INTRODUÇÃOA compreensão dos mecanismos de controle postural vertical reveste-se de grande relevância, tanto em situações fisiológicas como diante de síndromes neurológicas específicas. A percepção da posição vertical tem como única referência absoluta a aceleração da gravidade1. Sua concepção dependeria do reconhecimento da posição do corpo em relação a objetos através da visão, de aferências graviceptivas e proprioceptivas. Pessoas normais possuem a habilidade de posicionar visualmente uma linha vertical quase sem angulações em relação à Terra, avaliada através da subjetiva vertical visual (SVV)2. Apresentam ainda a capacidade de orientarem seus corpos com a vertical corretamente sem a utilização da visão, avaliada através da subjetiva vertical postural (SVP)3. Estes componentes são indispensáveis para o controle postural estático e dinâmico.
A postura estática humana é mantida através de um programa postural central assistido por várias modalidades sensoriais, principalmente de origem vestibular, visual, muscular, cutânea e interoceptiva4-6. Juntos, estes sistemas interagem para a estabilização e representação postural do corpo.
Diversas alterações de equilíbrio e de verticalização corporal podem ser atribuídas à paresia decorrente de lesões encefálicas. Nestes casos, o paciente geralmente utiliza o membro não-parético para correção da postura7,8. Outras alterações de equilíbrio estão presentes na síndrome de Wallemberg, na astasia talâmica e na síndrome de Pusher.
A síndrome de Pusher tem sido considerada uma das mais intrigantes alterações de controle postural encontradas em pacientes com lesão encefálica. Pacientes com esta síndrome, ao invés de se puxarem na tentativa de sustentarem seus corpos, empurram-se em direção ao lado parético utilizando o membro não-afetado. Quando estáticos, tanto sentados como em posição ortostática, apresentam uma inclinação contralateral à lesão encefálica. Diante da tentativa de correção passiva, esses pacientes utilizam o lado não-afetado para resistir à correção, relatando insegurança e medo de cair9.
Esta síndrome foi inicialmente descrita por Davies, em 1985, que sugeriu uma associação com acidentes vasculares cerebrais (AVCs) no hemisfério direito, e considerou os sintomas neuropsicológicos de heminegligência e anosognosia como parte da síndrome9. Estudos posteriores em pacientes com a síndrome de Pusher permitiram a dissociação da alteração de controle postural dos sintomas neuropsicológicos e encontraram, com freqüência, lesões no hemisfério esquerdo10-12.
Estudos de sobreposição de imagens por ressonância magnética ou tomografia computadorizada indicaram os núcleos ventral posterior e lateral posterior de tálamo póstero-lateral como estruturas críticas para a manifestação do comportamento de empurrar11. Outras possíveis áreas já descritas são: cápsula interna, área motora suplementar, lobo parietal superior, globo pálido e córtex vestibular parieto-insular13-15.
Até recentemente, a síndrome de Pusher só havia sido descrita em pacientes com AVC, que apresentaram resolução dos sintomas em aproximadamente seis meses. No entanto, em estudo realizado numa unidade neurológica de urgência mista identificamos a associação da síndrome de Pusher com outras etiologias (trauma craniano e metástase cerebral), com tempos de resolução aparentemente mais breves12.
Os pacientes com a síndrome de Pusher apresentam um importante distúrbio de orientação do corpo em relação à aceleração da gravidade16. Quando sentados em uma cadeira inclinável no plano frontal, com proteção lateral e sem auxílio da visão, estes pacientes se sentem verticais quando colocados com inclinação ipsilateral à lesão de 18º. Entretanto, sua percepção de verticalidade visual não está alterada, já que são capazes de posicionar corretamente um feixe de luz na posição vertical.
O papel do sistema vestibular na alteração postural da síndrome de Pusher ainda não foi devidamente elucidado. A influência dos canais semicirculares na posição e aceleração angular do segmento cefálico em relação ao corpo sugere que este sistema possa eventualmente contribuir para a orientação vertical. Alternativamente, o desequilíbrio na síndrome de Pusher poderia ser decorrente de disfunções encefálicas, sem a participação do sistema vestibular. Neste estudo objetivamos avaliar o papel dos canais semicirculares horizontais na expressão clínica da síndrome de Pusher, através da aplicação das provas calórica e rotatória.
