INTRODUÇÃOA hanseníase é uma doença infecto-contagiosa crônica, causada pelo Mycobacterium leprae (M. leprae). Compromete principalmente a pele e os nervos periféricos, mas também órgãos internos e mucosas. A forma inicial da doença é a indeterminada, a qual pode resolver espontaneamente ou evoluir para um espectro extremamente amplo de manifestações. Essas são reflexos de diferentes respostas imunocelulares ao M. leprae, pré-determinadas pela capacidade inata do hospedeiro em resistir ou não à infecção. Desse modo, pode permanecer limitada, no pólo tuberculóide (TT), evoluir para formas disseminadas, o pólo virchowiano (VV), ou tomar uma posição intermediária entre esses dois pólos, o grupo dimorfo. Conforme a proximidade maior a um dos dois tipos polares, o grupo dimorfo subdivide-se em dimorfo-tuberculóide (DT), dimorfo-dimorfo (DD) ou dimorfo-virchowiano (DV)1. Para fins operacionais e terapêuticos, a Organização Mundial da Saúde, em 19822, classificou como paucibacilares os pacientes com teste de Mitsuda positivo (que possuem imunidade ao bacilo) e índice baciloscópico menor que 2, e como multibacilares os pacientes com Mitsuda negativo (que não possuem imunidade ao bacilo) e índice baciloscópico maior ou igual a 2. Os pacientes das formas clínicas I, TT e DT são paucibacilares e os pacientes das formas DD, DV e VV são multibacilares2.
Ao contrário das manifestações cutâneas, que são descritas exaustivamente na literatura médica, são poucos os estudos publicados que tratam das manifestações orais na hanseníase, e faltam descrições detalhadas sobre esse assunto nos livros textos padrões. A maioria das referências é antiga, da época em que os pacientes evoluíam ao longo dos anos pela falta de um tratamento eficaz para a doença.
Esse tema despertou interesse pelo fato de ser o trato respiratório superior a principal porta de entrada e via de eliminação bacilar. A mucosa nasal é comprometida nas fases iniciais da doença, freqüentemente precedendo o aparecimento das manifestações cutâneas3. A mucosa oral pode ser contaminada por bacilos presentes na secreção que desce pela rinofaringe, mas, apesar dessa contaminação, verifica-se uma resistência da mucosa oral ao surgimento de lesões. Essas praticamente se restringem a pacientes multibacilares em estágios avançados da doença4-11, o que sugere que a invasão da mucosa oral é decorrência da bacilemia pela disseminação e multiplicação bacteriana12,13.
Entretanto, a mucosa oral sem lesões evidentes pode estar comprometida nos pacientes em estágios menos avançados. Exames baciloscópicos da mucosa clinicamente normal realizados por Hubscher et al., em 197914, demonstraram bacilos em 7 dentre 17 espécimes da língua, do palato duro e da gengiva, e os realizados por Brasil et al., em 197315 demonstraram bacilos em 16 dentre 112 espécimes do palato mole, sendo que em 4 casos biopsiados foram demonstrados granulomas. Kumar et al., em 198816, observaram, através do exame histopatológico da mucosa clinicamente normal, granulomas em 11 espécimes e bacilos em 4 espécimes da mucosa jugal dentre 17 casos biopsiados. No palato duro, observaram granulomas em 9 espécimes e bacilos em 4 espécimes dentre 14 casos biopsiados. Sharma et al., em 199312, também através do exame histopatológico, encontraram infiltrado linfomononuclear perivascular com bacilos em 1 caso e bacilos sem reação inflamatória em 2 casos dentre 5 espécimes da língua clinicamente normal.
Na literatura recente, em plena fase da multidrogaterapia, faltam dados sobre o comprometimento da mucosa oral pela hanseníase. A realização de um estudo sobre tal assunto, nesse momento, é de extremo interesse para a estomatologia, uma vez que essa doença ainda constitui grave problema de Saúde Pública em nosso meio17. Diante disso, foi proposto fazer um estudo em pacientes de hanseníase não-tratados, através do exame clínico e histopatológico, com o objetivo de verificar a freqüência do comprometimento da mucosa oral por essa doença.
Casuística E MÉTODOSFoi realizado um estudo transversal em 20 pacientes de hanseníase atendidos consecutivamente na cidade de Dracena, localizada na região oeste do Estado de São Paulo, no período de 2000 a 2002. Foram incluídos pacientes multibacilares, independentemente do sexo, cor da pele, idade ou tempo de evolução da doença. A existência de tratamento prévio foi critério de exclusão. O estudo somente teve início após a análise e aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, protocolo número 498/01, e contou com a anuência prévia dos participantes, os quais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
O diagnóstico da hanseníase baseou-se em critérios clínicos, baciloscópicos e histopatológicos, seguindo a classificação de Ridley & Jopling (1962)1 para a caracterização das formas clínicas. Levando-se em conta os critérios estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde em 19822, os pacientes foram agrupados, de uma maneira geral, como multibacilares. A cavidade oral foi cuidadosamente examinada, seguindo metodologia sistemática e ordenada, através de inspeção e palpação, observando-se a presença ou a ausência de alterações clínicas, sendo a última situação denominada mucosa clinicamente normal.
