ISSN 1806-9312  
Segunda, 29 de Abril de 2024
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33 - Vol. 20 / Edição 5 / Período: Setembro - Outubro de 1952
Seção: Trabalhos Originais Páginas: 163 a 178
O TESTE AUDIOMÉTRICO NA EDUCAÇÃO DA CRIANÇA SURDA (*)
Autor(es):
Dr. ARMANDO PAIVA DE LACERDA

Ex-diretor do Instituto Nacional de Surdos-Mudos - Orientador técnico do Núcleo Educacional para Crianças Surdas da Capital de São Paulo

A presente comunicação, constitui assunto que envolve problema audiológico e, portanto, de evidente interesse para os otorrinolaringologistas, embora também da alçada de outros especialistas e educadores.

A audiologia é uma ciência complexa, como salientou Holmgren no Curso Internacional de Audiologia, realizado em Stockolm, em 1950, quando teve ocasião de dizer que ela envolve e pressupõe um trabalho de equipe entre vários ramos da ciência, como a anatomia, a patologia, a fisiologia e a neuro-fisiologia, a acústica, a psicologia e as ciências sociais, mas considerando a otologia o principal ramo desta nova atividade cientifica.

Do mesmo modo, no Simpósio de Audiologia, que se efetuou em fins do ano passado nos Estados Unidos, mostrou-se a amplitude do campo da audiologia, por atuarem nele otologistas, ortofonistas, professôres de surdos, físicos, psicologistas, fisiologistas e outros, além dos aspectos médico-social e sócio-econômico, que também apresenta o problema audiológico.

Estudando o papel do otologista em audiologia, Gordon Hoople teve oportunidade de se referir, neste conclave, a responsabilidade que lhe cabe em face da complexidade do problema, salientando a conveniência de que adquira conhecimentos relativos a outros ramos da ciência audiológico.

No que concerne à educação da criança surda, a colaboração entre especialistas que se dedicam a estudos audiológicos, muito poderá contribuir para que se obtenham resultados pedagógicos mais perfeitos, além de possibilitar a realização de trabalhos experimentais em maior escala.

Podemos dividir a presente comunicação em duas partes

1.ª) a que informa sôbre o valor do teste audiométrico na seleção das crianças com audição residual, para fins de aplicação pedagógica;
2.ª) a que revela a importância do teste audiométrico na aferição dos resultados do ensino auditivo - visual, aplicado a essas crianças.

1.ª parte - SELEÇÃO AUDIOMÉTRICA DA AUDIÇÃO RESIDUAL

Um meio prático de aplicação pedagógica dos resultados do teste audiométrico, por nós estabelecido em nossas pesquisas no I.N.S.M., foi incluído na publicação "Aspectos da Surdez na Pesquisa Audiométrica", sendo constituído pela curva de aproximação, revelando os limites tonais e os níveis audiométricos até os quais pode haver indicação ao ensino auditivo.

Tal curva, corresponde aproximadamente, a que representa o quartil da audição residual dos surdos-mudos, ou seja o grupo de crianças em relação às quais se torna possível a utilização pedagógica dêsses resíduos auditivos.

A curva representando o limite aproximado da audição residual utilizável deve ser apreciada sob dois aspectos:
1.º) altura tonal;
2.º) níveis audiométricos.

Como geralmente se admite, no exame audiométrico de pessoas ensurdecidas e também de crianças surdas ou duras de ouvido, a área tonal considerada importante para interpretação dos sons da fala é a que se estende de 256 a 2.048 ou 4.096 ciclos, limites que se encontram até impressos em fichas audiométricos de alguns fabricantes de aparelhos medidores. Conforme a colocação da audição do paciente nessa área tonal, é que se costuma fazer a indicação dos aparelhos de prótese auditiva, inclusive como recurso acústico para auxiliar o ensino que se aplica às crianças com audição residual.

Acontece, porém, que essa área tonal da fala, abrangendo um campo de vogais e outro de consoantes, refere-se aos sons da língua inglesa, não se aplicando inteiramente à nossa, cuja estrutura fonética é diferente.

