INTRODUÇÃOA deglutição é um dos processos neuromusculares mais complexos do corpo humano. Possui um componente voluntário e um involuntário e, particularmente esta última, mobiliza mais de uma dezena de músculos e dura apenas alguns segundos. (Marchesan, 1999).
Alimentos semi-sólidos necessitam de menor habilidade dos movimentos deglutitórios da laringe e faringe para serem deglutidos do que os alimentos líquidos (Dantas et al., 1990). Fato relevante, pois a dieta pós-operatória em amigdalectomia envolve basicamente esta consistência.
Há várias formas de se estudar a deglutição: história e exame físico, muito importante para se avaliar alterações da fase oral (Marchesan, 1999); ultra-sonografia, utilizada para estudar os movimentos da língua durante a fase oral. A videofluoroscopia que é utilizada para se estudar as fases preparatória oral, oral, faríngea e esofágica da deglutição, onde se utiliza um meio de contraste radiopaco; mais recentemente, temos a vídeo endoscopia da deglutição, que estuda a fase faríngea da deglutição e fornece dados que podem sugerir alteração da fase preparatória oral.(Macedo, 1998).
A avaliação da deglutição pós-amigdalectomia é muito pouco conhecida, não tendo sido encontrado nenhum trabalho em relação a este tema. Porém, este tipo de avaliação por vídeo endoscopia da deglutição já foi descrito com segurança tanto em adultos (De Paula, 2000; Aviv, 2000; Macedo, 1998; Dua, 1997; Costa, 1996) como em crianças (De Paula, 2002; Leder, 2000), o que nos possibilita verificar se há alguma alteração neste exame pós-amigdalectomia.
Após amigdalectomia, a odinofagia é uma queixa extremamente importante, sendo a principal queixa do paciente no pós-operatório recente. Portanto, os autores decidiram estudar a disfagia nestes pacientes para tentar desvendar as possíveis alterações na deglutição pós-amigdalectomia.
OBJETIVOSAvaliar a fase faríngea da deglutição em adultos jovens no pós-operatório de amigdalectomia, assim como observar se há e quais são as alterações.
MATERIAIS E MÉTODOSDezesseis pacientes voluntários (sete homens e nove mulheres) entre 17 e 24 anos, média de 20 anos, foram submetidos a amigdalectomia e posteriormente (entre o sétimo e décimo pós-operatório) à vídeo endoscopia da deglutição.
Todos os pacientes foram operados segundo a mesma técnica operatória: posição de Rose, infiltração dos pilares anteriores com 1 ml de solução de xilocaína 2% com vasoconstrictor 1:200.000, nas porções inferior, média e superior, dissecção com aspirador descolador das amígdalas, hemostasia com pontos de fio categute 3-0 simples.
Receberam alta no primeiro dia de pós-operatório com as mesmas medicações para casa em dosagem habitual: amoxicilina 500 mg por via oral de 8/8h por sete dias, diclofenaco sódico 50 mg por via oral de 8/8 h por cinco dias, dipirona sódica 35 gotas por via oral de até 6/6 h quando necessário. Foram também orientados a retornar no sétimo pós-operatório e todos negavam problemas para alimentar-se, apesar de referirem odinofagia em graus variados.
Entre o sétimo e décimo pós-operatório os pacientes foram submetidos a vídeo endoscopia da deglutição segundo a seguinte técnica: o paciente em posição sentada com os pés apoiados, com o monitor à sua frente, a fim de proporcionar um biofeedback e aumentar a cooperação do paciente durante o exame. Não foi utilizado anestésico local no nariz ou na faringe. O alimento oferecido foi líquido grosso branco (iogurte não diet), colocado em copo plástico e sugado por canudo plástico. Então, o endoscópio foi posicionado no cavum, para se visualizar a função do palato mole durante a deglutição e/ou se houvesse refluxo nasal. Posteriormente, o endoscópio foi posicionado no nível da úvula, para se obter boa visão da base da língua, parede faríngea posterior e lateral, vestíbulo laríngeo, seios piriformes, valéculas e padrão de fechamento das vias aéreas durante a deglutição. Foi também solicitado que o paciente mantivesse o iogurte na boca, para ver se haveria escape posterior ou não.
Todos os exames foram gravados em fita de vídeo, para que pudessem ser reavaliados quantas vezes fossem necessárias.
Primeiramente, o paciente era solicitado a deglutir sem o iogurte para se observar a ação muscular e a limpeza da saliva nos recessos faríngeos. A seguir, pedíamos que o paciente sugasse o iogurte e o mantivesse na boca. Após, solicitávamos que deglutisse normalmente o iogurte, quantas vezes fossem necessárias para ter a sensação de limpeza. Em seguida, reposicionávamos a ponta do aparelho na cavidade nasal para observar eventual resíduo de iogurte na mesma (refluxo nasal).
Estudamos, então, o comportamento do iogurte durante as deglutições, analisando alguns parâmetros: escape posterior, trajeto percorrido pelo alimento, limpeza da faringe pós-deglutição, qual o número destas necessárias para a sensação de limpeza, penetração, aspiração e ainda eventual refluxo nasal.
