1 Acadêmico do 6º ano da Faculdade de Medicina da USP.
2 Médico Docente da Disciplina de Topografia Estrutural Humana - Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP.
3 Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP. Médico Diretor do Serviço de Bucofaringologia do HCFMUSP.
Trabalho apresentado no 35º Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia - Menção Honrosa
Endereço para correspondência: Felipe S. G. Fortes - R. Fernão Cardim, 159, ap. 154 Jd. Paulista - São Paulo - SP - 01403-020
Artigo recebido em 19 de setembro de 2001. Artigo aceito em 05 de outubro de 2001.
A lesão do nervo hipoglosso é a complicação mais freqüente após a cirurgia da artéria carótida4,24, especialmente endarterectomia12 e tumor de corpo carotídeo5.
Nas últimas décadas, com a melhora nas técnicas operatórias, complicações como mortalidade e lesão do sistema nervoso central (acidente cerebral vascular e episódio isquêmico transitório) seguindo a cirurgia da artéria carótida reduziram significativamente2,21. No entanto, devido à complexidade das estruturas anatômicas ao redor da bifurcação carotídea com a proximidade de diversos nervos cranianos, a incidência de disfunção de nervos cranianos após a cirurgia continua elevada e pouca alterada nas últimas décadas, no entanto, recebendo pouca ênfase na literatura1,12,23.
A incidência de lesão de nervo craniano secundária à endarterectomia varia de 3 a 47,5%, e esta variação depende do tipo de estudo conduzido (retrospectivo ou prospectivo) e do método de avaliação utilizado2,21. Os estudos apresentam diferentes incidências de lesão de nervo craniano, e os mais freqüentemente lesados são o nervo hipoglosso (1 - 17%)8,23 e o laríngeo recorrente (1 - 8%)7,19. Outros nervos possivelmente lesados são: marginal da mandíbula1,12,21, auricular magno1,2, laríngeo superior2,7, acessório12, e mais raramente o glossofaríngeo6, cervical transverso22, e o tronco simpático (síndrome de Horner)14.
Da mesma forma, a incidência de complicações neurológicas centrais e mortalidade secundária à cirurgia do tumor de corpo carotídeo diminuiu muito e está ao redor de 0 a 2%, mas a lesão de nervo craniano é um problema que permanece pouco alterado nas últimas décadas e ao redor de 40%5,17. O nervo hipoglosso é o mais freqüentemente lesado10,16,18, embora alguns autores tenham encontrado o nervo vago como o mais freqüentemente lesado9,11. Outras possíveis lesões são: laríngeo superior5,17, nervo mandibular5,9,10,18, o ramo faríngeo do nervo vago5, glossofaríngeo5,10,11,17, acessório5,17, e o tronco simpático5,9,18.
O objetivo deste estudo anatômico é correlacionar o nervo hipoglosso com a bifurcação carotídea, determinando a distância exata entre as estruturas e assim transformar uma impressão clínica em distância medida de forma objetiva, além de alertar o cirurgião quanto à variabilidade desta relação.
Entre 1998 e 1999 foram realizadas 38 dissecções da artéria carótida em cadáveres frescos submetidos à necropsia, sendo 26 do sexo masculino e 12 do sexo feminino, com idades variando entre 18 e 85 anos. Dentre estes, 30 eram brancos e 8 não-brancos.
As dissecções foram realizadas no Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) da Universidade de São Paulo. Os cadáveres eram dissecados em posição padrão, com um "coxim" de 10 cm de altura na espinha da escápula e com o pescoço em extensão de 95o. Devido às limitações do SVO quanto às incisões em pele na face e pescoço, foi realizada uma incisão na parede torácica anterior. A seguir, o retalho contendo pele e músculo platisma foi mobilizado superiormente até a exposição dos vasos carotídeos, no trígono carotídeo, paralelo ao músculo esternocleidomastoideo. Através de técnica cirúrgica, a artéria carótida comum foi isolada na sua bifurcação. A dissecção continuou com o isolamento das artérias carótida interna e externa na sua porção cervical. O nervo hipoglosso foi identificado no ponto em que cruza a bifurcação carotídea, e essa relação estudada. A medida obtida foi a da bifurcação até o nervo hipoglosso, através do uso de um paquímetro graduado em milímetros. O comprimento do pescoço dos cadáveres foi medido do processo mastóide até a incisura jugular, para ser correlacionado com a distância estudada.
