INTRODUÇÃOA tríade sintomática composta por zumbido, perda auditiva e vertigem, em episódios paroxísticos, foi descrita por Prosper Ménière em 1861, junto à Academia Imperial de Medicina de Paris (Memoire sur des de l'oreille interne donnant lieu a des symptomes de congestion cerebrale apoplectiforme), a partir de um um grupo de pacientes diagnosticados como portadores de "congestão cerebral apoplectiforme"1. Pela primeira vez, sugeriu que o sistema auditivo era repentinamente afetado, com o surgimento de zumbido e diminuição da audição, e, sendo a orelha interna o local acometido, o aparecimento de vertigem, tontura e desequilíbrio, acompanhados por náusea, vômito e síncope, poderia ser explicado sem que houvesse envolvimento do sistema nervoso central.
Em 1874, Charcot2 denominou tal alteração como "Doença de Ménière". Depois das descrições histopatológicas de Hallpike e Cairns em 19383, a doença de Ménière é atualmente reconhecida como a expressão clínica de uma síndrome idiopática de hidropisia endolinfática.
A constatação definitiva da alteração fisiopatológica que caracteriza a doença só pode ser comprovada por estudo anatomopatológico de ossos temporais (post morten) e, portanto, o seu diagnóstico deve ser baseado em critérios clínicos bem definidos. Segundo o Comitê de Audição e Equilíbrio da Academia Americana de Otorrinolaringologia4, em 1995, a presença de hidropisia endolinfática pode ser inferida a partir da ocorrência de episódios espontâneos e recorrentes de vertigem, com duração mínima de 20 minutos, acompanhados por náusea, ânsia e/ou vômito, sem perda da consciência, com nistagmo horizonto-rotatório sempre presente, associados à perda de audição, plenitude aural e zumbido, no lado afetado.
A vertigem postural paroxística benigna (VPPB) caracteriza-se por episódios paroxísticos de vertigens súbitas e fugazes que surgem quando a cabeça do paciente é colocada em uma determinada posição. É uma condição que pode aparecer isoladamente ou associar-se a outras doenças labirínticas, normalmente desencadeando e/ou exarcebando uma crise vertiginosa5. O diagnóstico da VPPB baseia-se na história clínica e no exame físico, uma vez que a vertigem e o nistagmo podem ser reproduzidos no consultório ao movimentar-se a cabeça do paciente para a posição de Hallpike. O nistagmo aparece sempre após um período de latência de aproximadamente 5 segundos, sendo normalmente rotatório ou horizonto-rotatório, fatigável e revertendo de direção quando o paciente reassume a posição ortostática, quando do acometimento dos canais semicirculares posteriores; sendo horizontal quando do acometimento dos canais semicirculares laterais; e sendo vertical e inferior quando do acometimento dos canais semicirculares superiores.
A vertigem postural associada à doença de Ménière já vem sendo descrita na literatura2,5,6,7,8,9. Paparella10, em 1984, já acreditava que a hidropisia na parte anterior do labirinto, ou seja, no ducto coclear e sáculo, era o achado fisiológico mais importante na doença de Ménière. Segundo este autor, na maioria dos casos havia uma ruptura na membrana de Reissner e o sáculo poderia se distender até os limites dos canais semi-circulares. O sáculo distendido serviria como reservatório de endolinfa e, esta distensão, por sua vez, poderia gerar a vertigem, inclusive a vertigem posicional. Outra possibilidade seria a ocorrência de alterações da composição da endolinfa, especialmente pela contaminação entre a endolinfa e a perilinfa, favorecendo a formação de sedimento endolinfático que determinaria o aparecimento da vertigem postural9,11,12.
Além disso, a própria hidropsia poderia causar lesão na mácula utricular, causando deslocamento das otocônias.
OBJETIVOAvaliar a presença de vertigem posicional em pacientes com doença de Ménière por meio da pesquisa de nistagmo de posicionamento.
