ISSN 1806-9312  
Quarta, 30 de Outubro de 2024
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3447 - Vol. 72 / Edição 6 / Período: Novembro - Dezembro de 2006
Seção: Artigo Original Páginas: 811 a 816
Percepção auditiva em síndrome de Alport
Autor(es):
Carla Mherlyn Viveiros 1, Liliane Desgualdo Pereira 2, Gianna Mastroianni Kirsztajn 3

Palavras-chave: emissões otoacústicas, estimulação acústica, nefrite hereditária, percepção auditiva.

Keywords: otoacoustic emissions, acoustic stimulation, hereditary nephritis, auditory perception.

Resumo: A síndrome de Alport é caracterizada por comprometimentos auditivos, renal, e visual. Objetivo deste estudo é caracterizar as EOAT e a atividade do SOEM (efeito de supressão) em indivíduos com Síndrome de Alport. Material e Método: Foram avaliados dez indivíduos com diagnóstico de síndrome de Alport. Foi realizado estudo prospectivo. Foi realizado registro das EOAT na ausência e na presença de estimulação acústica contralateral com a utilização do programa de computador ILO 92 - Otodynamics. Resultados: As amplitudes de resposta das EOAT foram presentes para a resposta global (A) e por faixa de freqüência em 1000, 1500, 2000 e 3000 Hz, em 4 (40%) dos indivíduos e ausentes em 6 (60%) dos indivíduos com perda auditiva. Foram ausentes as respostas na freqüência de 4000 Hz, nas orelhas direita e esquerda. Esses achados são compatíveis com o nível de audição (em dBNA) avaliados. Os indivíduos com resposta global presente em EOAT apresentaram supressão dessa resposta na presença de ruído. Conclusão: Indivíduos com síndrome de Alport apresentam resultados de EOAT compatíveis com a perda auditiva. Ocorreu o efeito de supressão, sugerindo que a perda auditiva é predominantemente originada por uma disfunção coclear.

Abstract: Alport's Syndrome is characterized by the presence of renal, hearing and visual disorders. Objective: To characterize the TOAE and the MOES activity (suppression effect) in individuals with Alport's Syndrome. Material and Method: This is a prospective study of a sample included ten individuals with a diagnosis of Alport's Syndrome. MOES recording was made in the presence and absence of contralateral stimulation (CLS) stimulation using the computer software ILO 92 - Otodynamics. Results: TOAE was present in the global response (A) and in frequency ranges of 1000, 1500, 2000 and 3000 Hz in 4 individuals (40%), and absent in 6 individuals (60%) with hearing loss. We observed no responses at 4000 Hz in the right and left ears. Individuals that presented global responses to TOAE also suppressed that response when there was noise. Conclusion: The suppression effect also occurs with TOAE, suggesting that the hearing loss is predominantly the result of cochlear dysfunction.

INTRODUÇÃO

A audição é importante para a comunicação do ser humano no meio ambiente em que este está inserido. A audição torna possível receber e interpretar as informações sonoras do meio externo, permitindo o desenvolvimento da linguagem, o aprendizado e a transmissão de suas idéias por meio da comunicação oral e/ou escrita. Quando a audição falha, pode haver interferência na sua relação com o mundo de sons.

Uma das síndromes genéticas que apresenta surdez associada às suas diferentes manifestações é a Síndrome de Alport. Trata-se de uma síndrome caracterizada por apresentar comprometimentos renal, auditivo e visual1,13.

A nefrite é a alteração mais comum1. Tem início em geral na adolescência, com proteinúria e/ou hematúria intermitentes, com curso progressivo para insuficiência renal. Embora a herança ligada ao X seja predominante (80% dos casos), o modo de transmissão é heterogêneo; quando a herança é ligada ao X, os indivíduos do sexo masculino são acometidos com maior freqüência e gravidade; a idade de aparecimento da insuficiência renal e do comprometimento auditivo é variável; na mesma família são esperados fenótipos semelhantes. Segue-se por ordem de freqüência as formas de herança autossômica dominante e autossômica recessiva.