MATERIAIS E MÉTODOSForam avaliados 9 pacientes com diagnóstico de AVC e que apresentavam a síndrome de Pusher internados na Enfermaria de Neurologia da Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Todos os pacientes foram submetidos à avaliação neurológica clínica e avaliação dos sintomas neuropsicológicos de heminegligência e anosognosia. Os pacientes foram classificados como apresentando heminegligência espacial quando apresentavam evidências claras de desvio espontâneo da cabeça e dos olhos ipsilateralmente à lesão, orientação ipsilateral à lesão quando estimulados pela frente ou pelo lado da lesão, e ignorando objetos ou pessoas do lado contrário à lesão11. A anosognosia foi caracterizada através do questionamento do déficit motor do paciente, e confirmada apenas quando nenhum conhecimento da fraqueza motora era expressa, mesmo após a demonstração pelo examinador17. A gravidade do AVC foi avaliada através da Escala de AVC do NIH (National Institute of Health Stroke Scale - NIHSS)18.
Para o diagnóstico e graduação da síndrome de Pusher, foi utilizada a Escala de Avaliação do Sintoma de Empurrar (Scale for Contraversive Pushing - SCP). Baseado nas observações de Davies, a SCP avalia: 1) simetria da postura espontânea, enquanto sentado e em posição ortostática; 2) extensão dos membros superior e/ou inferior com a superfície de contato, enquanto sentado e em posição ortostática; e 3) resistência à correção passiva da postura, enquanto sentado e em posição ortostática11,19. A síndrome de Pusher foi confirmada se os pacientes apresentassem todos os critérios, alcançando uma pontuação de pelo menos 1 em cada critério.
Este estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da nossa instituição (processo nº 11723 / 2003).
Avaliação Da Função VestibularEstimulação calóricaA prova calórica foi realizada de acordo com as técnicas de estimulação de Fitzgerald e Hallpike20. Cada orelha foi irrigada alternativamente com um fluxo constante de água a 30°C e 44°C, durante 40 segundos. A ordem de estimulação foi: orelha direita e orelha esquerda com estimulação quente; orelha esquerda e orelha direita com estimulação fria. Foi realizado um intervalo entre as estimulações para que não houvesse efeito cumulativo. A eletro-oculografia foi realizada na aparelho NEUROGRAFF - Eletromedicina - VENG digital, modelo VECWIN. A posição da cabeça foi corrigida a cada estimulação, e mantida a 60° de extensão com a linha de Frankfurt verticalizada, permitindo que os canais semicirculares horizontais permanecessem na posição vertical. Foram feitas perguntas aos pacientes ou solicitado que fizessem contas aritméticas durante o exame, para evitar o efeito inibitório cortical sobre o sistema vestibular. Todos os pacientes permaneceram com uma máscara nos olhos para evitar a abertura ocular e conseqüente inibição nistágmica durante o exame. Não foi possível realizar a fixação ocular devido ao nível de consciência e colaboração dos pacientes. Nenhum medicamento antivertiginoso foi consumido nos dois dias que antecederam os exames otoneurológicos.
A velocidade máxima da fase lenta do nistagmo foi analisada após a irrigação. A preponderância direcional (PD) foi determinada através do método Jongkees21, e considerada anormal quando maior que 25%. A velocidade da componente lenta foi considerada normal se estivesse entre os valores 3 e 51º/segundo.
Estimulação rotatóriaA estimulação com a cadeira rotatória foi realizada através do equipamento Ototest Alvar Electronic - IV 2 TR, conectado ao sistema digital vetoeletronistagmógrafo Neurograff. Para a prevenção de estímulo visual, este exame foi realizado em uma sala escura, e os olhos do paciente foram mantidos fechados por uma máscara. A cabeça do paciente foi posicionada em flexão de 30°, para que os canais semicirculares horizontais permanecessem próximos ao plano do estímulo (posição horizontal). Os pacientes foram submetidos a oscilações sinusoidais com acelerações desde 18º/seg2 até a parada total da cadeira. Assim como na prova calórica, foram feitas perguntas aos pacientes durante a aquisição dos dados. Os parâmetros analisados foram: velocidade da fase lenta do nistagmo e freqüência nistágmica. Foi considerada anormal a velocidade da fase lenta menor que 7°/s ou maior que 30°/s. A anormalidade de freqüência nistágmica foi estimada através do cálculo da preponderância direcional.