Todos os pacientes foram submetidos a biópsias de três áreas da mucosa oral, em pontos pré-estabelecidos da mucosa clinicamente normal ou em alteração clínica quando presente, totalizando 60 espécimes. Os pontos eleitos foram: mucosa jugal, no ponto médio; língua, a 1cm da ponta; palato mole, próximo à base da úvula.
As biópsias foram realizadas sob anestesia com lidocaína a 2% por spray tópico e por infiltração local, utilizando pinça endoscópica digestiva de 1,8mm e "punch" de 3mm (no palato mole foi usada somente pinça endoscópica digestiva) e a hemostasia foi obtida por compressão ou sutura quando requerido. Os fragmentos de mucosa foram fixados em formol a 10%, incluídos em blocos de parafina e os cortes foram corados pelas técnicas da hematoxilina-eosina (HE) e de Ziehl-Neelsen (ZN). Finalmente, foram examinados à microscopia óptica comum por um único patologista, utilizando aumentos de 40 vezes a 1000 vezes.
A avaliação dos resultados baseou-se na interpretação de critérios clínicos e histopatológicos. Definiu-se comprometimento específico da mucosa oral pela hanseníase a existência da associação de bacilos álcool-ácido-resistentes nos cortes corados por ZN e de granuloma nos cortes corados por HE, independentemente da presença de lesões aparentes.
RESULTADOSDentre os pacientes, havia 13 homens e 7 mulheres, com predominância da cor de pele branca e idade variando de 27 anos a 74 anos, com média de 53,6 anos. O tempo de evolução da doença variou de 3 meses a 14 anos, com média de 2,5 anos; 12 deles apresentavam sintomas entre 3 meses e 1 ano, 6 entre 2 e 4 anos e apenas 2 entre 10 e 14 anos. Quanto à forma clínica eram 11 VV, 7 DV e 2 DD.
Os resultados encontrados no exame clínico e histopatológico da mucosa oral são mostrados na Tabela 1.
Não foram detectadas lesões suspeitas de hanseníase nas outras áreas da mucosa oral. O exame histopatológico demonstrou que todas as alterações clínicas observadas eram inespecíficas (Tabela 2). Nos espécimes da mucosa oral clinicamente normal foram detectadas, no exame histopatológico, reações inflamatórias inespecíficas em 3 casos; apenas um paciente da forma VV apresentou granuloma com bacilos, concomitantemente na língua e no palato mole (Tabela 2 e Figuras 1 e 2).
Figura 1. Exame histopatológico-Língua: Granuloma macrofágico sub-epitelial (HE 400x)
Figura 2. Exame histopatológico-Língua: Bacilos álcool-ácido-resistentes no nervo (ZN, 1000x)
DISCUSSÃOA ausência de granuloma e bacilos álcool-ácido-resistentes no exame histopatológico das alterações clínicas detectadas na mucosa oral dos pacientes estudados demonstrou que todas eram inespecíficas. Isso está de acordo com Porto (1965)6 e Brazil et al. (1974)8 que afirmaram que nenhuma lesão na mucosa oral é patognomônica da hanseníase. Essa deve ser biopsiada e submetida ao exame histopatológico; somente a associação de bacilos álcool-ácido-resistentes e reação inflamatória granulomatosa são critérios para que possa ser considerada de etiologia hansênica. Diante disso, muitas lesões inespecíficas podem ter sido atribuídas à hanseníase no passado, pois nos primeiros estudos o diagnóstico das lesões era baseado apenas no exame clínico4-7 ou baciloscópico8,9. Somente alguns autores realizaram exame histopatológico nas lesões detectadas10,12,13,16. Essa pode ser uma das justificativas para a discordância entre os índices de freqüência do comprometimento oral na hanseníase relatados na literatura, que variam desde a ausência até 57,5%4-11.
A decisão de biopsiar três áreas visou ao aumento da chance da obtenção de maior positividade. A escolha das áreas baseou-se na possibilidade de comprometimento já comprovado das mesmas, apesar da ausência de lesões visíveis12,14-16. A mucosa clinicamente normal do palato mole, em particular, ainda não havia sido estudada através do exame histopatológico até o presente momento, pois apesar de Brasil et al. em 197315 terem demonstrado altos índices de baciloscopias positivas nesse local, esses autores realizaram exame histopatológico em apenas 4 casos, e o fizeram guiados pela baciloscopia positiva. A importância do estudo desse local se deve ao fato de que muitos dos estudos do passado relataram-no como o mais freqüentemente comprometido5,8,15,18,19.
