INTRODUÇÃOA síndrome da apnéia/hipopnéia obstrutiva do sono (SAHOS) tem sido descrita como uma condição relativamente comum em crianças. A SAHOS em crianças é uma desordem de respiração durante o sono, caracterizada pela obstrução parcial ou total de vias aéreas superiores que interfere na ventilação e no padrão normal de sono1,2. Os estudos mostram uma prevalência variável da SAHOS entre 1% e 3% em crianças de 2 a 18 anos e não há predominância de sexo2.
Dentre os fatores etiológicos mais comuns das apnéias obstrutivas figuram as alterações estruturais como hipertrofia das tonsilas faríngea e palatina1-4. Outras causas da SAHOS incluem obesidade, anomalias craniofaciais, doenças neuromusculares, hipotireoidismo e síndromes genéticas. No entanto, estas são menos comuns e não serão abordadas neste estudo. Na grande maioria das crianças com SAHOS, o tratamento é cirúrgico para remoção das tonsilas faríngeas e palatinas hipertrofiadas2,3,5,6,7.
Os sintomas de crianças com SAHOS incluem ronco, dificuldade para respirar e/ou pausas respiratórias durante o sono, sudorese excessiva e enurese. Os sintomas diurnos que podem ocorrer são respiração oral, cefaléia e sonolência excessiva1,2,6.
Para o diagnóstico da SAHOS, o estudo polissonográfico é imprescindível e, além disso, deve-se levar em consideração a história clínica do paciente, exame físico e estudos laboratoriais1.
Algumas das alterações decorrentes da SAHOS são hipertensão pulmonar, anormalidades nas trocas gasosas, alterações cárdio-respiratórias, baixo desenvolvimento pôndero-estatural, fragmentação do sono, alterações comportamentais e neurocognitivas4,6,8 (déficit de atenção, hiperatividade, dificuldade de aprendizagem, prejuízos de memória e de inteligência).
Alterações comportamentais e neurocognitivas, bem como prejuízos no desempenho escolar têm sido freqüentemente descritos em crianças e adultos com SAHOS. Não foram encontrados estudos que correlacionassem a avaliação da função auditiva em nível periférico e central com SAHOS em crianças.
Sabemos que a audição de um indivíduo normal não se restringe ao nível sensorial periférico. Ela também envolve a participação de vias auditivas centrais, córtex cerebral e vias auditivas eferentes. As manifestações clínicas de indivíduos com alterações de processamento auditivo incluem dificuldades de atenção, alterações de fala e linguagem associadas, dificuldades de compreensão de fala em ambientes ruidosos ou acusticamente desfavoráveis e dificuldades escolares9.
Assim sendo, o objetivo deste estudo é verificar se existe relação entre a presença da Síndrome da Apnéia/Hipopnéia Obstrutiva do Sono e alteração de processamento auditivo.
CASUÍSTICA E MÉTODOSEste estudo foi realizado em parceria entre a Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica e a Disciplina de Distúrbios da Audição da Universidade Federal de São Paulo. O projeto para a realização deste estudo foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo/ Hospital São Paulo, sob protocolo número 0448/02. Todos os pacientes foram informados oralmente e por meio de material escrito a respeito dos objetivos e dos procedimentos a serem realizados. Os responsáveis assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, após consentirem na participação no estudo.
No período de março de 2001 a julho de 2002, foram avaliados 30 indivíduos na faixa etária de 5 a 11 anos de idade, que foram reunidos em três grupos:
GRUPO I - 10 crianças respiradores orais e com exame de polissonografia normal - denominado abreviadamente Grupo RO (grupo Respirador Oral).
GRUPO II - 10 crianças respiradores orais e com exame de polissonografia alterado - denominado abreviadamente Grupo SAS (grupo com Síndrome da Apnéia/Hipopnéia Obstrutiva do Sono).
GRUPO III - 10 crianças respiradores nasais, sem queixas otorrinolaringológicas, auditivas e/ou escolares - denominado abreviadamente grupo REN (grupo Respirador Nasal).