METODOLOGIAForam avaliados 44 pacientes, sendo 35 do sexo feminino (idade entre 21 e 72 anos, com idade média de 46,7 anos) e 9 do masculino (idade entre 27 e 61 anos, com idade média de 45,2 anos) com idade média geral de 46,4 anos. O diagnóstico definitivo de Doença de Ménière foi realizado em período intercrítico, segundo os critérios clínicos e audiométricos elaborados no consenso de 1995 da Academia Americana de Otorrinolaringologia4: dois ou mais episódios de vertigem com duração de 20 minutos ou mais, perda auditiva audiometricamente documentada em pelo menos uma ocasião, zumbidos ou sensação de pressão no ouvido afetado.
Todos os pacientes foram avaliados no Ambulatório de Otoneurologia da UNIFESP-EPM e submetidos a anamnese, otoscopia, audiometria tonal e vocal, imitanciometria e exame vestibular computadorizado13 (VEC-WIN/Neurograff). Além do diagnóstico clínico e estadiamento da doença, a presença de hipertensão endolinfática foi comprovada pela eletrococleografia (Echog) cujo critério de inclusão foi uma relação SP/AP superior a 30%. A pesquisa de nistagmo de posicionamento foi realizada por meio da manobra de Brandt-Daroff com utilização das lentes de Frenzel -13 dioptrias. O exame foi considerado alterado pela presença de nistagmo e/ou vertigem posicionais.
RESULTADOSDos 44 pacientes avaliados, 14 (31,8%) não apresentaram alterações à prova de pesquisa do nistagmo de posicionamento e 30 (68,2%) apresentaram alterações, sendo 23 (52,2%) apenas vertigem e 7 (16%) vertigem e nistagmo. Dos pacientes com alteração da prova, 6 (20%) eram do sexo masculino e 24 (80%) do sexo feminino. Nenhuma diferença foi observada quanto a incidência entre vertigem e vertigem + nistagmo em relação ao sexo (Tabela 1).
DISCUSSÃOA concomitância ou associação de VPPB com a doença de Ménière tem sido descrita por diversos autores. Hughes, Proctor11 avaliaram 781 pacientes com queixa de vertigem postural. Desses, 151 (19,3%) apresentaram nistagmo posicional e foram diagnosticados como portadores de VPPB. A presença de doenças coexistentes ou associadas à VPPB foi observada em 99 pacientes (65,6%), sendo que em 45 (45,4%) a associação era com a doença de Ménière. Observaram que a instalação da doença de Ménière precedia a VPPB na maioria das vezes. A origem periférica das duas doenças e a possível liberação de otocônias por lesão do utrículo pela hidropisia e hipertensão endolinfática seriam possíveis explicações para o fato.
Gross et al.9 avaliaram 9 pacientes com diagnóstico de doença de Ménière e VPPB concomitantes. Os sintomas da doença de Ménière eram anteriores ao aparecimento da VPPB em todos pacientes. Um paciente apresentava VPPB bilateral e Ménière unilateral. Os pacientes que apresentaram VPPB "intratável" foram submetidos a reposicionamento de otólitos com as manobras de Epley, sem sucesso satisfatório. A partir da análise desses dados, os autores hipotetizaram que alterações do balanço hídrico induzidas na mácula utrícular e sacular e uma eventual obstrução parcial do labirinto membranoso poderiam ser mecanismos envolvidos na coexistência das duas doenças.
Karlberg et al.12 avaliaram, por intermédio de estudo retrospectivo, 2847 pacientes com VPPB. Destes, 0,6% (n=16) sofriam de doença de Ménière, 0,8% (n=24) de vestibulopatia periférica aguda unilateral, 0,7% (n=21) de vestibulopatia periférica crônica bilateral, 0,4% (n=12) de vestibulopatia periférica crônica unilateral, 0,3% (n=8) de perda auditiva neurossensorial e o restante 97,2% (n=2766) apenas VPPB. No caso da doença de Ménière, aventaram a possibilidade da hidropisia endolinfática afetar o utrículo, resultando na perda das otocônias, provocando a VPPB secundária.