Muito embora não tenham sido efetuados estudos de avaliação da estrutura acústica dos sons da nossa língua, fácil é deduzir-se, que um campo mais extenso de frequências se torna necessário à recepção e interpretação dos sons que a constituem, principalmente em relação as frequências mais baixas, como a 128, indispensáveis a percepção das vogais, ou seja dos sons fundamentais do nosso idioma, no qual possuem maior valor acústico.

Mas, mesmo em relação a fonética inglesa, cuja estrutura acústica já foi bem estabelecida, divergem os autores, alguns deles admitindo área tonal bem mais extensa, sobretudo no que se refere as frequências mais elevadas, correspondentes a algumas consoantes da língua inglesa, colocadas no espectro tonal entre 3.000 e 8.000 ciclos (Fletcher, Grandall, Paget).

A importância de área tonal mais extensa, torna-se evidente, em se tratando do exame das crianças surdas, por não possuírem memória auditiva dos sons da fala para o suprimento mental, indispensável a interpretação dêsses sons em zona tonal mais reduzida.

Já o mesmo não sucede às pessoas ensurdecidas, que, como nós outros, dispondo de linguagem, podem fazer o suprimento mental, permitindo que marcações audiométricas dentro de zona tonal menos extensa, sirvam de indicação ao uso de aparelhos de prótese auditiva.

Foram estes fatos que nos conduziram à curva de valor prático, representando o limite aproximado de audição residual utilizável pelo ensino auditivo, de acordo com as observações baseadas no exame das curvas audiométricas de alunos do I.N.S.M. e nos resultados dêsse ensino. Dai se haver considerado como limite aproximado para indicações nesse sentido o campo que se estende de 128 a 4.096 ciclos, com marcações em níveis que não excedam, em sua maioria, a 80 decibéis, na curva de pelo menos um dos ouvidos, conforme se vê na fig. 1.


Fig. 1


A experiência nos tem revelado que, apesar dos recursos da amplificação sonora, não se consegue suficiente discriminação dos sons da fala, permitindo o desenvolvimento da linguagem pelo ouvido, quando se obtem marcações em níveis mais elevados, ainda que situadas dentro da área tonal mais admitida para a fala.

No limite aqui indicado é evidente, que nem todos os alunos podem corresponder as exigências do ensino auditivo, dependendo a continuidade dêsse ensino, dos resultados obtidos num período de experimentação em aula, bem como da capacidade mental do aluno.

A curva indicadora do campo mínimo de audição residual utilizável, assume ainda outra significação pedagógica. Nos casos em que a perda auditiva ultrapassar esse limite, os resíduos existentes poderão ser aproveitados pelo ensino oral para melhorar a inflexão e a modulação da voz, assim como o ritmo da fala, o que representa valioso auxílio a esse ensino.

NIVEIS AUDIOMÉTRICOS

Como se vê, é grande a importância que adquirem os níveis audiométricos, além da altura tonal, para se distinguir e compreender os sons da fala.

O critério da maioria de níveis em 80 decibéis, estabelecido em nossa curva, atende, portanto, a esse segundo aspecto da audição residual para a interpretação dos sons da fala.

O teste audiométrico, como se sabe, nada mais é que uma medida do limiar de audibilidade, através um campo de frequencias, por meio de níveis de intensidade, representados pela escala de decibéis, que podem ser também estabelecidos para se medir os sons da fala, após indispensável balanceamento fonético de cada língua. Nas interpretações relativas a linguagem deve-se, sobretudo, levar em consideração a discriminação de níveis correspondentes às frequências do campo tonal, como têm sido definidos por alguns autores.

Na opinião de Goldstein, por exemplo, pela colocação da criança surda na área tonal de 300 a 3.000 ciclos, em determinado nível de intensidade, que não deve ser ultrapassado, conclui-se se ela pode ou não receber o ensino acústico.

Hughson e Thompson, por sua vez, estabeleceram níveis audiométricos em relação à recepção dos sons da fala e à capacidade de compreendê-la.

A correlação entre os audiogramas e a capacidade de ouvir e compreender a fala, foi ainda conseguida praticamente por Bunch, que nos revela nas curvas aqui reproduzidas (fig. 2) os níveis de perda auditiva até os quais se torna possível distinguir a fala. A curva inferior em linha pontilhada, foi considerada por esse autor, como "limite da audição útil para a fala" e o espaço compreendido entre êste limite e as curvas obtidas em qualquer pessoa, foi denominado de "área da audição útil".