Todos os indivíduos que participaram deste estudo apresentaram avaliação audiológica básica normal10,11 composta por audiometria tonal liminar, logoaudiometria e imitanciometria. O critério de normalidade adotado foi a presença de níveis de audição inferiores a 25dBNA em todas as freqüências sonoras avaliadas10,11 à audiometria tonal liminar e curva timpanométrica normal (tipo A) com presença de reflexos acústicos no modo contralateral para as freqüências sonoras de 500Hz, 1000Hz, 2000Hz e 4000Hz, à imitanciometria. Após a realização da avaliação audiológica básica, todos os indivíduos foram submetidos à avaliação do processamento auditivo.
A Tabela 1 apresenta a distribuição da amostra estudada quanto à faixa etária e a Tabela 2 apresenta os grupos estudados considerando o gênero masculino e feminino.
Neste estudo, foram excluídas crianças com mal-formação craniofacial, síndromes genéticas e doenças neurológicas, pois podem apresentar envolvimento de sistema nervoso central e perda auditiva periférica. Também é importante ressaltar que as crianças com diagnóstico de ronco primário, ao exame de polissonografia, foram excluídas deste estudo.
Os indivíduos dos grupos I e II foram submetidos à avaliação otorrinolaringológica e ao exame de polissonografia que serão descritos a seguir.
1) Avaliação otorrinolaringológicaTodas as crianças dos grupos I (RO) e II (SAS) foram submetidas ao exame otorrinolaringológico que foi realizado por um único profissional, sendo que os resultados não foram confirmados por outro médico otorrinolaringologista. A avaliação otorrinolaringológica compreendeu exame físico, otoscopia, rinoscopia anterior, oroscopia e nasofibrolaringoscopia por meio de fibra ótica flexível de 3,2 de diâmetro para avaliação do tamanho das tonsilas faríngea e palatina.
A rinoscopia anterior permite a avaliação dos cornetos nasais que foram classificados conforme os seguintes parâmetros12:
Sem edema: Corneto nasal inferior normal
Hipertrofia de cornetos nasais de grau I: corneto nasal inferior ocupa 25% da fossa nasal.
Hipertrofia de cornetos nasais de grau II: corneto nasal inferior ocupa 50% da fossa nasal.
Hipertrofia de cornetos nasais grau III: corneto nasal inferior ocupa 75% ou mais da fossa nasal.
O tamanho da tonsila faríngea foi estimado com base na porcentagem da área posterior da coana que estava ocupada pelo tecido adenoideano12 e classificado em:
Obstrutiva: quando ocupava mais de 70% da coana posterior;
Não-Obstrutiva: quando ocupava menos de 70% da coana posterior.
As tonsilas palatinas foram classificadas conforme proposta realizada por Brodsky13:
Grau I: tonsilas palatinas ocupando menos do que 25% da orofaringe.
Grau II: tonsilas palatinas ocupando mais do que 25% e menos do que 50% da orofaringe.
Grau III: tonsilas palatinas ocupando mais do que 50% e menos do que 75% da orofaringe.
Grau IV: tonsilas palatinas ocupando mais do que 75% da orofaringe.
2) Exame de PolissonografiaAs crianças dos grupos I (RO) e II (SAS) foram submetidas ao exame de polissonografia no Instituto do Sono da Universidade Federal de São Paulo. Os pacientes foram avaliados segundo parâmetros eletrofisiológicos e cardiorrespiratórios, registrados em sistema computadorizado - eletroencefalograma, eletromiograma submentoniano e tibial, eletro-oculograma direito e esquerdo, fluxo de ar oronasal, movimento de tórax e abdômen, microfone (ronco), saturação da oxi-hemoglobina (SaO2) e posição no leito. Para a análise dos resultados foram utilizados os parâmetros de normalidade estabelecidos no Consenso da Sociedade Torácica Americana14 que determina que os parâmetros a serem analisados são: o índice de distúrbios respiratórios (IDR - número de eventos apnéia-hipopnéia/hora), a média da saturação de oxigênio durante o sono REM e NREM, a dessaturação mínima de oxi-hemoglobina (Nadir da SaO2), eficiência do sono, tempo total de sono (TTS), sono REM, sono de ondas lentas, índice de despertares, duração da apnéia e hipoventilação obstrutiva.
