IntroduçãoA cafeína é a substância psicoativa mais usada no mundo1. Cerca de 80% da população geral faz uso dessa substância diariamente, seja pelo consumo de café, chá, chocolates, refrigerantes ou medicamentos à base de cafeína. O café é a fonte mais rica em cafeína2. Após a ingestão oral, a cafeína é rapidamente eliminada com meia-vida de quatro a seis horas3.
O consumo moderado de café é definido como uma ingestão diária que varia de 200 a 300 miligramas2. Define-se consumo excessivo como ingestão acima de 600 mg/dia4. Uma xícara de café brasileiro (60 ml) contém, em média, 50,4mg de cafeína2, podendo variar segundo autores, de 85 mg a 125 mg5.
Sob condições experimentais, a cafeína, em doses moderadas, produz ótimo rendimento físico e intelectual, aumento da capacidade de concentração e diminuição do tempo de reação aos estímulos sensoriais6. Por outro lado, doses elevadas podem causar sinais perceptíveis de confusão mental e indução de erros em tarefas intelectuais, ansiedade, nervosismo, tremores musculares, taquicardia e zumbido3,6. A suspensão súbita da ingestão de cafeína pode levar à abstinência. Os sintomas mais comuns são fadiga, ansiedade ou depressão, náuseas, vômitos, cefaléia e diminuição da concentração7,8. A ocorrência de ansiedade com a retirada súbita da cafeína ocorre mesmo em indivíduos que consomem doses baixas dessa substância (50 a 150 mg/dia)9.
As orientações sobre a suspensão da ingestão do café para a realização do teste vestibular variam de serviço para serviço. Alguns autores recomendam que o paciente suspenda o consumo de café por 72 horas antes do exame10,11. Outros indicam a suspensão por 48 horas12,13 ou por 24 horas14,15. Há aqueles que orientam evitar o consumo de café no dia do exame16,17 e aqueles que não fazem qualquer restrição à ingestão18-20.
Manter o paciente tranqüilo durante a realização do teste vestibular é fundamental, pois o estresse e a ansiedade podem levar à ocorrência de alterações no traçado do exame, principalmente a hiperreflexia calórica21,22, induzindo ao diagnóstico errôneo de uma enfermidade vestibular18. Esse estudo tem o objetivo de avaliar o efeito da ingestão de café em doses moderadas no resultado do teste vestibular.
Material e MétodoEste é um estudo comparativo, transversal, pareado, em que o grupo em estudo foi o paciente em uso de cafeína, de acordo com seus hábitos; e o grupo controle, o mesmo paciente sem o uso dessa substância. Considerando que entre os alimentos que contêm cafeína o café é o que mais contribui para a sua ingestão2, os pesquisadores definiram a concentração de cafeína a partir da ingestão de café diária dos participantes.
Participaram da pesquisa indivíduos encaminhados dos diversos postos de saúde da cidade de Belo Horizonte, com indicação feita por médico otorrinolaringologista para realização do teste vestibular.
Dezenove pacientes com sintomas vestibulares que ingeriam cafeína habitualmente participaram desse estudo. Nenhum deles havia se submetido ao teste vestibular previamente, ou apresentava quadro clínico compatível com labirintopatia central.
Em um primeiro momento, os pacientes foram submetidos ao teste vestibular seguindo as orientações adotadas no Serviço de Audiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da UFMG, que são: suspensão de medicamentos não-essenciais e bebidas alcoólicas por 72 horas antes do exame; de cigarro e cafeína (café, chocolate, refrigerantes) por 24 horas antes do exame; e permanência em jejum por 3 horas antes do exame. Em um segundo momento, os mesmos indivíduos submeteram-se ao mesmo teste vestibular realizado, porém, por um profissional diferente daquele que realizou o primeiro teste. Os testes vestibulares foram realizados por examinadores diferentes, para que o paciente não ficasse habituado ao examinador no segundo teste. Isto manteve o paciente alerta nos dois exames. Os examinadores foram previamente treinados, de modo que o primeiro teste fosse exatamente igual ao segundo.
As orientações para o segundo teste foram as mesmas do primeiro, com o diferencial de manter-se o hábito da ingestão de cafeína como de costume.
A vectoeletronistagmografia foi o método utilizado para registrar os movimentos oculares, aplicando-se a disposição triangular de eletrodos23. Utilizou-se o equipamento da marca Contronic do Brasil versão 5. A avaliação do equilíbrio constou das seguintes etapas: exame clínico com óculos de Frenzel, teste de motricidade ocular e prova calórica. Avaliaram-se os movimentos oculomotores de sacade, rastreio e optocinético, além do nistagmo espontâneo e semi-espontâneo. A avaliação vestibular incluiu prova calórica nas temperaturas de 30oC e 44oC com água. Os dados gerados por este estudo foram analisados no programa estatístico EPI-INFO 6.04. Na comparação estatística, aplicou-se o teste McNemar para análises pareadas. O nível de significância estatística considerada para esse estudo foi de 5%.
O projeto e o consentimento foram analisados e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. Todos os sujeitos envolvidos consentiram na realização desta pesquisa e na divulgação de seus resultados, conforme a Resolução nº196 de 1996.
ResultadosA idade média dos participantes foi de 49,5 anos, variando de 21 a 76 anos. Todos os sujeitos eram do sexo feminino. O consumo médio diário de café da população estudada foi de três xícaras (Tabela 1).