A alteração poderia residir em um gene estrutural em um lócus responsável pela composição da membrana basal glomerular, do ouvido e da cápsula ótica. Este mesmo lócus determinaria a composição colágena da membrana basal nos citados órgãos. Em 1982, determinou-se que a doença ocorre por erro genético no qual determinadas estruturas da membrana basal glomerular não são formadas (a membrana basal permanece numa condição fetal). Desta forma, parece ocorrer uma mutação gênica que levaria à produção alterada do colágeno do tipo IV, componente essencial da membrana basal de diversos órgãos.

As alterações oftalmológicas estão presentes em 15% dos indivíduos. Dentre as alterações no cristalino, a mais comum é a presença do lenticone anterior, caracterizado na avaliação médica como apresentando um aspecto semelhante à gota de óleo na água.

A surdez neurossensorial é tipicamente bilateral, simétrica e progressiva, instalando-se principalmente na adolescência em 60% dos homens afetados e 40% das mulheres com a síndrome7.

Em 1963, Gregg, Becker8 realizaram estudos histopatológicos que mostraram evidências de degeneração da estria vascular e das células ciliadas, especialmente na porção basal da cóclea, e ausência da membrana tectorial.

Este trabalho surgiu mediante o fato de não termos encontramos na literatura especializada trabalhos que mostrem como são as Emissões Otoacústicas Transitórias (EOAT) e a atividade do Sistema Olivococlear Eferente Medial (SOEM) dos indivíduos portadores de síndrome de Alport.

Sendo assim, o objetivo do presente estudo é verificar a presença das EOAT e a atividade do SOEM (efeito de supressão) em indivíduos com Síndrome de Alport.

MATERIAL E MÉTODO

Este trabalho foi realizado na linha de pesquisa em Processamento Auditivo Central do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Fereral de São Paulo, aprovado pelo comitê de ética desta instituição, protocolo n° 0240/03.

O grupo estudado foi constituído por indivíduos com diagnóstico de síndrome de Alport já estabelecido. A síndrome de Alport foi diagnosticada pela presença das alterações histológicas, características ao exame de microscopia eletrônica da biópsia renal, pela coexistência de alterações histológicas renais e acometimento auditivo e/ou ocular compatíveis característicos da síndrome.

A amostra foi constituída por dez indivíduos portadores de síndrome de Alport, com idade entre 13 e 54 anos, sendo nove do sexo masculino e um do sexo feminino. Estes indivíduos possuíam diagnóstico médico pré-estabelecido, otoscopia normal e timpanometria com curva do tipo A, bilateral. Os indivíduos não poderiam ser portadores de outras doenças que não as citadas e/ou apresentarem evidências de comprometimento intelectual, motor ou outros que não aqueles especificamente selecionados para a formação da amostra.

Foi realizada uma anamnese detalhada enfatizando-se as maiores dificuldades encontradas pelos indivíduos em relação à audição. Posteriormente, foram realizados os seguintes exames: audiometria tonal limiar, logoaudiometria, composta de Limiar de Reconhecimento de Fala (SRT) e Índice Percentual de Reconhecimento de Fala (IPRF), medidas de imitância acústica (timpanometria e limiares do reflexo acústico) e Emissão Otoacústica Transitória (EOAT) na ausência e na presença de estimulação acústica contralateral.

A Audiometria Tonal Liminar, o SRT e o IPRF foram realizados com a utilização do audiômetro MA-41 da marca MAICO. Mostramos no Quadro 1 a descrição dessas medidas por freqüência sonora.



As medidas de imitância acústica (timpanometria e limiares do reflexo acústico contralateral) foram realizadas com a utilização do aparelho AZ-7 da marca Interacoustic.