RESULTADOSForam estudados 9 pacientes, 5 homens e 4 mulheres, com idade média de 71,8 ± 5,9 anos. A Tabela 1 descreve as características demográficas e clínicas dos pacientes. As avaliações de função vestibular foram realizadas após um tempo mediano de 10 dias após o AVC variando de 5 a 548 dias. Cinco pacientes (55.5%) apresentavam lesões encefálicas no hemisfério cerebral direito, sendo que três destes apresentavam heminegligência e dois, anosognosia. No momento da avaliação, os pacientes apresentavam NIHSS médio de 18.33 (variação entre 13 e 24).
Foram encontrados três pacientes que apresentaram preponderância direcional contralateral à lesão encefálica na prova calórica. Os demais pacientes apresentaram normalidade labiríntica nesta prova (Tabela 2). Na prova rotatória, foram observados quatro pacientes com preponderância direcional na análise de velocidade da componente lenta; dois destes (50%) apresentaram alterações contralaterais à lesão (Tabela 3). A análise de freqüência nistágmica revelou dois pacientes com preponderância direcional, também não evidenciando uma correlação com o lado da lesão (Tabela 3).
DISCUSSÃOAté recentemente, a influência do sistema vestibular nas manifestações da síndrome de Pusher só havia sido investigada por testes que avaliam a função otolítica16. Neste aspecto, o estudo da SVV demonstra inclinação para um dos lados em pacientes com disfunções vestibulares periféricas e centrais, fato que não ocorre em pacientes com a síndrome de Pusher16. Os resultados do presente estudo indicam que a disfunção dos canais semicirculares também não parece ser fundamental para a expressão da síndrome de Pusher.
A prova calórica é a melhor forma de diagnosticar uma perda da função vestibular unilateral22 e, adicionada com a prova rotatória, pode auxiliar na compreensão de diversas alterações de equilíbrio. A constatação de uma PD na prova calórica ocorre quando observamos uma assimetria significativa entre a duração do nistagmo para a direita (causado por estimulação quente da orelha direita e fria da orelha esquerda) e a duração do nistagmo para a esquerda (causado por estimulação quente da orelha esquerda e fria da orelha direita)20. A PD pode também ser observada na prova rotatória através da diferença de velocidade angular da fase lenta ou da diferença de freqüência nistágmica. O fato da PD do nistagmo calórico horizontal poder ocorrer sem nistagmo espontâneo ou paresia significativa de canal indica que a PD não é produzida somente por distúrbios do sistema vestibular periférico22,23. Prencht (1974), uma lesão no sistema nervoso central poderia causar PD através do aumento da sensibilidade dinâmica dos neurônios do núcleo vestibular medial (NVM), e conseqüente diferença de resposta nistágmica24. Entretanto, no presente estudo, foi encontrado um padrão aleatório de alteração nas provas calórica e rotatória entre os pacientes com síndrome de Pusher. Estes resultados sugerem que os canais semicirculares horizontais não participam da alteração de equilíbrio nesta condição.
Os valores da PD obtidos na prova calórica foram maiores que na prova rotatória. Esta diferença pode ser decorrente das características dos estímulos, já que, na irrigação calórica há estimulação vestibular unilateral, e na prova rotatória, há estimulação bilateral. Enquanto a atividade dos neurônios tipo IA do NVM estão sendo diretamente modulados apenas de um lado durante a estimulação calórica, esta atividade é diretamente modulada por ambos os lados durante o estímulo rotatório22.
Os pacientes com preponderância direcional na prova calórica, em sua grande maioria, não coincidiram com os que apresentaram PD na prova rotacional (Tabelas 2 e 3). Esta característica foi também observada no estudo de Halmagyi et al.22.
Estudos de Mittelstaedt (1992) sugerem a existência de um segundo sistema graviceptivo que seria baseado em aferências provenientes da cápsula renal, grandes vasos e vísceras abdominais, que alcançariam o sistema nervoso central via nervo frênico ou vago6.
Os achados do presente estudo favorecem o conceito de que um segundo sistema graviceptivo, com aferências de interoceptores e projeção encefálica, participe da alteração de controle postural encontrada nos pacientes com a síndrome de Pusher. O principal fundamento para esta conclusão reside no fato de não terem sido encontradas alterações da função dos canais semicirculares e otólitos nesta condição.
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