1 Preceptor da residência médica da Santa Casa e Hospital Irmãos Penteado de Campinas; ambulatório de disfagia da Unicamp. 2 Coordenador da residência médica de ORL da Santa Casa e Hospital Irmãos Penteado de Campinas. 3 Responsável pelo setor de disfagia neo-natal da Maternidade de Campinas; pós-graduanda do ambulatório de disfagia da Unicamp. 4 Professor-doutor de otorrinolaringologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. 5 Fonoaudióloga.
Depto. de ORL da Irmandade de Misericórdia de Campinas: Santa Casa e Hospital Irmãos Penteado. Endereço para correspondência: Ari de Paula - Av. Júlio de Mesquita, 960, 18o andar; Bairro Cambuí, Campinas, SP - 13025-061 - Fones: (0xx19)3232.4478/3236.8972 - e-mail: aripaula@hotmail.com
Artigo recebido em 9 de agosto de 2001. Artigo aceito em 15 de outubro de 2001.
Introdução
A disfagia infantil está assumindo uma importância cada vez maior, tanto dentro da pediatria como em áreas afins como a otorrinolaringologia, fonoaudiologia, pneumologia e gastroenterologia, destacando-se exatamente o estudo interdisciplinar que esta área exige.
A primeira necessidade de uma criança ao nascer relaciona-se com a respiração, e a segunda é justamente a alimentação. Qualquer distúrbio na sucção, na coordenação respiração-deglutição, ou no controle neuro-muscular para propulsão do leite materno para a faringe, esôfago e estômago, pode desencadear, poucas horas após o nascimento, uma situação de risco que deve ser imediatamente diagnosticada e controlada. Diferentes enfermidades que cursam com malformações estruturais comprometendo o sistema estomatognático ou mesmo distúrbios neuro-motores (centrais ou periféricos) podem manifestar clinicamente a disfagia em qualquer etapa da infância. Seguramente as lesões cerebrais (ex.: traumatismo crânio-encefálico, episódios isquêmicos e hemorrágicos) constituem a maioria das causas de disfagia. Segundo estudos em adultos realizados por Langmore (1995) e Smith (1999), o desconhecimento da patologia da disfagia ou a subestimação dos fatos pode acarretar graves conseqüências clínicas, como a desidratação, desnutrição e pneumopatias aspirativas.
Acreditamos, portanto, que a criança esteja ainda mais susceptível a estas complicações. A avaliação da disfagia deve ser feita pelo estudo das suas etapas oral, faríngea e esofágica. Este estudo visa demonstrar como podemos efetuar uma avaliação da deglutição, especialmente da fase faríngea utilizando um videonasofibroscópio, estudando o complexo sistema neuromuscular envolvido, e desta forma orientar um plano de terapia. Sem dúvida, o advento da videonasofibroscopia foi fundamental para o estudo da fonação (Sawashima, 1968) e deglutição (Langmore, 1988) pois é um exame que pode ser repetido quantas vezes forem necessárias, facilitando a observação da eficiência da terapêutica instituída, e apesar de desconfortável, Aviv (2000) não observou riscos em pacientes adultos na imensa maioria dos casos. Estudos já evidenciaram sua importância (Macedo, 1998; De Paula, 2000; Eckey, 2001), assim como Leder (2000) utilizou metodologia semelhante para avaliar crianças, porém este último grupo necessita de aprofundamento, especialmente no Brasil.
A videofluoroscopia seria o exame mais preciso, porém tem o inconveniente de ser muito caro, com poucos locais disponíveis dificultando o acesso a este procedimento. Além disso não se pode desprezar a irradiação emitida (Wright, 1998). Conscientes que este exame tem importância no diagnóstico funcional do distúrbio disfágico e de sua imediata utilização terapêutica, fazemo-lo em conjunto com uma fonoaudióloga com experiência na patologia. Apresentamos então 10 casos de disfagia pediátrica avaliados através da videonasofibrolaringoscopia, o que chamamos de videoendoscopia da deglutição (VED), mostrando os detalhes de cada exame.