As Emissões Otoacústicas Evocadas Transitórias, na ausência e presença de estimulação acústica contralateral, permitiram avaliar o funcionamento das células ciliadas externas (orelha interna). A estimulação acústica contralateral utilizada foi o ruído branco contínuo transmitido pelo audiômetro MAICO 17 padrão ANSI-69, por meio do fone TDH-39 coxim MX 41. O registro foi realizado de acordo com o programa de computador denominado ILO 92 - Otodynamics. Foi realizado primeiro o registro das emissões otoacústicas evocadas transitórias, na ausência. E posteriormente na presença de ruído branco contralateral, na intensidade de 50 dB NPS. Para obtenção do valor do efeito de supressão das EOAT, realizamos a diferença entre os valores médios da resposta global (A) na ausência e na presença de estimulação acústica contralateral. Em seguida, analisamos a influência deste ruído, por meio da verificação da diminuição ou não da amplitude das respostas no registro das emissões otoacústicas evocadas transitórias.

Para este trabalho, foram utilizados os seguintes testes estatísticos não-paramétricos: o Teste de Wilcoxon, o Teste de Kruskal-Wallis e o Teste de Mann-Whitney. Utilizou-se, nas comparações estatísticas, um nível de significância de 0,10 (10%). Além dos testes não-paramétricos, realizamos uma técnica que complementa uma análise descritiva, o Intervalo de Confiança (95% de confiança estatística, 0,05 ou 5%).

RESULTADOS

Estudamos os resultados da presença ou ausência para EOAT (em dB) sem e com estimulação acústica contralateral, para resposta global (A) e por faixa de freqüência (1000, 15000, 2000, 3000 e 4000 Hz), e a ocorrência do efeito de supressão (em dB), por orelha direita e esquerda em dez indivíduos com síndrome de Alport. Verificamos que quatro (40%) indivíduos apresentaram presença de amplitude de resposta das EOAT e seis (60%) mostraram ausência de amplitude de resposta das EOAT (Tabela 1).



Sendo assim, analisamos o efeito de supressão apenas nos indivíduos que apresentaram amplitude de resposta das EOAT presentes.

Verificamos que, para os valores médios de amplitude de resposta das EOAT sem estimulação acústica contralateral, não existe diferença média estatisticamente significante entre as orelhas direita e esquerda, nos indivíduos portadores de síndrome de Alport. A amplitude de resposta das EOAT sem estimulação acústica contralateral foi presente na resposta global (A) e nas freqüências de 1000, 1500, 2000 e 3000 Hz (Tabela 2). Na freqüência de 4000 Hz, observamos ausência de amplitude das EOAT.



As medidas descritivas das EOAT sem estimulação acústica contralateral mostraram respostas presentes para a resposta global (A) e por faixa de freqüências em 1000, 1500, 2000 e 3000 Hz, com exceção da freqüência de 4000 Hz (Tabela 3).

Vimos que para a amplitude de resposta das EOAT com estimulação acústica contralateral, não existiu diferença entre as orelhas que possa ser estatisticamente significante na amplitude de respostas das EOAT com estimulação acústica contralateral. A amplitude de resposta das EOAT com estimulação acústica contralateral foi presente na resposta global (A) e nas freqüências de 1000, 1500, 2000 e 3000 Hz, com exceção da freqüência de 4000 Hz (Tabela 4).

Na análise das medidas descritivas das EOAT com estimulação acústica contralateral verificamos que a resposta global (A) e por faixa de freqüências em 1000, 1500, 2000 e 3000 Hz foi presente, com exceção da freqüência de 4000 Hz (Tabela 5).



O efeito de supressão é caracterizado por uma redução na amplitude de resposta das EOAT na presença de estimulação acústica contralateral. Neste estudo, observamos o efeito de supressão, por meio da diferença entre os valores de amplitude de resposta das EOAT na ausência e na presença de estimulação acústica contralateral. Essa diferença foi interpretada como presença de efeito de supressão quando foi positiva, e como ausência de efeito de supressão quando foi negativa ou nula. Além disso, consideramos presença de supressão em indivíduos com síndrome de Alport, para valores médios desde 0,1 dB, pois foi o menor valor registrado dentre os estudos compulsados da literatura especializada, em indivíduos audiologicamente normais17,14,10, com idades semelhantes às do nosso estudo.