Como se vê, a curva de Bunch, é algo semelhante a nossa, com os mesmos limites tonais, mas diferindo quanto aos níveis audiométricos, que se mostram mais elevados a partir de 512 ciclos.

A importância dos níveis audiométricos de intensidade, na interpretação dos sons da fala, bem como o valor prático dos limites estabelecidos em nossa curva de audição residual, ressalta ainda da seguinte observação.

A fig. 3 mostra-nos audiograma de um aluno do I.N.S.M., duro de ouvido, em que se nota uma curva bem mais extensa do ouvido esquerdo, situada em níveis relativamente favoráveis, ao lado de uma curva do ouvido direito que vai de 256 a 2.048 ciclos (área habitualmente considerada como correspondente aos sons da. fala) e situada em níveis muito elevados, variando de 90 a 100 dbs. Neste caso, o exame pela voz alta, revelou no ouvido esquerdo apreciável audição até 2 metros de distância, ao passo que pelo ouvido direito não conseguiu o aluno distinguir qualquer fonema, mascarando-se o lado oposto com o dispositivo Pilling-Witting.


Fig. 2


Igualmente demonstrativas da importância das níveis audiométricos para a diferenciação e compreensão dos sons da fala e consequente indicação pedagógica, são as duas novas observações, obtidas no Serviço de Assistência Pedagógica à Criança Surda do Centra Auditivo Telex do Rio de janeiro, serviço esse dirigido pelo Prof. Jorge Mário Barreto.

Trata-se de dois alunos dêsse cursa, sendo um do sexo masculino, com 13 anos de idade e um do sexo feminino, com 10 anos de idade, tomando-se por referência o ano de 1951, quando foram iniciadas estas observações.

Ambos receberam sempre o ensino oral, sendo que a menina a partir de 4 anos e meio e o menino a partir de 9 anos. A aluna recebeu ensino individual e particular e o aluno durante 3 anos frequentou o I.N.S.M. e, depois disso, tem recebido também ensino individual e particular.

Ambos revelam bastante inteligência, aprendizagem rápida e boa aplicação.

Apenas há 3 meses a menina vem recebendo ensino auditivo, pois só então, foi apurada sua capacidade auditiva residual, por meio de audiograma, (fig. 4), embora já distinguisse algumas palavras pronunciadas em voz alta junto ao pavilhão auricular. O menino vem recebendo estímulo auditivo há 1 ano, tendo anteriormente, feito audiograma (fig. 5), mas não revelando audição de palavras durante o exame à voz (*).


Fig. 3



Fig. 4



Fig. 5


DESENVOLVIMENTO PEDAGÓGICO

A aluna após 3 meses de ensino, já faz ditado (a princípio visualauditivo, depois só auditivo), de pequenas frases e palavras, identifica diversos ruídos. Melhorou muito a articulação das palavras proparoxítonas. Palavras ou frases escritas, já são identificadas auditivamente, através de dispositivo eletro-acústico.

O aluno após um ano, identifica com relativa facilidade, diversos ruídos e palavras isoladas. Entretanto, apesar da amplificação sonora, só com imenso esforço, consegue interpretar algumas frases, que anteriormente já haviam sido treinadas e que agora são repetidas sem o auxílio da leitura labial, para sua identificação exclusivamente auditiva.

CONCLUSÃO

A aluna, dispondo de melhor nível de audição residual, demonstra poder prosseguir, com vantagem, no ensino auditivo, não se desprezando, é claro, o auxilio da leitura labial.

O aluno, cujas marcações audiométricas se situam em níveis mais elevados, demonstra só poder prosseguir no ensino oral, tendo como auxílio dêsse ensino os resíduos auditivos que possui.

2.ª parte - AFERIÇÃO AUDIOMÉTRICA DOS RESULTADOS DO ENSINO AUDITIVO-VISUAL

Estudando a perda auditiva de alunos do I.N.S.M., em publicações aqui e no estrangeiro, prestando-se a observação e interpretação de alguns fatos do domínio da fisiologia e da físio-patologia da audição, tivemos ocasião de verificar, com a colaboração do dr. Alfredo Eugênio Vervloet, as alterações das curvas audiométricas, em testes subsequentes, demonstrando a existência, em certo número deles, do processo progressivo.