Material e Método
Foram avaliadas 10 crianças encaminhadas com dificuldade no processo de alimentação, entre 45 dias e 5 anos de idade, com média de 1 ano e 9 meses, sendo 9 crianças do sexo masculino e apenas 1 do sexo feminino. Foram submetidas à anamnese dirigida para os distúrbios da deglutição. A seguir todas foram avaliadas pela videoendoscopia e na sistemática da avaliação a mãe da criança foi orientada a trazer a criança em estado de alerta e faminta para que pudéssemos alimentá-la durante o exame. O exame foi realizado com o paciente sentado no colo da mãe e todo o procedimento foi gravado. Previamente ao fibrodeglutograma avaliamos clinicamente a criança. A avaliação da fase oral conta de observação de organização corporal, como coordenação de atos voluntários ou involuntários assim como presença ou não de alteração de tônus. Desta forma palpamos os músculos faciais; bucinadores, masséteres, sub-mentonianos, língua, bochecha e palato mole.
Avalia-se também o grau de resposta para repulsa, sucção, mordida e o reflexo nauseoso a toques digitais. Em crianças menores testamos a sucção estimulando com o dedo mínimo o palato duro e a língua avaliando também sua força. Nas maiores solicitamos que mordessem o dedo fletido do examinador para avaliar a força dos músculos mastigadores. Em seguida, realizamos a videonasofibroscopia. O exame é feito com o nasofibroscópio Machida 3,2 acoplado a micro-câmera Sony conjugado a sistema de TV e vídeo, sem uso de anestésico, utilizando-se da narina com melhor permeabilidade após algumas gotas de vasoconstrictor tópico, com a criança em contenção no colo da mãe. Neste momento foi observada a intensidade de respostas de repulsa à introdução da fibra.
Os seguintes itens foram observados:
· A presença do choro, classificado como sendo forte ou fraco, ou até mesmo inexistente. · Permeabilidade das fossas nasais e cavum. · Mobilidade do véu palatino. · Aspecto estrutural da hipo-faringe e laringe à movimentação das pregas vocais. · Também avaliamos a presença de saliva em valéculas ou seios piriformes, ou até mesmo no vestíbulo ou regiões glóticas. Caso observássemos excesso de saliva mesmo após alguns movimentos deglutórios, havia então uma forte indicação de déficit do "clearence" com grandes possibilidades de aspiração, de forma que, por segurança, não dávamos prosseguimento ao exame. · A avaliação da deglutição é feita pelo oferecimento de alimento desviando a atenção da criança de defender-se do "corpo estranho" já que, faminta, ela prioriza a alimentação "esquecendo-se" do nasofibroscópio. · "Clearance" · Penetração · Aspiração · Tosse
Durante a amamentação avaliamos, então, a eficiência de limpeza após movimentos de deglutição ("clearance") de acordo com a consistência do alimento dado, assim como a presença de penetração de alimento em vestíbulo laríngeo, de forma que dividimos em penetração alta (até aproximadamente a metade da face laríngea da epiglote) e penetração baixa (envolvendo bandas ventriculares, mais propícios a aspirações). Avaliamos também eventuais aspirações, quando o alimento ultrapassava a glote com conseqüente presença de reflexo da tosse ou não, e se presente, eficiente ou não. É importante assinalar que a observação seja dinâmica, aliada à história clínica foi levada em consideração na análise final, e não apenas um determinado momento do exame. O exame objetivo durou cerca de 20 minutos. A seguir, retiramos o nasofibroscópio e ainda captamos uma última imagem mostrando a amamentação da criança na postura habitual. Sem estresse podemos observar de que forma a criança faminta amamentava. Numa segunda etapa, toda a equipe estudava cada fase do exame em vídeo, utilizando-se inúmeras vezes dos mecanismos de controle, como, paradas de imagens ou em câmera lenta em momentos importantes para a conclusão do quadro. Uma vez concluído o quadro, planejávamos em equipe o princípio terapêutico fonoaudiológico mais adequado para cada caso.
Resultados
Os resultados detalhados de cada caso encontram-se nas Tabelas 1, 2 e 3.
A Tabela 1 mostra cada caso, iniciais do nome dos pacientes, idade, o sinal ou sintoma principal que indicou o exame, o sexo e a hipótese diagnóstica no momento da avaliação que nem sempre já estava esclarecida, assim como algumas informações consideradas importante de cada caso. A segunda coluna da Tabela 2 representa eventuais alterações encontrada na fase oral da avaliação e da VED. Consideramos na fase oral a avaliação objetiva do sistema estomatognático, tanto motor como sensitivo, assim como observação de eventuais distúrbios como escape labial, movimentos mastigatórios ou de sucção.
