diagnóstico de anemia de Fanconi, passou a fazer uso regular de medroxiprogesterona e oximetolona. Havia mais dois casos diagnosticados na família: uma irmã de 21 anos e um irmão que faleceu aos 15 anos em conseqüência de leucemia. Havia, também, história de consangüinidade entre os pais.

A paciente, que não era etilista nem tabagista, foi internada em um hospital universitário por causa de rouquidão, disfagia, odinofagia e perda ponderal, de caráter progressivo, de seis meses de evolução. O exame clínico inicial evidenciou hipodesenvolvimento ponderal (peso= 28,7 kg) e estatural (altura= 1,32 m), manchas café-com-leite no tronco e desnutrição. O hemograma demonstrou pancitopenia acentuada: hemoglobina 5,9 g/dl, leucócitos 800/mm3 e plaquetas 29.100/mm3. A videolaringoscopia revelou lesão vegetante e ulcerada localizada, em sua maior extensão, no seio piriforme esquerdo, com invasão do esôfago proximal (Figura 1). Uma tomografia computadorizada da região cervical mostrou, na região da hipofaringe, massa com densidade de partes moles acometendo o seio piriforme esquerdo e estendendo-se desde as pregas ariepiglóticas até o nível das cartilagens aritenóides, com provável espessamento parietal concêntrico, segmentar, do esôfago cervical. Não se observaram linfonodomegalias (Figura 2). A biópsia da lesão revelou carcinoma de células escamosas, invasor e ulcerado, moderadamente diferenciado.


Figura 1. Aspecto do tumor à videolaringoscopia: lesão vegetante acometendo, em sua maior extensão, o seio piriforme esquerdo.


Figura 2. Tomografia computadorizada da região cervical, corte axial: massa na região do seio piriforme esquerdo.


Durante a internação, a paciente apresentou vários episódios de febre na vigência de neutropenia, o que motivou a prescrição de diversos antimicrobianos em associação (ceftazidima, amicacina, imipenem, vancomicina, anfotericina B e fluconazol).

A possibilidade de tratamento cirúrgico (faringoesofagectomia total com interposição de tubo gástrico retroesternal, esvaziamento cervical bilateral, tireoidectomia parcial e radioterapia pós-operatória) foi descartada em virtude das precárias condições clínicas e de recusa da paciente. A quimioterapia foi contra-indicada pela Clínica Oncológica, que recomendou radioterapia paliativa.

Coincidindo com a radioterapia houve recrudescimento da disfagia e da odinofagia, bem como reaparecimento da febre, o que motivou a sua interrupção (dose total de radiação recebida: 19,8 Gy). A paciente desenvolveu processo pneumônico em vigência de grave neutropenia (leucócitos 100/mm3), vindo a falecer apesar do tratamento antimicrobiano instituído.

DISCUSSÃO

Em expressiva porcentagem dos casos, os carcinomas de células escamosas da hipofaringe estão intimamente relacionados ao uso do tabaco e do álcool, acometendo em geral pessoas acima dos 60 anos, com predomínio do sexo masculino.11 No caso ora relatado - uma jovem de 24 anos, sem história de etilismo ou tabagismo -, somente a concomitância de um outro fator predisponente como a anemia de Fanconi poderia explicar o surgimento desse tipo de neoplasia. A propósito, num estudo em que se avaliaram 754 pacientes acometidos pela síndrome, observou-se, em relação à população geral, um aumento de aproximadamente 500 vezes da incidência de tumores da cabeça e do pescoço, com nítido predomínio do sexo feminino (2:1) e uma idade média, quando do diagnóstico, de apenas 31 anos.12

COMENTÁRIOS FINAIS

Tendo em vista a grande variação da apresentação clínica, o pequeno número de casos registrados na literatura e a elevada morbidade das diferentes formas de tratamento, reveste-se de grande dificuldade a abordagem das neoplasias de cabeça e pescoço associadas à anemia de Fanconi. Por conseguinte, todo esforço deve ser feito no sentido de sua detecção precoce, por meio de exame médico periódico que deve incluir, obrigatoriamente, uma cuidadosa avaliação otorrinolaringológica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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11. Vieira MBM. Tumores da hipofaringe. In: Campos CAH, Costa HOO, eds. Tratado de Otorrinolaringologia. Vol. 4: Cabeça e pescoço - Laringologia e voz. São Paulo: Roca; 2002. p.78-88.

12. Kutler DI, Auerbach AD, Satagopan J, Giampietro PF, Batish SD, Huvos AG, et al. High incidence of head and neck squamous cell carcinoma in patients with Fanconi anemia. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 2003;129:106-12.




1 Médico Residente de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
2 Médico Residente de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
3 Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
4 Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
5 Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG / Doutora em Genética.
Endereço para correspondência: Rua Montes Claros 1124/102 - Anchieta Belo Horizonte MG 30310-370.
Tel. (0xx31) 3225-7733 /99686001 - E-mail: henriquelinshorta@yahoo.com.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 11 de junho de 2006. cod. 2109.
Artigo aceito em 2 de agostos de 2006.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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