INTRODUÇÃOO hipertireoidismo consiste em um aumento da síntese e da liberação de hormônios tireoidianos, sendo a tirotoxicose a síndrome clínica resultante1. É uma doença comum, com uma predominância de 0,2 a 0,5% na população2. A causa mais freqüente de tirotoxicose é a doença de Basedow-Graves ou bócio difuso tóxico, responsável por 60 a 90% dos casos e observada em mulheres numa freqüência de 1,9%, com pico entre 20 e 40 anos1. Trata-se de doença auto-imune com tendência familiar e com associação com outras doenças auto-imunes endócrinas (DMID e Adisson) e não-endócrinas (anemia perniciosa, miastenia, artrite reumatóide, Sjögren, vitiligo e hepatite crônica ativa)3.
Independentemente do fator causal, os sintomas e sinais decorrentes da tirotoxicose são: nervosismo, instabilidade emocional, fadiga, sudorese excessiva, emagrecimento, tremores, taquicardia, queixas oculares (Graves) e bócio. Alguns fatores ambientais são desencadeadores da resposta imune no Graves como: gravidez, excesso de iodo, terapia com lítio, infecções renais (por induzirem expressão DR4 em células foliculares) ou bacterianas (a Yersinia enterocolitica faz reação cruzada com antígenos tireoidianos) e uso de corticosteróides5.
O aumento de tamanho da tireóide, a oftalmopatia infiltrativa e a dermopatia são mediados pelos processos auto-imunes, distinguindo assim, a doença de Graves de outras causa de tirotoxicose1.
Há três grandes tratamentos: drogas antitireoidianas, cirurgia e radioiodo, sendo que a escolha inicial, em geral, recai sobre o tratamento farmacológico, freqüentemente o metimazol4,6. Trata-se de droga derivada das tiouréias ou tionamidas que inibe a oxidação do iodo captado pela tireóide e impede, em conseqüência, a síntese dos hormônios tireoidianos7.
O efeito colateral incomum, mas muito importante, do uso das tiouréias é a agranulocitose1. Pode ocorrer independente da idade, dose e duração do tratamento8, embora Meyer-Gebner et al. tenham relatado incidência maior com doses também maiores6. Aparece subitamente e ocorre em 0,2 a 0,3% dos pacientes8,9. Tamai et al., após uma revisão em 7.000 pacientes com diagnóstico de Basedow-Graves encontraram agranulocitose em apenas 12 pacientes uma incidência de 0,17%8. Para Meyer-Gebner et al. a incidência encontrada em 1.256 pacientes estudados foi de 0,18%6.
Com base nesse efeito colateral, os pacientes precisam ser orientados no sentido de interromper a medicação e entrar em contato com o médico caso haja febre ou infecção, sobretudo da orofaringe, uma vez que a evidência clínica de complicações infecciosas associadas ao uso de drogas anti-tireoidianas é usualmente sintomática nessa região1,8,9. Infecções periodontais, periapicais e da mucosa oral tendem a se agravar rapidamente e se constituem nos principais focos de infecção, sendo os gram negativos os agentes mais comuns10. A monitoração dos pacientes pela contagem rotineira de seus leucócitos tem sido proposta por alguns autores como eficaz na prevenção da agranulocitose11. Entretanto, não há consenso na literatura e para Meyer-Gebner et al. seria mais importante a orientação adequada do paciente ao perceber os sintomas de tal afecção6.
A angina agranulocítica vai de um simples eritema à ulceração e necrose da mucosa bucofaríngea12. Não se observa tendência à hemorragia, nem há linfonodopatia generalizada e esplenomegalia, como na leucemia aguda12. O hemograma evidencia acentuada leucocitopenia: 2.000, 1.000, 500 leucócitos/ mm3, ao lado de neutropenia, que pode ir até 0%12. Não se observa a presença de leucócitos anormais ou imaturos. Hemácias e plaquetas não são afetadas12. A identificação de agranulocitose pelo leucograma exige a administração de antibióticos de amplo espectro, principalmente contra Pseudomonas aeruginosa, bem como terapia de suporte. Habitualmente, a agranulocitose induzida pelo metimazol é um processo reversível9,10.
O objetivo deste trabalho é apresentar um caso incomum de angina agranulocítica provocada pelo uso de metimazol e alertar os médicos quanto à necessidade de se considerar esse diagnóstico em paciente submetido àquele medicamento. Recomenda-se, em especial, que tais pacientes sejam advertidos a respeito dos possíveis efeitos colaterais dos medicamentos, uma prática que pode evitar sofrimentos e custos desnecessários.
APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICOPaciente do sexo feminino, com 33 anos de idade, procurou no dia 02.07.2002 o ambulatório de otorrinolaringologia do Hospital Escola da Faculdade de Medicina de Itajubá (MG), com queixa de odinofagia e febre há um mês. Durante a anamnese moutrou-se bastante prostrada e ansiosa com a persistência de suas queixas, mesmo após o uso de várias medicações, como constatado através das várias receitas que trazia consigo: penicilina benzatina, sulfametoxazol + trimetoprim, amoxicilina, lincomicina e ceftriaxona.
Durante a inspeção da paciente, percebemos uma marcante exoftalmia associada à presença de bócio. Interrogada a respeito, informou que há cerca de 2 meses iniciara tratamento clínico para hipertireoidismo com metimazol 80mg/dia. Negou que seu médico tivesse orientado no sentido de interromper o tratamento na ocorrência de febre ou dor de garganta.
O exame físico otorrinolaringológico mostrava como dados positivos a presença de uma tonsilite eritematosa e linfonodomegalia cervical (Figuras 1 e 2). Ao exame geral, encontrava-se taquicárdica, taquipnéica, febril e hipotensa. Com a hipótese diagnóstica de angina agranulocítica secundária ao metimazol, solicitamos um hemograma que mostrou importante leucopenia: 1.300/mm3. Para diagnóstico diferencial foram também solicitados sorologia para mononucleose infecciosa e AIDS, todos negativos.
Optou-se, então, pela internação da paciente e acompanhamento conjunto com o serviço de clínica médica do Hospital-Escola. Foi realizado um mielograma para afastar a presença de possíveis doenças mieloproliferativas, descartadas após o resultado. Iniciou-se o tratamento com a suspensão do metimazol, administração de drogas sintomáticas e vasopressoras, antibioticoterapia endovenosa com ciprofloxacino e agente estimulador de colônias granulocíticas.
Durante a internação apresentou maior comprometimento de orofaringe com o aparecimento de aftas difusas e monilíase (Figura 3), quando foi iniciado o uso de fluconazol 300 mg/dia. Apresentou evolução satisfatória, com aumento progressivo na contagem de leucócitos e remissão das lesões orais, recebendo alta hospitalar em bom estado geral, após 10 dias de internação. Quinze dias após a alta, foi submetida à tireoidectomia total para cura definitiva da tirotoxicose e atualmente está em acompanhamento ambulatorial junto ao serviço de endocrinologia.