Notamos, entretanto, que a maioria dessas crianças não oferecia alterações significativas das marcações anteriores, constituindo o maior número destes alunos as classes auditivas, onde eram submetidos a exercícios acústicos, associados a outros meios de estimulação sonora.

Admitimos, assim, a possibilidade de manutenção do registro audiométrico das crianças submetidas a treinamento auditivo. Além disso, com o aproveitamento mais perfeito da audição residual dêsses alunos, foi-nos possível apresentar dois casos em que observamos a influência mais favorável do treinamento auditivo sôbre os níveis originais dos respectivos audiogramas.

Num destes casos, constituído por aluno duro de ouvido, as modificações dos registros anteriores revelaram melhora sensível da audição, 8 meses depois, variando de 10 a 20 dbs. sôbre toda a extensão do campo tonal de ambos os ouvidos, coincidindo tais modificações com o maior aproveitamento do aluno em aula (fig. 6).


Fig. 6


Agora, reune-se a esses dois casos, a observação da aluna do curso Telex já referida anteriormente com a apresentação do seu primeiro teste audiométrico, que evidenciou a possibilidade de maior aproveitamento no ensino auditivo.

Este caso torna-se mais demonstrativo, por se tratar de criança surda com audição residual e por ter sido possível fazer a aferição audiométrica do progresso auditivo, acompanhada do registro dos resultados obtidos em aula, quanto ao desenvolvimento da linguagem, graças a colaboração prestada pelo Prof. Jorge Mário Barreto, que nos forneceu os elementos necessárias a presente observação.

Nesta aluna, notou-se além das modificações favoráveis dos níveis originais, novos registros de frequências, que não haviam sido percebidas nos testes anteriores.

Do 1.º para o 2.9 teste, praticado 11 meses depois, observou-se pequena alteração dos níveis (5 a 10 dbs.), mas já se verificou o registro de mais uma frequência nas curvas de ambos os ouvidos (8.192 no O.E. e 9.747 no O.D.), fig. 7.

Do 2.º para o 3.º teste, 6 meses após, acentuou-se a melhora das curvas de ambos os ouvidos, quer quanto aos níveis das limiares, quer quanto a marcação de frequências (64 em ambos os ouvidos e 9.747 no O.E.), fig. 8.

Confrontando-se o 1.º com o 3.º teste, observa-se, nas curvas comparativas dos ouvidos, diferenças de níveis, variando de 10 a 20 dbs., além da percepção de mais duas frequências no O. D. (64 e 9.747) e mais três no O. E. (64, 8.192 e 9.747), figs. 9 e 10.


Fig. 7



Fig. 8


O aparêlho usado para os testes foi o audiómetro SD2 de Alfred Peters.


Fig. 9



Fig. 10


Diferenças essenciais de limiares, revelando melhora da audição superior a 10 decibéis, adquirem sempre valor nas interpretações de audiogramas, como admitem Suggit e Shambaugh. Neste caso, novos registros de frequências não percebidas nos testes anteriores, além das alterações sensíveis dos limiares originais, constituem os resultados rigorosamente apurados de uma tal aferição audiométrica, não deixando dúvidas quanto ao progresso auditivo alcançado.

Vejamos agora, como se processou o

DESENVOLVIMENTO PEDAGÓGICO

A verificação audiométrica do progresso auditivo dessa aluna, fez-se acompanhar do registro dos resultados obtidos em aula, demonstrando acentuado desenvolvimento da sua linguagem, que passamos a examinar.

Em relação ao 2.º teste audiométrico os resultados foram os seguintes:

Melhora da articulação e do ritmo articulatório. A aluna marca ritmos musicais. Mantem pequenas conversações (primeiro, visual-auditiva, depois só auditivamente). Faz ditado auditivo de textos já conhecidos. Começa a identificar palavras quase iguais, quanto ao seu valor acústico. Identifica fonemas e palavras dissílabas, trissílabas e polissílabas.

Os resultados de aula em relação ao 3.º teste, foram os seguintes:

Melhora da acentuação e do ritmo articulatório. Responde à perguntas feitas diretamente pelo ouvido (perguntas objetivas e práticas), sem auxílio visual. Mantem conversação auditiva, sôbre ocorrências e fatos da vida prática. Canta "Parabens para você", com aceitável ritmo. Recita pequenas quadrinhas. Reconhece e marca os compassos musicais de: valsa, marcha, samba e choro. Distingue os ritmos cantados dos apenas orquestrados. Faz pequenos ditados e responde à perguntas feitas à voz nua.