Os dados foram analisados estatisticamente usando-se o programa "Stat". O nível de significância foi de 5% (a=0,05%). O método de correlação de Pearson foi usado entre os pares de variáveis.
A distância entre o nervo hipoglosso e a bifurcação carotídea variou de 0.5 a 4.3 cm (média = 2.1 cm; mediana = 2.0 cm; desvio padrão = 0.63 cm) em 38 indivíduos. Nesta amostra não há correlação significante entre a distância e idade (r = -0.0786; p = 0.639), sexo (r = -0.1519; p = 0.363), e raça (r = -0.1951; p = 0.241).
Em 29 indivíduos, o comprimento do pescoço foi correlacionado com a distância entre o nervo hipoglosso e a bifurcação carotídea, mas não significância estatística com a medida (r = 0.1454; p = 0.452). O comprimento do pescoço variou de 14 a 29 cm (média = 17,37 cm; mediana = 16,80 cm; desvio padrão = 2.06 cm).
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Figura 1. Esquema representando a posição do cadáver para dissecção (o ângulo formado entre o plano horizontal e a mandíbula é de 95º).
Figura 3. Nervo hipoglosso e a bifurcação carotídea: a) nervo hipoglosso, b) artéria carótida interna, c) ramo descendente do nervo hipoglosso, d) músculos digástrico e estilohioídeo, e) artéria occipital, f) bifurcação carotídea, g) artéria lingual.
Figure 4. Carotid body tumor: before (I) and after surgical resection (II). a) hypoglossal nerve, b) carotid body tumor, c) internal jugular vein, d) accessory nerve, e) descending branch of hypoglossal nerve, f) carotid bifurcation.
DiscussãoO nervo hipoglosso deixa o crânio através do canal do hipoglosso, correndo posteriormente à artéria carótida interna e veia jugular interna por aproximadamente 4 cm. Então ele cruza anteriormente a artéria carótida interna, seguindo inferolateralmente entre a artéria carótida interna e a veia jugular interna e profundamente ao ventre posterior do músculo digástrico7,8. A seguir, ele cruza medialmente as artérias carótidas interna e externa sobre a bifurcação carotídea, estabelecendo neste ponto relação com artéria occipital (ramo da artéria carótida externa) e seu ramo esternocleidomastoideo21. O ramo descendente deste nervo que se origina do arco do nervo hipoglosso forma com os nervos cervicais a alça do nervo hipoglosso8. A seguir, o nervo hipoglosso entra na base da língua onde inerva os músculos da língua, intrínsecos e extrínsecos. O nervo hipoglosso também inerva através da sua alça cervical os músculos omoióideo, estrenotireóideo e esternoióideo13.
Existe uma controvérsia na literatura quanto à distância entre o nervo hipoglosso e a bifurcação carotídea: segundo a maior parte dos autores esta distância varia de 3.0 a 5.0 cm20,23, mas há descrições ao redor de 1 a 2 cm7.
A maioria das placas ateroscleróticas na artéria carótida terminam a uma distância de 2.0 a 3.0 cm da bifurcação, geralmente no nível da quarta vértebra cervical6. O nervo hipoglosso provavelmente é o nervo mais freqüentemente lesado devido a sua proximidade da bifurcação7. Quando a bifurcação encontra-se ao nível de C3 ou acima (próxima ao ramo da mandíbula)6, ou em casos de tumor do corpo carotídeo firmemente aderidos à adventícea da artéria ou envolvendo-as (tumor tipo III de Shamblin)10, a exposição cirúrgica é mais difícil e pode requerer manobras como secção do músculo estilohioídeo, ventre posterior do músculo digástrico, processo estilóide, mobilização do pólo inferior da glândula parótida, e até a mobilização da mandíbula para se obter acesso distal ao vaso5. Nestes casos há um risco maior de lesão de nervos, porque o nervo hipoglosso apresenta-se próximo à bifurcação, portanto necessitando de maior mobilização5,7.