A alta prevalência de alterações encontradas na pesquisa do nistagmo de posicionamento, neste trabalho (prevalência de 68,1% de vertigem e/ou nistagmo posturais) são concordantes aos achados de Paparella10, Cruz, Cruz Filho7, Wexler et al.14, Haid et al.7, Mizukoshi et al.15 e Gross et al.9. Ressalta-se ainda que neste estudo não só a presença do nistagmo ocorrido isoladamente em 16% dos pacientes estudados foi valorizada, mas também a ocorrência de vertigem sem nistagmo, observada em 52,2% dos pacientes, considerada também como alteração na pesquisa do nistagmo de posicionamento.
Tabela 1. Prevalência de achados à pesquisa do nistagmo de posicionamento em pacientes com doença de Ménière segundo sexo
CONCLUSÕES§ A ocorrência de alterações na pesquisa do nistagmo de posicionamento nos pacientes portadores de doença de Ménière estudados é relevante.
§ Não houve diferenças significativas na prevalência de alterações na pesquisa do nistagmo de posicionamento em relação ao sexo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Meniérè P. Memoire sur des lesions de l'oreille interne donnant lieu a des symptomes de congestion cerebrale apoplectiforme. Gazette Medicale de Paris 1861,16:597-601.
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4. Comitê em Audição e Equilíbrio da Academia Americana de Otorrinolaringologia.Guidelines for the diagnosis and evaluation of therapy in Ménière's disease. Otolaryng. Head Neck Surg 1995;113:181-85.
5. Ganança MM, Caovilla HH, Ganança FF, Ganança CF, Munhoz MSL, Silva MLG.Vertigem posicional paroxística benigna pós-doença de Ménière. In: Munhoz MSL, Ganança MM, Caovilla HH, Silva MLG Casos clínicos otoneurológicos típicos e atípicos. Rio de Janeiro: Atheneu; 2001. p.199-201.
6. Friberg U, Stahle J, Svedberg, A. The natural course of Ménière's disease. Acta Otolaryngol (Stockh) 1984;406 Suppl:72-7.
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11. Hughes CA, Proctor l. Benign paroxysmal positional vertigo. Larryngoscope 1997;107:607-613.
12. Karlberg M, Hall K, Quickert N, Hinson J, Halmagyi M. What inner ear diseases cause benign paroxysmal positional vertigo? Acta Otolaryngol 2000;120:380-385.
13. Ganança CF, Souza JAC, Segantin LA, Caovilla HH, Ganança MM. Limites normais dos parâmetros de avaliação da Vectonistagmografia Digital Neurograff. Acta Awho 2000;19(2):105.
14. Wexler DB, Harker LA, Voots RJ, McCabe BF. Monothermal differential caloric testing in patients with Ménière's disease. Laryngoscope 1991;101:50-5.
15. Mizukoshi K, Watanabe Y, Shojaku H, Matsunaga T, Tokumasu K. Preliminary guidelines for reporting treatment results in Ménière's disease conducted by the Committee of the Japanese Society for Equilibrium Research 1993. Acta Otolaryngol (Stockh) 1995;519 Suppl:211-15.
Fonoaudióloga mestre pela Disciplina de Otorrinolaringologia/Ciências Otorrinolaringológicas UNIFESP-EPM.
Médica otorrinolaringologista mestranda pela Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço UNIFESP-EPM.
Fonoaudióloga mestranda pela Disciplina de Otorrinolaringologia/Ciências Otorrinolaringológicas UNIFESP-EPM.
Professor afiliado da Disciplina de Otoneurologia da UNIFESP-EPM.
Professor convidado da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica da UNIFESP-EPM.
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