Para facilitar a análise polissonográfica, apenas os três fatores mais importantes (IDR, Nadir e nível médio da saturação de oxigênio) foram considerados.
Avaliação do Processamento AuditivoTodos os indivíduos que participaram deste estudo foram submetidos à avaliação do processamento auditivo, realizada por duas fonoaudiólogas e foi composta de um conjunto de testes, a saber: teste de localização sonora (LS), teste de memória auditiva para sons verbais (MSV) e não-verbais em seqüência (MSNV) e teste dicótico de dígitos (TDD). Para a realização destes procedimentos foi utilizado o audiômetro de dois canais GSI 61 e compact-disc Panasonic.
Para o teste de localização sonora (LS) foi utilizado o guizo. Este instrumento foi percutido sem pista visual em cinco posições em relação à cabeça da criança: à frente, acima, atrás, à esquerda e à direita. A instrução dada foi por demonstração. A resposta solicitada foi a indicação do local de origem do som. Este teste visa buscar informações sobre o mecanismo fisiológico auditivo de interação binaural. A habilidade auditiva avaliada é denominada de localização sonora9.
O teste de memória para sons verbais e não-verbais em seqüência visa buscar informações sobre o mecanismo fisiológico auditivo de processamento temporal. A habilidade auditiva avaliada é denominada ordenação temporal9. O teste de memória auditiva para sons verbais foi aplicado utilizando-se 3 sílabas, nas crianças de faixa etária de 5 anos e, 4 sílabas, nas crianças com idade igual ou superior a 6 anos9,15. Para este teste, inicialmente, foi solicitado que o indivíduo repetisse cada sílaba isoladamente. Depois disso, o indivíduo foi instruído a repetir oralmente três seqüências diferentes compostas por três ou quatro sílabas cada uma, mantendo a exata ordem de apresentação das mesmas, sem pista visual.
Para o teste de memória auditiva com sons não-verbais foram utilizados instrumentos sonoros apresentados em três seqüências diferentes. O indivíduo foi solicitado a apontar os instrumentos musicais na ordem em que foram percutidos. A instrução foi dada por demonstração.
O Teste Dicótico de Dígitos visa buscar informações a respeito do mecanismo fisiológico de escuta dicótica com sons verbais. A lista do teste, versão em português, é constituída por 80 dígitos ou 20 itens, sendo que cada item é formado por 4 dígitos, selecionados entre os números de 1 a 9 que representam dissílabos da língua portuguesa. O teste prevê a apresentação de dois dígitos sobrepostos, em cada orelha simultaneamente16 e foi aplicado na etapa de integração binaural, para a qual o indivíduo foi instruído a repetir oralmente os quatro números apresentados em ambas as orelhas, independentemente da ordem de apresentação dos mesmos. Se o indivíduo identifica corretamente os dígitos apresentados, nenhum registro é realizado na folha de marcação. Porém, se comete um erro, ou seja, uma omissão ou substituição dos dígitos, este é assinalado, na folha de marcação, com um traço no dígito correspondente. Cada dígito identificado incorretamente equivale a 1,25% de erros. A porcentagem de erros cometidos nas orelhas direita e esquerda foi, assim, calculada16. O Teste Dicótico de Dígitos possibilita avaliar a habilidade auditiva de figura-fundo para sons verbais, por meio da tarefa de integração binaural. Este teste foi realizado em cabina acústica utilizando-se fones e material gravado em compact disc.