Constatou-se que a mucosa oral pode estar comprometida, mesmo na ausência de lesões aparentes, em concordância com a literatura12,14-16. E isso pode ocorrer em estágios menos avançados da doença, como foi o caso do paciente deste estudo, o qual apresentava sintomas da doença há 3 anos. Isso está de acordo com Brasil et al. (1974)8, que afirmaram que o comprometimento da mucosa oral não é apanágio dos casos de longa duração. Porém, nesses casos, o comprometimento da mucosa oral permanece oculto sob o ponto de vista clínico, e somente uma busca histopatológica pode revelá-lo. Fica, portanto, evidente que se existe tal comprometimento, caso a doença não fosse diagnosticada e evoluísse sem um tratamento eficaz, o surgimento de uma lesão específica aparente poderia acontecer no futuro. Assim, o melhor controle da hanseníase, obtido com a introdução da multidrogaterapia, reduziu dramaticamente a freqüência de lesões orais nessa doença.
O verdadeiro significado da presença do M. leprae sem causar danos à mucosa oral ainda não é compreendido. Justificativa para isso gera grande número de indagações: temperatura mais elevada, renovação acelerada do epitélio, ação local de enzimas da saliva, fatores imunológicos locais... Seja ela qual for a importância desse fato, parece inquestionável sob o ponto de vista epidemiológico, pois bacilos podem ser eliminados para o meio ambiente ao falar, cuspir, espirrar ou tossir. Vale também enfatizar a necessidade de proteção por parte de médicos e dentistas ao realizarem procedimentos invasivos na boca de indivíduos com hanseníase multibacilar.
Questiona-se o porquê da presença do M. leprae em apenas um dos pacientes estudados, já que todos tinham baciloscopia fortemente positiva na pele. Enquanto a bactéria foi encontrada em um paciente com 3 anos de evolução, não o foi nos pacientes de 10 anos e de 14 anos, como seria o esperado. Desde que a presença da bactéria nos tecidos é diretamente dependente da bacilemia, supõe-se que a sua presença na mucosa oral talvez possa indicar maior gravidade da infecção, o que merece investigações no futuro.
Não foi possível concluir por qual local da mucosa oral o M. leprae tem preferência, já que apenas um paciente apresentou comprometimento específico.
Sugere-se o exame clínico da mucosa oral como rotina nos pacientes de hanseníase, desde que podem ser encontrados padrões em ordem a estimar a extensão da doença. Apesar da possível presença de bacilo e granuloma, enfatiza-se a escassez de lesões específicas visíveis na mucosa oral, enquanto um vasto processo de disseminação ocorre na pele e nos nervos periféricos. O fato aludido indica que, talvez, algum tipo de fator proteja a mucosa oral. Na maioria das vezes, as lesões aparentes ocorrem em casos de longa duração, quando a doença alcança estágios avançados e o organismo já está debilitado. Assim, não estaria na mucosa oral a última trincheira de defesa do organismo contra o M. leprae? A descoberta desse possível fator que protege a mucosa oral não nos colocaria mais próximos do controle da hanseníase?
CONCLUSÕESO estudo clínico e histopatológico de 20 pacientes de hanseníase multibacilar sem tratamento, com tempo médio de evolução de 2,5 anos, nos permite as seguintes conclusões:
1. A presença de alterações clínicas na mucosa oral não implica em comprometimento pela doença; uma confirmação histopatológica é necessária.
2. Lesões aparentes específicas da hanseníase são raras na mucosa oral em pacientes de curto tempo de evolução.
3. Apesar da ausência de sinais e sintomas, a mucosa oral clinicamente normal em casos multibacilares, mesmo com curto tempo de evolução da doença, pode exibir um comprometimento histopatológico específico.
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1 Mestre, Pós-graduanda, UNIFESP/EPM.
2 Mestre, Professor Adjunto do Departamento de Patologia, UNIFESP/EPM.
3 Livre Docente, Professor Titular do Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana e Chefe do Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia da Cabeça e Pescoço, UNIFESP/EPM.
4 Mestre, Pós-graduanda, UNIFESP/EPM.
5 Mestre e Doutora, Chefe do Setor de Estomatologia, UNIFESP/EPM.
6 Livre Docente, Professor Titular do Departamento de Dermatologia, UNIFESP/EPM.
Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM).
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Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 13 de outubro de 2005.
Artigo aceito em 19 de abril de 2006.