A terceira coluna, já com a presença do nasofibroscópio flexível, foi dividida em: · Consistência: qual o tipo de consistência alimentar utilizada para a avaliação. · "Clearance": se a limpeza dos recessos faríngeos após a deglutição foi eficiente ou ineficiente, considerando eficiente uma limpeza total do hipofaringe após 3 movimentos de deglutição, e ineficiente quando excede este número de movimentos. · Penetração alta: presença de resíduos alimentares na metade superior do vestíbulo laríngeo. · Penetração baixa: presença de resíduos alimentares na metade inferior do vestíbulo laríngeo. · Aspiração: presença de resíduos alimentar e/ou salivar em regiões infra-glótica. · Reflexo da tosse: consideramos se estava presente ou ausente, e quando presente, avaliamos se havia eficiência ou não.
Na Tabela 3 mostramos os princípios terapêuticos. Como este aspecto é muito amplo dentro da Fonoaudiologia, foram descritos apenas algumas estratégias terapêuticas relevantes para os casos apresentados.
Discussão
A análise dos resultados e a comparação entre os dados obtidos nos grupos A e B permite diferenciá-los a partir de diversos aspectos.
A sintomatologia laríngea do RGE já está bem estabelecida na literatura e inclui, como sintomas mais comuns, disfonia, tosse, globus faríngeo e pigarro5,7,10,12. O globus faríngeo é também citado por Woo e é defendido como um sintoma inespecífico de irritação laríngea em cuja etiologia o RGE tem grande participação17. Os sintomas desta doença assumiram uma importância tão grande que, em muitas situações, são mais considerados para o diagnóstico do que os exames complementares15,17. Tal afirmação baseia-se também no fato de que o diagnóstico de certeza do RGE muitas vezes não pode ser conseguido através de um único exame. A maioria dos autores utiliza a associação de diversas técnicas, associada à história clínica, para estabelecer o diagnóstico5,7,13,15.
Os sintomas encontrados pelos autores no grupo B confirmam os dados da literatura. Contudo, os achados do grupo A, que deveriam ser tão ou mais notáveis que os do grupo B, visto que os sintomas esofágicos neste grupo são mais intensos e de mais longa evolução, não se confirmam. A disfonia foi encontrada em 50% dos pacientes do grupo B e em apenas 11% do grupo A. A tosse também foi mais prevalente no grupo B. O único sintoma laríngeo que foi prevalente de maneira proporcional em ambos os grupos foi o globus faríngeo, que apareceu em 89% dos pacientes do grupo A e em 77% dos pacientes do grupo B. Os sintomas típicos tiveram um aparecimento semelhante em ambos os grupos, com exceção da regurgitação.
Quanto aos exames complementares, a laringoscopia é defendida como exame essencial em pacientes com queixa de RGE7,15. São exames importantíssimos também a pHmetria (atualmente realizada com sonda dupla17), a manometria e a EDA. No presente trabalho foram realizadas apenas a laringoscopia, visando encontrar alterações laríngeas (paquidermia interaritenoidea, edema laríngeo, hiperemia das aritenóides, espessamento mucoso17) e a EDA, buscando correlacionar os achados gástricos e esofageanos dos dois grupos.
Novamente as diferenças dos dois grupos são bastante evidentes. Quanto à EDA, registrou-se a presença de 54% de exames normais em pacientes do grupo B, contra 100% de exames alterados nos pacientes do grupo A. Às laringoscopias, os achados inverteram-se. Os autores encontraram maior número de alterações no grupo B em relação ao grupo A. Note-se que o grupo que obteve maiores alterações de trato digestivo apresentou muito menos alterações laringoscópicas, fortalecendo a idéia de que não existe correlação entre o grau de doença esofageana e as queixas laringológicas. Baseados nos dados acima os autores sugerem que, apesar de serem doenças com fisiopatologias bastante próximas e, muitas vezes apresentarem sintomas sobrepostos, as alterações laríngeas causadas pelo RGE e a doença esofágica (esofagite), originária também do refluxo, não devem ser consideradas como diferentes estágios evolutivos de uma mesma doença. A presença de alterações laríngeas, muitas vezes mais graves em pacientes com menos distúrbios esofágicos, sustentam tal afirmação.
Conclusão
Os resultados do presente trabalho demonstram a forte correlação entre sintomas otorrinolaringológicos e o refluxo gastro-esofágico, que é uma patologia do sistema digestivo muitas vezes subdiagnosticada em nosso meio. A comparação entre um grupo com doença esofageana estabelecida e avançada, já com indicação cirúrgica, e um grupo com queixas principalmente laríngeas permitiu concluir que, apesar dos quadros apresentarem fisiopatologia semelhante, não se tratam de estágios evolutivos da mesma doença.
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