A análise estatística deste estudo foi realizada basicamente com testes não-paramétricos, devido à baixa amostragem. Desta maneira, foram utilizados os testes de Kruskal-Wallis e Mann-Whitney. Além destes testes, foi utilizado o intervalo de confiança para uma análise quantitativa descritiva mais completa. O nível de significância adotado foi 5%.
RESULTADOSNeste estudo foram avaliadas 30 crianças, com faixa etária média de 7,7 anos, sendo 18 crianças do gênero masculino e 12 do gênero feminino (Tabelas 1 e 2).
Quanto aos resultados da avaliação otorrinolaringológica:
Houve diferença estatisticamente significante quanto aos resultados da avaliação otorrinolaringológica no que se refere à avaliação dos cornetos nasais e das tonsilas palatinas. No grupo I (RO), foi verificado maior número de indivíduos com hipertrofia de cornetos nasais grau I. No grupo II (SAS), verificou-se maior número de indivíduos com hipertrofia de cornetos nasais grau II e III (Tabelas 3 e 4). Além disso, o grupo II (SAS) apresentou maior número de indivíduos com hipertrofia de tonsilas palatinas grau III e IV (Tabela 5).
Em relação aos parâmetros otorrinolaringológicos de tamanho da tonsila faríngea, não foi constatada diferença estatisticamente significante nos grupos I e II (Tabela 5).
Quanto aos resultados da polissonografia:
Todos os indivíduos do grupo I (RO) apresentaram resultados do exame de polissonografia dentro dos critérios de normalidade descritos. No grupo II (SAS), os resultados indicaram que 60% dos indivíduos foram classificados como tendo alteração leve e 40% dos indivíduos apresentaram alteração de grau moderado e severo ao exame de polissonografia. Quanto ao índice de apnéia/hipopnéia (número de eventos por hora), constatou-se que a média de eventos foi de 6,02 e a mediana foi de 4,7 no grupo II (SAS).
Quanto aos testes de processamento auditivo:
A análise estatística mostrou haver diferença significante ao ser comparado o comportamento auditivo das crianças nos três grupos estudados para os testes de processamento auditivo denominados teste de memória seqüencial não-verbal e teste dicótico de dígitos (Tabelas 6 e 7).
A análise estatística mostrou não haver diferença estatisticamente significante quanto ao desempenho dos indivíduos nos grupos I, II e III nos testes de processamento auditivo de localização sonora e teste de memória para sons verbais em seqüência (Tabelas 6 e 7).
No teste dicótico de dígitos houve uma diferença média estatisticamente significante entre os grupos, tendo o grupo II (SAS) apresentado pior desempenho do que o grupo III (REN). No teste de memória para sons não-verbais em seqüência, constatamos haver diferença estatisticamente significante entre os grupos, tendo o grupo II (SAS) apresentado pior desempenho do que o grupo I (RO). Estes dados encontram-se na Tabela 7.
DISCUSSÃOA síndrome da apnéia/hipopnéia obstrutiva do sono é cada vez mais identificada na população pediátrica. É caracterizada por obstrução parcial ou total de vias aéreas superiores, que leva a interrupções intermitentes da ventilação normal durante o sono. Na fisiopatologia da SAHOS, três variáveis são importantes no desenvolvimento do colapso e obstrução de vias aéreas superiores17:
A) Alterações anatômicas das vias aéreas superiores
B) Diminuição da atividade dos músculos dilatadores da faringe
C) Pressão negativa gerada pela caixa torácica nas vias aéreas superiores
Neste estudo, foi realizado exame otorrinolaringológico e verificamos haver diferença estatisticamente significante ao ser comparado os resultados da rinoscopia anterior nos grupos I (RO) e II (SAS), sendo que o grupo II (SAS) apresentou maior número de indivíduos com hipertrofia de cornetos nasais grau II e III, enquanto que o grupo I (RO) apresentou maior número de indivíduos com hipertrofia de cornetos nasais grau I.
Todos os indivíduos respiradores orais com exame de polissonografia normal (grupo I - RO) ou com exame de polissonografia alterado (grupo II - SAS) apresentaram, ao exame otorrinolaringológico, hipertrofia de tonsilas faríngea e palatina e/ou cornetos nasais.