Figura 1. Orofaringoscopia mostrando aspecto eritematoso das tonsilas palatinas, edema de úvula e monilíase em língua.

Figura 2. Inspeção cervical: Notar bócio e linfonodomegalia de cadeias laterais.

Figura 3. Lesões do tipo aftosa acometendo palato duro e mucosa jugal.
DISCUSSÃOA paciente relatada, ao procurar o serviço de otorrinolaringologia com queixa principal de odinofagia e febre, havia se submetido a vários tratamentos antimicrobianos, de vários espectros de cobertura, todos sem eficácia. Nesse momento, foi fundamental colher uma história detalhada, sobretudo a respeito de outras moléstias sistêmicas que pudessem interferir sobre o sistema imune da paciente e o tratamento recente de outras patologias. Diante da afirmativa de estar em uso de metimazol para tratamento do hipertireoidismo, associado à exoftalmia e bócio, suspeitou-se de um caso de tonsilite com modificação do quadro leucocitário, suspeita essa confirmada pelo leucograma.
De acordo com a literatura pesquisada, a agranulocitose é um efeito colateral muito pouco freqüente nos paciente tratados com metimazol1,6,8,9. Em média, o aparecimento dessa complicação se dá nas primeiras semanas de tratamento com a referida droga6. No presente relato, a paciente estava em uso da medicação há 2 meses.
Antibióticos, corticosteróides e estimuladores de colônias granulocíticas são os medicamentos mais freqüentemente relatados na literatura para o tratamento da agranulocitose2,6,9. No caso relatado, obteve-se melhora da paciente usando-se medicação sintomática, fluconazol, ciprofloxacino e estimuladores de colônias granulocíticas. Além disso, a paciente foi acompanhada conjuntamente pelo serviço de clínica médica da instituição.
Esse relato demonstra a importância de se pensar no paciente como um todo, procurando associar seus sintomas e sinais a um possível acometimento sistêmico causado por outras doenças ou como efeito colateral de algum medicamento em uso. Sobre esse último fato, alertar os médicos sobre a necessidade de se conhecer os efeitos colaterais mais graves e informar seus pacientes sobre situações que possam ocorrer durante o tratamento e que podem colocar em risco suas vidas.
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