Experiências de orientação auditiva, foram feitas com ruídos, sons instrumentais e voz, com resultados satisfatórios.

Além do ensino especial que recebe com o Prof. Jorge Mário Barreto, a conselho dêste, frequenta, presentemente, escola de crianças ouvintes, onde cursa, com proveito, a 3.ª série primária.

Deve-se salientar que a progenitora dessa aluna, é muito dedicada e recebe orientação educacional, colaborando eficientemente no treinamento auditivo de sua filha.

COMENTÁRIO

Os casos constantes da presente comunicação, revelando melhora auditiva acompanhada do desenvolvimento da linguagem, vêm demonstrar as grandes possibilidades que oferece o ensino auditivo visual, graças ao aperfeiçoamento alcançado pela técnica pedagógica, aliado aos recursos do equipamento eletro-acústico, hoje existentes, e que foram utilizados no treinamento dessas crianças.

O principal objetivo do ensino auditivo-visual, segundo a opinião da maioria dos educadores que se dedicam ao assunto, vem a ser o desenvolvimento da linguagem da criança. Outros especialistas, porém, sem deixarem de reconhecer a importância de tal objetivo, admitem a influência favorável dos exercícios acústicos sobre a própria audição, isto é, que, por seu intermédio, a criança dispondo de apreciável campo residual, aprende não só a falar mas também a ouvir, o que equivaleria a se imitar, durante o ensino, o processo fisiológico do desenvolvimento simultâneo da audição e da fala das crianças.

Não é outra a significação do que nos diz Delacroix, apreciando os recursos da educação auditiva aplicados à criança surda: "Ela aprende a tirar partido do que lhe resta de audição. Dá-se como o despertar da função auditiva ao mesmo tempo que a criança aprende a falar".

Em sua conferência realizada em São Paulo, no ano passado, por ocasião do Congresso Latino-Americano de Otorrinolaringologia, Silverman mostrou a importância dos demais sentidos na educação da criança surda, mas admitiu que, se ela dispõe de alguma audição, esta deve ser utilizada ao máximo, pois a criança pode ouvir a palavra natural e variados sons musicais, através forte amplificação acústica.

As probabilidades são maiores, naturalmente, em se tratando de crianças surdas dispondo de maior quantidade de audição residual, ou de duros de ouvido, cujo campo auditivo é, em geral, mais extenso.

Apoiando-se em leis fisiológicas, Urbantischitsch, já admitia nas crianças surdas submetidas a exercícios acústicos "a possibilidade de melhora da atividade funcional do ouvido", observando que "os exercícios não produzem sómente a estimulação e o desenvolvimento das sensações auditivas, senão tambem a diferenciação das impressões acústicas, permitindo sua melhor interpretação".

Ainda Silverman, baseando-se nas observações de Ernaud, Urbantischitsch e Goldstein, sôbre a possibilidade de melhora da audição de pessoas surdas por meio da educação auditiva, dedicou-se a uma série de experiências, nas quais procurou obter a melhora da compreensão da fala para o uso de dispositivo eletro-acústico. Nesses exercícios utilizou não só palavras representando elementos fonéticos, em suas diversas relações, como frases requerendo ulterior síntese cerebral dos estímulos auditivos da linguagem.

Os resultados indicaram significativas melhoras quanto à compreensão da fala, interpretação de palavras e de frases, aconselhando o autor um período de treinamento acústico sistemático antes do uso de aparelhos auxiliares de audição.

Clarence O'Connor, opinando sôbre o uso de tais aparelhos por ocasião do Simpósio de Audiologia, recentemente realizado nos Estados Unidos, admite que "os hearing-aids podem auxiliar a criança no aspecto expressivo da sua comunicação pela fala, mas que seria interessante se pensar na possibilidade da criança aprender a se comunicar também pelo ouvido".

São estas algumas opiniões fundamentadas de autores, que admitem a influência favorável do treinamento acústico sôbre a própria função auditiva, o que assume importância, quer do ponto de vista otológico, quer pedagógico.