Comparando-se os grupos I (RO) e II (SAS) quanto aos resultados da rinoscopia anterior, verificou-se que 70% dos indivíduos do grupo I (RO) apresentaram hipertrofia de cornetos nasais grau I, enquanto que no grupo II (SAS), 80% dos indivíduos apresentaram hipertrofia de cornetos nasais grau II e III. Houve predomínio estatisticamente significante de indivíduos com hipertrofia de cornetos nasais grau I, no grupo I (RO) e de indivíduos com hipertrofia de cornetos nasais grau II e III, no grupo II (SAS). Em relação à avaliação da tonsila faríngea, o grupo II (SAS) também revelou maior número de indivíduos com tonsila faríngea obstrutiva (80% dos indivíduos avaliados), enquanto que no grupo I (RO), 60% dos indivíduos avaliados apresentaram tonsila faríngea obstrutiva, embora este predomínio não tenha sido estatisticamente significante. Quanto ao grau de obstrução da orofaringe, foi verificado, de maneira estatisticamente significante, que no grupo II (SAS) havia maior número de indivíduos (80%) com hipertrofia de tonsilas palatinas grau III e IV, enquanto que no grupo I (RO), 40% dos indivíduos avaliados apresentavam este mesmo grau de obstrução.
Sendo assim, o grupo II (SAS) concentrou o maior número de indivíduos com os maiores graus de obstrução quanto aos três parâmetros otorrinolaringológicos avaliados. Vários autores mencionaram que a hipertrofia de tonsilas faríngea e palatina está associada aos fatores etiológicos mais comuns na síndrome da apnéia/hipopnéia obstrutiva do sono1-4, conforme verificado neste estudo. Além disto, constatou-se que a hipertrofia de cornetos nasais foi um fator importante associado à hipertrofia de tonsila palatina e faríngea.
O processamento auditivo central refere-se aos mecanismos e processos que ocorrem no sistema auditivo, responsáveis pelos seguintes fenômenos comportamentais18:
Localização sonora e lateralização sonora;
Discriminação auditiva;
Reconhecimento de padrões auditivos;
Aspectos temporais da audição (resolução temporal, mascaramento temporal, integração temporal e ordenação temporal);
Desempenho auditivo com sinais acústicos degradados;
Desempenho auditivo com sinais acústicos competitivos.
Estes mecanismos e processos são aplicáveis a estímulos verbais e não-verbais e podem afetar diferentes áreas, incluindo a fala e a linguagem.
O Distúrbio do Processamento Auditivo (DPA) foi definido como um prejuízo em uma ou mais áreas acima descritas.
Para a avaliação de processamento auditivo realizada nos pacientes deste estudo, foram selecionados os seguintes testes auditivos especiais: teste de localização sonora, teste de memória para sons verbais e não-verbais em seqüência e teste dicótico de dígitos. A análise do desempenho nestes testes auditivos especiais permitiu avaliar os mecanismos fisiológicos auditivos de interação binaural, processamento temporal e de escuta dicótica para sons verbais.
Neste estudo, foi constatada diferença estatisticamente significante no resultado do teste dicótico de dígitos, sendo que o grupo II (SAS) apresentou pior desempenho quando comparado ao grupo III (REN). Um outro aspecto observado foi o fato de haver diferença estatisticamente significante no resultado do teste de memória para sons não-verbais em seqüência, tendo o grupo II (SAS) apresentado pior desempenho do que o grupo I (RO).
Testes para avaliar o mecanismo de escuta dicótica (teste dicótico de dígitos) e de processamento temporal (teste de memória para sons não-verbais em seqüência) são reconhecidos como ferramentas importantes para definir alterações de processamento auditivo19, além de serem testes sensíveis para alterações de tronco encefálico, lesões corticais e lesões de corpo caloso20,21.