Sendo assim, dos quatro indivíduos que apresentaram amplitude de resposta das EOAT presentes, em três indivíduos observamos presença do efeito de supressão bilateralmente, e em um indivíduo, apenas a orelha esquerda apresentou presença do efeito de supressão (Tabela 6).



Para os indivíduos portadores de síndrome de Alport, que apresentaram amplitude de resposta das EOAT presentes, encontramos valor médio de supressão de 0,31 dB.

Constatamos também respostas ausentes na faixa de freqüência de 4000 Hz para a amplitude de resposta das EOAT, tanto na ausência quanto na presença de estimulação acústica contralateral.

DISCUSSÃO

As repostas das orelhas direita e esquerda nas condições sem e com estimulação acústica contralateral foram estatisticamente semelhantes. Portanto, com base nestes achados podemos inferir que quando ocorre presença de resposta das EOAT, há um adequado funcionamento coclear global, especificamente associado a células ciliadas externas, nos indivíduos com síndrome de Alport. Este fato está baseado no relato de Kemp (1978)11, no qual a resposta das EOA tem sua origem, localizada na cóclea, mais especificamente nas células ciliadas externas, que respondem mecanicamente à estimulação auditiva dependente do funcionamento normal do processo de transdução coclear.

Neste estudo, os indivíduos com síndrome de Alport com resposta presente de EOAT apresentaram valores médios de amplitudes de resposta entre 12 e 16 dB e estão na faixa de variação de respostas de indivíduos adultos e idosos normais18,9,12,6,16,4. Ainda, o declínio em 4000 Hz também está de acordo com os achados de Fenimam, 19936 e de Sansone, 200016.

Desta forma, podemos inferir que na Síndrome de Alport a presença de EOAT ocorre compatível com a perda auditiva.

O Sistema Olivococlear Eferente Medial (SOEM) é responsável por manter a membrana basilar na posição optimal para transdução, propiciar o controle automático de ganho das células ciliadas externas, atuar como sistema de proteção contra ruídos intensos e na atenção seletiva.

Por meio do efeito de supressão das EOAT, podemos verificar a atividade do SOEM. A realização das EOAT sem e com ruído contralateral respectivamente nos permite verificar o funcionamento das células ciliadas externas e a atividade do SOEM e com isso realizar um diagnóstico diferencial entre alterações auditivas coclear e retrococleares.

Neste estudo, no grupo de indivíduos com síndrome de Alport e presença de EOAT encontramos valor médio de efeito de supressão de 0,31 dB, semelhantes aos de adultos otologicamente normais3,10,19,17,14, e inferiores aos valores médios encontrados nos estudos em recém-nascidos a termo15,5,20, sem risco para alteração auditiva.

A presença de supressão indica que, quando ativado, o SOEM inibe as contrações das células ciliadas externas, provocando a diminuição da amplitude das EOAT em indivíduos otologicamente normais. Esta diminuição é a medida da atividade do SOEM. Portanto, podemos inferir que o funcionamento do SOEM foi adequado nestes indivíduos portadores de síndrome de Alport, afastando a possibilidade de alguma alteração retrococlear.

CONCLUSÕES

Indivíduos com síndrome de Alport apresentam resultados de EOAT compatíveis com a perda auditiva. Na presença de EOAT também ocorre o efeito de supressão sugerindo que a perda auditiva é predominantemente de origem de uma disfunção coclear.

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1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação dos Distúrbios da Comunicação Humana: Campo Fonoaudiológico. UNIFESP. EPM. Professor.
2 Professora Adjunto Doutora do Departamento de Fonoaudiologia da UNIFESP/EPM.
3 Professora Afiliada Doutora da Disciplina de Nefrologia da UNIFESP/EPM.
Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista De Medicina (Unifesp-EPM).
Endereço para correspondência: Carla Mherlyn Viveiros - Rua Irmãos Vieira 221 Bloco D apto. 204 Bairro Campinas São José SC 88101-290.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 17 de maio de 2006. cod. 1937.
Artigo aceito em 8 de julho de 2006.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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