A lesão direta ou a secção do nervo hipoglosso é rara, e a fisiopatologia da disfunção é o edema resultante do trauma secundário à retração e dissecção do nervo12. A lesão também pode ocorrer no controle do sangramento dos pequenos vasos ao redor do nervo7,14. A disfunção do nervo do hipoglosso pode se manifestar como desvio da língua ipsilateral à lesão, disartria, dor, dificuldade de mastigação e deglutição, e a paralisia bilateral do nervo hipoglosso pode causar distúrbios de articulação, incapacidade de deglutição, e até mesmo ser uma emergência médica levando a obstrução das vias aéreas e requerendo traqueostomia20. Portanto, quando se realiza uma cirurgia bilateral uma maior atenção é necessária12.
Embora a evolução da maioria das lesões seja benigna com recuperação da função entre 1 e 6 meses14,24, esta pode ser uma importante queixa do paciente ou mesmo tornar-se permanente23. A freqüente multiplicidade da lesão dos nervos cranianos é um outro aspecto importante, aumentando a sua morbidade2,24.
Algumas manobras previamente descritas para ajudar na mobilização medial e superior do nervo hipoglosso são a divisão da artéria occipital, da veia e artéria esternocleidomastoidea, e a secção da alça do hipoglosso8. Apesar da secção da alça do nervo hipoglosso não deixar seqüelas, esta pode ser preservada através de dissecções posteriores para se atingir a artéria carótida15.
Existem múltiplas causas para a alta incidência de lesão do nervo hipoglosso na cirurgia do tumor do corpo carotídeo: aderência e incorporação das artérias pelo tumor5,9,17, exposição cervical inadequada5,17, dificuldade de localização do nervo em relação ao tumor ou falta de preocupação do cirurgião em preservá-lo17. Este risco é maior em tumores maiores que 5 cm15,17 ou tumores do tipo III de Shamblin10.
Para prevenir a lesão de nervo craniano é importante a identificação de todos os nervos cranianos antes da dissecção do tumor3,17, assim como exposição cervical adequada, que pode ser obtida através das manobras previamente descritas para a endarterectomia. Além disto, a embolização pré-operatória, uma equipe multidisciplinar, e o uso de técnica cirúrgica moderna com amplificação de imagem e eletrocautério bipolar também são úteis para reduzir esta alta incidência3,9.
Apesar do conhecimento da relação do nervo hipoglosso e da bifurcação carotídea e da cautela do cirurgião em relação à lesão de nervo craniano, não existem outros estudos anatômicos que mediram esta distância. Não foi possível nesta amostra estabelecer correlação estatística desta distância com o comprimento do pescoço, sexo, raça e idade, mas seria importante determinar algum parâmetro para a localização do nervo hipoglosso. Talvez com uma amostra maior ou estudando-se outro parâmetro anatômico seja possível estabelecer esta relação. Neste estudo mostramos que existe uma grande variabilidade do nervo hipoglosso em relação à bifurcação carotídea, e o cirurgião deve ter o conhecimento de que pode encontrar o nervo hipoglosso próximo (0.5 cm) ou alguns centímetros (4.3 cm) acima da bifurcação. O nervo hipoglosso nunca foi encontrado abaixo da bifurcação carotídea como reportado em outros estudos clínicos.
ConclusãoApesar do grande avanço nas técnicas cirúrgicas, o conhecimento anatômico é fundamental na cirurgia da artéria carótida, porque ocorrem variações do nervo hipoglosso em relação à bifurcação carotídea. Este estudo anatômico representa mais do que uma impressão clínica, e apesar da sua metodologia simples, fornece informações objetivas em relação à variabilidade do nervo hipoglosso e da bifurcação carotídea.
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