INTRODUÇÃOO transplante de Medula Óssea (TMO) é utilizado como tratamento de doenças malignas e não-malignas hematológicas, imunodeficiências e tumores sólidos.1 Apesar do aprimoramento das técnicas e das drogas utilizadas nos transplantes atuais, o transplantado de medula óssea predispõe-se a múltiplas infecções das vias aéreas superiores e suas complicações, durante os dois primeiros anos subseqüentes ao transplante2,3. A imunossupressão, a radioterapia, a quimioterapia, a antibioticoterapia, a doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH) e as infecções virais são descritos como fatores predisponentes para estas infecções e complicações2-5, embora o exato valor preditivo ainda não esteja definido.
Sabe-se que as rinossinusites aguda e crônica são freqüentes em pacientes transplantados e imunodeficientes, principalmente nos TMO alogênicos, cujos doadores podem ser aparentados ou não1. Embora com baixa incidência (1,7%), a rinossinusite fúngica invasiva é a doença da via aérea superior mais temida por ter evolução geralmente fatal5-7. As rinossinusites bacterianas, entretanto, ocorrem com muito maior freqüência e recorrência nestes transplantados, tornando o seu tratamento um desafio. O retardo no diagnóstico e tratamento destas rinossinusites pode ocasionar numa complicação fatal ou insucesso do TMO.
O tratamento das rinossinusites recorrentes ou crônicas bacterianas no TMO difere dos pacientes imunocompetentes, pois vários fatores contribuem para manutenção de alterações em mucosa nasossinusal e imunidade. Dentre estes fatores, como acima citados, a Doença do Enxerto contra o Hospedeiro (DECH) crônica parece ter um papel importante. Sabe-se que a DECH crônica ocorre após aproximadamente três meses do TMO em cerca de 30% dos pacientes, quando a imunidade destes reage favoravelmente. Há um acometimento de mucosas respiratórias e gastrointestinal, entre outros órgãos, através de uma reação dos linfócitos T contra antígenos de classe II destas células mucosas, levando a uma inflamação local. A DECH crônica pode ser classificada em formas limitada ou extensa, dependendo do número de órgãos acometidos. Quanto melhor a imunidade do paciente, maior a reação inflamatória em mucosas. Por isso, os pacientes que desenvolvem a DECH crônica são medicados com imunossupressores para controle desta reação, o que mantém uma imunidade limítrofe.
Conforme os Consensos Americanos e Latino-americanos de Rinossinusites, deve-se tratar as rinossinusites agudas com antibióticos, basicamente; e as crônicas, com medicações antiinflamatórias, anti-alérgicas, descongestionantes ou até cirurgias endonasais dependendo do fator de manutenção desta doença. No TMO, o tratamento preconizado é antibioticoterapia de amplo espectro devido à imunossupressão. Porém, deve-se considerar os fatores locais como o edema severo de mucosa devido à inflamação que a DECH crônica ocasiona. Nesses casos, talvez a abordagem cirúrgica seja útil.
Este trabalho objetiva verificar a freqüência das rinossinusites após o transplante de medula óssea, e secundariamente, verificar associação entre a rinossinusite e a doença do enxerto contra hospedeiro crônica, além da necessidade de cirurgia para tratamento da rinossinusite no TMO.
MATERIAL E MÉTODOTrata-se de um estudo prospectivo realizado entre setembro de 2001 e junho de 2003, no Ambulatório de Otorrinolaringologia e Hemocentro do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas. Obteve-se a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da FCM UNICAMP e consentimento informado de todos os pacientes participantes.
Foram avaliados 59 pacientes com doença hematológica e indicação de TMO. Os pacientes foram divididos em dois grupos. O grupo I, com 35 pacientes, foi avaliado e acompanhado antes e após o TMO. O grupo II, com 24 pacientes, foi avaliado somente após o TMO.
A avaliação seguiu um protocolo preestabelecido que consistia de anamnese otorrinolaringológica, exame físico otorrinolaringológico (otoscopia, rinoscopia, oroscopia, palpação cervical), endoscopia nasossinusal, tomografia computadorizada (corte coronal) e/ou raio-x de seios paranasais. A tomografia computadorizada de seios paranasais foi realizada em 30 pacientes do grupo I e somente em 6 pacientes do grupo II.