No seu livro "La Cognoscibilidad del Mundo", Jasjachij, salienta o papel da atenção e dos exercícios no desenvolvimento dos orgãos dos sentidos, citando o caso de Helen Keller, cega e surda-muda, cuja fonte de conhecimentos era apenas constituída pelo tato, a fim de demonstrar que os orgãos dos sentidos se tornam até capazes de substituição dentro de certos limites. De acôrdo com a opinião dêste autor, o desenvolvimento da função auditiva dos cegos não deve ser considerada uma "dádiva fisiológica", mas sim "o resultado da atenção e do exercício dessa função em maior escala pelos cegos do que pelos videntes", se bem que "o desenvolvimento do ouvido dos cegos, do ponto de vista constitucional seja equivalente ao destes ultimos". O mesmo se pode dizer quanto ao apuro da função visual dos surdos-mudos, e ao desenvolvimento das funções supletivas em geral, que resultam evidentemente de um trabalho, de uma atividade sensorial, que passa a ser exercida em função de novas solicitações do ambiente.

Os processos especiais de ensino se valem exatamente dessas novas condições de trabalho, de funcionamento sensorial mais intenso, ou da própria atividade sensorial a que se relacionam, como no caso dos exercícios acústicos aplicados às crianças surdas, a fim de que se possam obter resultados pedagógicos de maior significação.

CONCLUSÕES

1.ª) O teste audiométrico, ao lado das demais provas auditivas, constitui valioso recurso no exame e seleção das crianças com audição residual, para fins pedagógicos;

2.ª) A aferição audiométrica dos resultados do ensino auditivo-visual, aplicado à crianças, dispondo de maior campo residual, permitiu observar modificações favoráveis das curvas auditivas, correspondendo ao desenvolvimento da linguagem dessas crianças;

3.ª) As melhoras observadas durante o treinamento acústico, devem ser atribuidas a maior atividade da função sensorial auditiva e a seus efeitos psiquicos, aumentando a atenção da criança em relação às sensações acústicas, possibilitando a diferenciação, interpretação e memorisação dessas impressões e atingindo, finalmente, ao complexo mecanismo de formação e desenvolvimento da linguagem da criança;

4.ª) Os resultados aqui registrados devem ser apreciados à luz da fisiologia e da fisio-patologia da atividade nervosa superior, cujos principios e experiências formam a moderna escola Pavloviana, a qual vem abrir as vias para o conhecimento dos processos fisiológicos cerebrais, inclusive sensoriais, nas condições normais e patológicas;

5.ª) Do ponto de vista pedagógico, tais resultados, vêm demonstrar que, se a criança dispõe de audição residual, esta deve ser utilizada, ao máximo, pelo ensino auditivo-visual, quando mais extensa, ou mesmo pelo ensino oral, quando mais reduzida;

6.ª) Recomenda-se a prática regular da aferição audiométrica em crianças com audição residual, submetidas ao treinamento auditivo, insistindo-se, particularmente, na pesquisa das curvas auditivas de crianças que revelem, no decurso do processo pedagógico, mais rápido ou acentuado desenvolvimento da linguagem.

REFERÊNCIAS

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(*) Comunicação feita ao Departamento de Otorrinolaringologia da Associação Paulista de Medicina, na reunião de 19-8-1952.
(**) Já fizemos sentir em trabalhos anteriores, as dificuldades encontradas em interrogar a audição de crianças com menos de 7 anos de idade, dada a impossibilidade de concentração que demonstram geralmente durante o teste audiométrico, não permitindo respostas satisfatórias, como salienta Westlake. São de opinião semelhante Clarence O'Connor, quando diz ser difícil obter-se audiograma acurado em crianças de 5 ou 6 anos e Saltzman, quando se refere aos mesmos embaraços em relação às crianças com menos de 5 anos. Tem-se recorrido ultimamente a outros processos para a pesquisa da audição residual de criancinhas, como a electro-encefalografia e o teste audiométrico psico-galvânico. Os resultados ainda não podem ser considerados inteiramente satisfatórios, mas revelam, sobretudo quanto ao teste psíco-galvânico, novas possibilidades na pesquisa de resíduos de crianças em idade pré-escolar (Hoople, Bordley).
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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