A avaliação dos sintomas clínicos mais freqüentes em relação ao teste vestibular, com ou sem a ingestão de café, está no Gráfico 1. Três pacientes não responderam ao questionamento. Maior prevalência de cefaléia e ansiedade ocorreu nos pacientes submetidos ao teste vestibular com a suspensão do café (p=0,01).
Considerando-se a escolha do paciente, 13 (68,4%) preferiram submeter-se ao teste vestibular com a ingestão habitual de café. Entre esses 13 pacientes, as queixas relacionadas à suspensão súbita da bebida foram: ansiedade (92,3%), cefaléia (69,3%), sensação de náusea e vômito (38,5%), e vertigem mais intensa durante o exame (38,5%). O Gráfico 2 demonstra que a freqüência dos sintomas de abstinência cresceu com o aumento da dose diária de cafeína para esses pacientes.
No resultado do teste vestibular, nenhuma anormalidade foi observada quanto à calibração ou medição dos movimentos oculomotores com e sem a suspensão do café. Em relação à prova calórica, não houve diferença estatisticamente significativa entre os resultados encontrados com e sem café, considerando-se como normais os valores de predomínio labiríntico e predominância direcional do nistagmo de até 33%. A análise pareada dos dados referentes à prova calórica está demonstrada na Tabela 2.
DiscussãoConcordando com estudos prévios, a tontura é queixa mais freqüente no sexo feminino e predomina entre a quinta e sexta décadas de vida para ambos os gêneros19,24.
A preferência pelo teste vestibular realizado com o consumo habitual de café (68,4%) pode se justificar pela maior ocorrência de ansiedade e cefaléia associadas ao teste com a orientação para se interromper a ingestão de cafeína (p=0,01).
A síndrome de abstinência da cafeína pode ocorrer após suspensão abrupta para aqueles habituados à ingestão moderada ou de baixas doses de cafeína20,21. Nesse estudo, a maioria dos participantes estava habituada à ingestão diária de doses moderadas de cafeína (três xícaras de café ao dia)2. As queixas de ansiedade e cefaléia cresceram com o aumento da dose diária de ingestão de cafeína. Logo, esses sintomas presentes no teste com interrupção prévia de ingestão de café poderiam ser manifestações da síndrome de abstinência da cafeína, o que poderia interferir negativamente no resultado do teste vestibular. A ansiedade é capaz de provocar alterações no traçado vectoeletronistagmográfico, levando ao diagnóstico errôneo de enfermidade vestibular18.
O teste vestibular é um tipo de exame que pode gerar apreensão no paciente. No presente estudo, o teste com a orientação para se interromper a ingestão de café foi o primeiro a ser realizado. Assim, a ansiedade poderia estar associada a dois fatores: 1) temor em relação ao exame; 2) síndrome de abstinência da cafeína. A maior freqüência de cefaléia no teste com suspensão prévia de ingestão de cafeína, por outro lado, não se justificaria pelo desconhecimento do paciente em relação ao exame. Interessantemente, a cefaléia é importante sintoma na síndrome de abstinência da cafeína12.
As ações farmacológicas da cafeína são bem conhecidas. Em doses moderadas, mantêm o indivíduo alerta, com uma capacidade intelectual maior e mais constante, favorecendo associação elaborada de idéias e diminuindo o tempo de reação aos estímulos sensoriais6. A melhora no processo de compensação vestibular tem sido demonstrada25-27. Em doses elevadas, a cafeína é tóxica para o sistema vestibular. Pode provocar comprometimento dos sistemas de convergência e acomodação, diminuição dos movimentos sacádicos e disfunção vestibular periférica28.
A influência de fatores psicológicos durante a realização do teste vestibular tem sido considerada na qualidade do exame. Manter o paciente tranqüilo e, ao mesmo tempo, alerta é fundamental. Nesse estudo, o resultado do teste vestibular foi semelhante com ou sem a ingestão de café. Portanto, a suspensão da ingestão de doses baixas ou moderadas de cafeína antes do teste vestibular deve ser reavaliada, uma vez que, nos indivíduos habituados ao consumo diário dessa bebida a suspensão pode desencadear reações psíquicas de ansiedade não-desejáveis para um indivíduo que vai se submeter ao teste vestibular.
ConclusãoNo presente estudo, os resultados do teste vestibular após ingestão de doses moderadas de café foram semelhantes aos resultados com suspensão da ingestão 24 horas antes do teste. A suspensão mostrou-se, pois, desnecessária. Em relação à ingestão de café nas orientações antes do teste vestibular, a ingestão moderada (até 3 xícaras/24 horas) pode ser permitida, com restrição para última ingestão até 6 horas antes do exame (meia vida da cafeína).
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1 Fonoaudióloga do Hospital das Clínicas da UFMG.
2 Fonoaudióloga do Hospital das Clínicas da UFMG.
3 Doutora em Medicina Tropical pela Faculdade de Medicina-UFMG Otoneurologista, Professora Adjunto do Departamento de
Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG.
4 Mestre em Lingüística pela FALE-UFMG, Fonoaudióloga, Professora Assistente do Curso de Fonoaudiologia da UFMG.
Universidade Federal de Minas Gerais.
Endereço para correspondência: Denise Ustch Gonçalves. Avenida Alfredo Balena 190 sala 3005 Santa Efigênia Belo Horizonte MG.
Artigo recebido em 10 de junho de 2005. Artigo aceito em 21 de setembro de 2005.