O diagnóstico de rinossinusite baseou-se nos parâmetros descritos nos Consensos Americano e Latino-americano de Rinossinusites, ou seja, valorizados tempo de evolução, sintomas (febre, dor facial, tosse, congestão nasal e rinorréia purulenta), secreção purulenta em meatos à endoscopia nasal e alterações radiológicas (velamento de seios paranasais). A tomografia computadorizada de seios paranasais foi realizada em 21 do total dos pacientes que tiveram diagnóstico de rinossinusite e o raio-x de seios paranasais, em 8 pacientes.
Para tratamento, a antibioticoterapia foi realizada conforme definida pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do HC-UNICAMP. Quando o paciente apresentava rinossinusites refratárias ou recorrentes ou crônicas com alterações anatômicas intranasais e/ou em seios paranasais (cisto maxilar, desvio septal, concha bolhosa, polipose, tumor), era submetido à punção de seio maxilar via fossa canina sob anestesia local para endoscopia rígida sinusal, biópsia de mucosa, seio maxilar e coleta de secreção com cateter estéril introduzido pelo óstio da punção para cultura; ou então, à remoção cirúrgica do possível fator obstrutivo em nível de meato médio (sinusectomia endoscópica maxilar, etmoidal e/ou esfenoidal) sob anestesia geral. Foram excluídos das cirurgias os pacientes que tiveram elevado risco de sangramento nasal profuso por leucemia mielóide aguda e total aplasia de medula óssea. O paciente que não apresentou doença nasossinusal foi apenas observado. No grupo I, a avaliação foi repetida após o TMO e tratamentos realizados conforme alterações apresentadas no momento.
Realizada análise estatística dos dados obtidos através de médias, medianas, Qui-quadrado com correção de Yales e Teste de Fisher.
RESULTADOSO grupo I, que foi avaliado antes e após o TMO, foi composto de 35 pacientes adultos com média de idade de 35 anos. O transplante de medula óssea para este grupo foi na maioria alogênico (88%). Nenhum apresentou rinossinusite antes do TMO. Após o TMO, 15 pacientes (42,8%) tiveram rinossinusite. Neste grupo, 12 (34%) pacientes desenvolveram a DECH crônica. Não houve significância estatística entre a DECH e rinossinusite. Entretanto, observou-se que mais da metade dos pacientes com DECHc tiveram rinossinusite, enquanto que somente um quarto dos pacientes sem DECHc apresentaram rinossinusite (Tabela 1).
No grupo II, que foi avaliado após o TMO, foi composto de 24 pacientes de mesma faixa etária do grupo I. O tipo de transplante mais freqüente também foi o alogênico. Neste grupo, 14 pacientes (58%) tiveram rinossinusite; e seis (25%) apresentaram DECHc. Observou-se que todos os pacientes com DECH desenvolveram rinossinusite, enquanto menos da metade dos pacientes sem DECH tiveram rinossinusite, sendo encontrada significância estatística (Tabela 2).
Como os dois grupos apresentaram características semelhantes quanto à freqüência de DECH, repetiu-se a análise no conjunto dos dois grupos. (Tabela 3). A freqüência de rinossinusite, no total dos 59 pacientes, foi de 49% (29 pacientes). A DECH ocorreu em 18 pacientes (30,5%). A Rinossinusite nos pacientes com Doença do Enxerto contra o Hospedeiro é mais freqüente. Mais de dois terços dos pacientes com DECHc tiveram rinossinusite, em contraposição, menos da metade dos sem DECHc apresentaram rinossinusite. Houve significância estatística entre ocorrência de rinossinusite e DECHc.
Para tratamento, a antibioticoterapia foi usada para todos os casos, porém alguns pacientes foram submetidos à sinusectomia maxilar, etmoidal e/ou esfenoidal para melhor controle da rinossinusite. Pode-se observar que pouco mais da metade dos pacientes com DECHc que tinham rinossinusite necessitaram de sinusectomia endoscópica para controle da doença, enquanto que somente um terço dos pacientes sem DECHc foram submetidos a tal cirurgia. Porém, não houve significância estatística na relação de indicação de cirurgia e rinossinusite no paciente TMO com DECHc (Tabela 4).
DISCUSSÃOA ocorrência das rinossinusites nos pacientes transplantados é inevitável devido aos múltiplos fatores predisponentes intrínsecos ao processo do transplante (radioterapia de corpo inteiro, condicionamento, antibioticoterapia por longo período, neutropenia, doença do enxerto contra o hospedeiro, quimioterapia). Além da alteração principal que é a imunodeficiência, nestes pacientes, Cordonnier et al. mostraram alterações ciliares na mucosa nasal que podem predispor às rinossinusites recorrentes bacterianas. A probabilidade de ocorrência de rinossinusite nos primeiros dois anos após o TMO é estimada em até 36,9%, segundo Savage et al., contrariando os achados de 49% de freqüência deste trabalho.