As conseqüências da SAHOS incluem significantes alterações comportamentais, distúrbio de aprendizagem, déficit de atenção e hiperatividade, prejuízos de memória e dificuldades escolares, dentre outros comprometimentos22-24. Os mecanismos pelos quais os distúrbios do sono contribuem para as manifestações apresentadas pelos pacientes com SAHOS não estão completamente definidos. Alguns estudos afirmam que a fragmentação do sono e a hipóxia intermitente colaboram de maneira significativa. Hipóxia intermitente parece levar à perda de células neuronais no córtex pré-frontal e no hipocampo e a dificuldades em tarefas que envolvem memória espacial. Além disto, com base em estudos experimentais, verificou-se que o período de susceptibilidade neuronal a episódios de hipóxia durante o sono coincide com as idades em que ocorrem os picos de prevalência da SAHOS, em crianças. Em estudo experimental com ratos, observou-se importante prejuízo na aquisição e retenção em tarefas de modalidade espacial. Ratos do sexo masculino, expostos a hipóxia intermitente durante o sono, também exibiram aumento da atividade motora. Em um outro estudo experimental com ratos, verificou-se que estruturas do lobo temporal medial são particularmente susceptíveis à hipóxia25. Sendo assim, o diagnóstico e tratamento tardios da SAHOS, podem afetar múltiplos órgãos e sistemas, podendo levar a alterações neuronais definitivas e limitando o desenvolvimento neurocognitivo pleno8,24,26.
Nosso estudo mostrou que o grupo II (SAS), composto por crianças com síndrome da apnéia/hipopnéia obstrutiva do sono, exibe alterações de processamento auditivo que podem ser consideradas como mais uma das manifestações decorrentes da SAHOS. Provavelmente, o distúrbio do processamento auditivo seja decorrente dos mesmos mecanismos que levam às alterações neurocognitivas, de maneira geral.
Os dados preliminares deste estudo sugerem a importância de se considerar a avaliação do processamento auditivo no processo de atendimento multidisciplinar a que estas crianças - respiradores orais com e sem polissonografia alterada - são submetidas, permitindo o desenvolvimento de uma abordagem terapêutica mais completa e minimizando, desta forma, as alterações no desenvolvimento da função auditiva. Sugerimos, ainda, a continuidade deste estudo, ampliando o número de indivíduos em cada grupo.
CONCLUSÃOCom base na análise dos resultados deste estudo foi possível concluir que a presença da Síndrome da Apnéia/Hipopnéia Obstrutiva do Sono relacionou-se positivamente com alteração de processamento auditivo.
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1 Doutora em Ciências dos Distúrbios da Comunicação Humana pela UNIFESP/ EPM, Fonoaudióloga.
2 Doutora em Ciências dos Distúrbios da Comunicação Humana pela UNIFESP/EPM, Docente do Curso de Fonoaudiologia/Faculdade de Ciências Médicas - FCM/UNICAMP.
3 Médica otorrinolaringologista da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica - UNIFESP / EPM.
4 Doutora, Docente da Disciplina de Biologia e Medicina do Sono. Departamento de Psicobiologia da UNIFESP / EPM.
5 Doutor, Docente da Disciplina de Biologia e Medicina do Sono. Departamento de Psicobiologia da UNIFESP / EPM.
6 Doutora em Ciências dos Distúrbios da Comunicação Humana pela UNIFESP/EPM, Professora Adjunto Doutora da Disciplina de Distúrbios da Audição do Departamento de Fonoaudiologia da UNIFESP/EPM.
7 Livre Docente, Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica da UNIFESP/EPM.
8 Doutor em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Chefe de Clínica da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica - UNIFESP.
9 Mestre em Otorrinolaringologia pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Médico otorrinolaringologista.
Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Endereço para correspondência: Karin Ziliotto - Avenida Cotovia 80 ap. 141
Tel: (0xx11) 5051.1626 - E-mail: rdkz@uol.com.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 25 de maio de 2005.
Artigo aceito em 17 de abril de 2006.