Como grupo controle utilizamos arquivos de vídeo de estudo anterior do mesmo serviço (De Paula, 2000), onde foi avaliado o comportamento da fase faríngea da deglutição em voluntários normais, aproximadamente da mesma faixa etária, com as mesmas seqüências de manobras descritas anteriormente, utilizadas nos pacientes pós-amigdalectomia.
Como metodologia, foram determinadas:
- Penetração: a passagem de alimentos para a laringe sem, contudo ultrapassar as pregas vocais; e,
- Aspiração, a passagem de alimentos para a laringe ultrapassando as pregas vocais.
RESULTADOSTodos referiram sensação de limpeza da faringe após deglutições sem iogurte.
Todos os pacientes apresentaram pregas vocais normais e conseguiram manter o iogurte na boca antes de iniciar a deglutição. Além disso, em nenhum dos casos houve aspiração do alimento.
Quando o iogurte foi deglutido, as seguintes regiões apareceram coradas em todos os pacientes: valécula, paredes laterais e posteriores da faringe e seios piriformes.
Todos apresentaram boa função do véu palatino durante a deglutição, havendo fechamento completo do cavum, sem ocorrência de refluxo de alimento para a nasofaringe.
Dois pacientes (12,5%) apresentaram penetração do alimento na laringe e este foi limpo satisfatoriamente com um movimento de tosse.
A média de deglutições necessárias para limpeza completa dos recessos faríngeos foi de 4,8. Um paciente (6,25%) necessitou de apenas duas deglutições para limpar a laringe, onze pacientes (68,75%) necessitaram de 3 a 5 deglutições e quatro (25%) necessitaram de mais de 5 deglutições para limpar a laringe, sendo o número máximo de 7 deglutições. (Gráfico 1).
Dez pacientes (66,6%) relatavam sensação de faringe limpa após as deglutições, porém ainda apresentavam acúmulo de iogurte em seios piriformes.
No grupo de pacientes normais (grupo controle), observamos uma necessidade de no máximo duas deglutições para sensação de limpeza, em todos não houve penetração, aspiração ou acúmulo de iogurte em seios piriformes.
Apesar do aumento de deglutições necessárias, nenhum paciente apresentou escape posterior ou aspiração do alimento.
DISCUSSÃOA fase faríngea tem uma grande importância na dinâmica da deglutição, pois compreende o caminho comum entre o sistema respiratório e o sistema digestivo, e problemas nesta fase agravam o risco de aspiração e aumentam a morbimortalidade de pacientes portadores destas alterações.
O estudo mostrou que há alterações na deglutição dos pacientes normais submetidos a amigdalectomia. Este fato nos alerta para potenciais distúrbios graves da deglutição em pacientes previamente disfágicos, como por exemplo, portadores de distúrbios neurológicos congênitos ou adquiridos, onde há indicação de amigdalectomia. Nestas situações, a ponderação do ato cirúrgico deve levar em conta, possível aspiração de alimentos no pós-operatório imediato. Com o clearance diminuído, possivelmente, haverá maior chance de penetração e/ou aspiração de alimentos, devido às alterações previamente existentes nestes pacientes patológicos.
Muitos trabalhos preocupam-se com a dor no pós-operatório (Salonen, 2001; Palme, 2000), infecções (Kaygusuz, 2001) ou hemorragias (Krishna, 2001; Bhattacharyya, 2001) pós-amigdalectomia, porém não encontramos estudos destinados a investigar a disfagia que ocorre durante a recuperação do paciente. Disfagia esta, que pode assumir uma importância vital para pacientes previamente disfágicos.
Este estudo preocupou-se com o comprometimento do padrão da fase faríngea da deglutição em pós-amigdalectomizados, tendo sido claramente observado um aumento da necessidade de movimentos deglutitórios.
Surpreendeu-nos observar que, mesmo o paciente relatando sensação de limpeza completa, ainda havia resíduos em seios piriformes em 66,6% dos casos, isto associado ao fato observado de duas penetrações laríngeas (12,5%), leva-nos a pensar em uma possível diminuição da sensibilidade faríngea, possível fruto do edema local em decorrência do ato cirúrgico, além da dificuldade na elevação da faringe durante a deglutição, e diminuição da força de êmbolo da base da língua ocasionadas pela dor no pós-operatório.
Apesar disso, nos dois casos em que houve penetração, a proteção das vias aéreas inferiores manteve-se íntegra, tendo os dois expulsado os resíduos prontamente.
Futuros estudos, no entanto, devem abordar potenciais riscos de amigdalectomia em pacientes particularmente portadores de doenças neurológicas que já apresentem um padrão de deglutição alterado.
CONCLUSÃOPodemos concluir que na recuperação pós-operatória de amigdalectomia há disfunções da fase faríngea da deglutição, sendo os aspectos mais relevantes:
- Aumento do número de deglutições necessárias para sensação de limpeza em faringe, ou seja, diminuição do clearance.
- Presença de alimento nos seios piriformes em grande parte dos pacientes (66,6%) enquanto relatavam sensação de limpeza da faringe e laringe.
- Não houve escape posterior de alimento.
- Não houve refluxo nasal.
- Não houve aspiração.
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Médicos Residentes do Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa e Hospital Irmãos Penteado de Campinas.
Médico Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa e Hospital Irmãos Penteado de Campinas.
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