De acordo com vários autores8-12, o exame físico otorrinolaringológico é insuficiente para adequada avaliação destes pacientes transplantados. A endoscopia nasal e tomografia computadorizada de seios paranasais prévios ao TMO são exames ideais e fundamentais para diagnóstico correto e precoce. Desta forma, pode-se saber sobre condições anatômicas nasais precisas, condições da mucosa nasal e óstios de seios paranasais, tumorações de região posterior nasal. Após o TMO, a endoscopia é o melhor exame para o acompanhamento preciso dos transplantados, pois há necessidade de diferenciação de coloração de secreção, edema de mucosa ou manifestações fúngicas precoces (mucosa cinza, amarela ou enegrecida) em toda cavidade nasal. Nos casos de suspeita de rinossinusite bacteriana ou fúngica após o TMO pode-se repetir a tomografia a fim de planejamento do tratamento e estadiamento da doença.
A ocorrência de doença do enxerto contra o hospedeiro (DECHc) crônica é estimada em 60% dos pacientes submetidos a transplante alogênico1,2,4. Neste trabalho, a freqüência encontrada foi menor (30,5%). Sabe-se que o paciente com DECHc pode ter lesões limitadas ou extensas (fígado, pele, pulmão, olhos) através de linfócitos T auto-reativos do doador contra moléculas dos antígenos de classe II comuns ao receptor1. No pulmão, a bronquiolite obliterante é a manifestação típica2. Não se tem relato específico de alterações em mucosa nasossinusal pela DECHc, mas sim de mucosa de cavidade oral, em que há edema importante e acúmulo de linfócitos na submucosa. Também, há associação de imunodeficiência tanto humoral como celular e uso de drogas imunossupressoras para evitar o progresso da própria DECHc2. Cordonnier não conseguiu associar alterações ciliares da mucosa nasal ao desenvolvimento da DECHc.
Provavelmente, as vias aéreas são o primeiro sitio de infecção pela facilidade de contato e contaminação através do meio ambiente, visto que a imunidade encontra-se deficiente. No entanto, os outros fatores, incluindo a Doença do Enxerto contra o Hospedeiro, participam da manutenção da inflamação das VAS e recorrência das rinossinusites. Desta forma, pode ser observado neste trabalho a influência da DECHc na rinossinusite. Talvez a alteração ciliar provocada na DECHc leve à necessidade de cirurgia para ampliação de ósteos dos seios da face a fim de melhorar a aeração e diminuir a retenção de secreção dentro dos seios paranasais. Embora este trabalho não tenha demonstrado significância entre indicação de cirurgia nasossinusal e rinossinusite no paciente TMO com DECHc, observou-se clinicamente que estes pacientes não tiveram mais recorrências da rinossinusite num período de 2 anos de acompanhamento. Portanto, no serviço do HC-UNICAMP optamos por cirurgia nasossinusal em pacientes TMO com DECHc que apresentem recorrência das rinossinusites (> 2-3 episódios no semestre) ou rinossinusite crônica ou falha terapêutica, mesmo que seja no primeiro episódio.
CONCLUSÃOA freqüência de rinossinusite no transplante de medula óssea foi de 49%.
A freqüência da Doença do Enxerto contra o hospedeiro crônica foi de 30,5%.
A Doença do Enxerto contra o Hospedeiro crônica é um fator predisponente para rinossinusites.
A cirurgia nasossinusal pode ser necessária para controle da rinossinusite no paciente com Doença do Enxerto contra o Hospedeiro crônica.
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1 Médica especialista em otorrinolaringologia.
2 Médica otorrinolaringologista, Coordenadora do Setor de Rinologia da Disciplina de Otorrinolaringologia UNICAMP.
3 Médico Hematologista, Livre Docente da Hematologia UNICAMP, Chefe do Transplante de Medula Óssea da UNICAMP.
4 Médico Hematologista, Professor doutor, Professor do Setor de TMO do Departamento de Hematologia.
5 Médica Hematologista, Contratada do Transplante de medula óssea da UNICAMP.
Disciplina de Otorrinolaringologia da UNICAMP. Agradecimento ao Dr. Anibal Faundes que muito contribuiu para realização deste trabalho.
Endereço para correspondência: Dra. Erica Ortiz - Rua Jose Bonifácio 2240 Campinas SP.
E-mail: erica.ortiz@terra.com.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 23 de outubro de 2005.
Artigo aceito em 27 de abril de 2006.