INTRODUÇÃOO implante auditivo de tronco cerebral foi desenvolvido para restaurar alguma audição útil em pacientes que apresentam ausência de nervo coclear bilateralmente. Foi desenvolvido primeiramente com um eletrodo monocanal no House Ear Institute (HEI), em Los Angeles, Califórnia. Este primeiro modelo foi utilizado em 25 pacientes entre 1979 e 1992 com resultados clínicos precários1. A partir desta experiência foi desenvolvido o implante multicanal, em uma parceria do HEI, da Cochlear Corporation (Englewood, Colorado) e a Huntington Medical Research Institute (Pasadena, Califórnia). Apesar de a primeira cirurgia para implantação de um eletrodo auditivo em tronco cerebral datar de 1979, apenas em outubro de 2000 houve aprovação para seu uso clínico2.
Os pacientes que classicamente se beneficiam deste tipo de prótese auditiva eletrônica cirurgicamente implantável são aqueles com diagnóstico de neurofibromatose tipo 2 (NF-2), por apresentarem schwannomas vestibulares bilaterais ou crianças com aplasia congênita de nervo coclear. Atualmente a indicação do implante auditivo de tronco cerebral se ampliou e pacientes com integridade neural do VIII par e impossibilidade de colocação de um implante coclear convencional, como portadores de cócleas ossificadas após meningite, são potenciais candidatos a esta cirurgia3-5. Este fato é importante, pois apesar de os critérios de indicação do implante coclear terem se estendido muito nos últimos anos, este não é possível de ser utilizados nos casos mencionados6-8. Existem pacientes que não se beneficiam desta tecnologia por não permitirem uma estimulação elétrica das vias auditivas periféricas (cóclea e gânglio espiral). Em nossa lista de pacientes aguardando cirurgia por shwannomas vestibulares bilaterais (neurofibromatose tipo 2), temos pelo menos oito indivíduos que poderiam se beneficiar de imediato do implante em tronco cerebral e pelo menos seis pacientes novos com este diagnóstico a cada ano. Nossa experiência cirúrgica com tumores da base lateral do crânio e o fato de realizarmos cirurgias do schwannoma vestibular de rotina pelo Sistema Único de Saúde nos colocam em dívida com estes pacientes. Além destes casos de tumores, se beneficiariam do implante em tronco cerebral os diversos pacientes com obliteração da cóclea após meningite e que, infelizmente, constituem um grande número em nosso ambulatório, além dos raros casos de neuropatia central. O próximo passo dentro de nosso Grupo de Implante Coclear dominar a técnica cirúrgica e disponibilizá-la aos nossos pacientes. No Brasil nem um único paciente foi implantado com este tipo de prótese.
Nosso objetivo neste trabalho foi estudar os parâmetros anatômicos da região de inserção do eletrodo do implante auditivo de tronco cerebral.
Material e MétodoEste estudo foi desenvolvido no laboratório B1 da Disciplina de Cirurgia Geral e Topográfica Estrutural Humana do Departamento de Cirurgia da FMUSP e no Laboratório de Investigação Médica - Otorrinolaringologia (LIM-32), sendo aprovado pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Protocolo 767/04).
Um cadáver fresco foi preparado para dissecação com injeção de solução corante dissolvida em silicone líquido. A estrutura da bancada de dissecação foi derivada da utilizada no Curso Prático de Dissecação do Osso Temporal da Disciplina de Otorrinolaringologia da FM-USP.
A cabeça do cadáver foi armazenada em álcool 75% e preparada para dissecação com o objetivo de enaltecer a vascularização intracraniana. A artéria carótida interna e a veia jugular interna bilateralmente foram identificadas e dissecadas na região cervical. A artéria vertebral também foi dissecada e isolada bilateralmente. Um cateter de diâmetro justo ao dos vasos foi passado pela luz dos mesmos. Os vasos foram amarrados com fio algodão 0 de forma a fixar os cateteres sem espaço para refluxo de líquido. Os vasos foram repetidamente lavados com água através de uma seringa de 60cc até que se obteve uma boa perfusão de seu correspondente contra-lateral, isto é, em se lavando a artéria carótida interna direita deve-se observar a água saindo pela artéria carótida interna esquerda, e não se observe a presença de coágulos de sangue na luz vascular. Esta etapa é fundamental, pois a lavagem insuficiente ou a presença de coágulos impedem a entrada dos corantes nos vasos e o total preenchimento de todo sistema vascular intracraniano, principalmente dos pequenos ramos arteriais. Após o término da lavagem foi injetado o corante. As artérias carótida interna e vertebral foram injetadas pela sua porção cervical e em seqüência foi injetada a veia jugular interna. As artérias foram coradas em vermelho e o sistema venoso em azul. A confecção do corante seguiu a seguinte fórmula:
A. Artérias: duas partes de polimetil silaxano (thiner) para uma parte de silicone
B. Veias: uma parte de polimetil silaxano (thinner) para uma parte de silicone
Antes da injeção da solução na luz vascular foi adicionado o catalisador (dilaurate calcium carbonate) na proporção de 10ml para cada 300ml de solução. Os corantes (pigmentos solúveis em água) foram adicionados logo antes da infusão.
A anatomia da região de inserção do eletrodo do implante auditivo de tronco cerebral foi estudada através do acesso translabiríntico ampliado.
Figura 1. Como limites laterais observamos os canais semi-circulares (CSC) e o bulbo da jugular (BJ). Os pares cranianos VII e VIII (AF), relacionados à cápsula ótica, e IX, X e XI pares cranianos (PB), relacionados ao bulbo da jugular, podem ser vistos desde sua emergência no tronco cerebral ( flóculus cerebelar afastado com uma espátula). A artéria cerebelar ântero-inferior contorna, neste caso, o feixe acústico-facial (AF). O Forame de Luschka (FL) aparece como depressão branca na ponta da seta (Cr: cerebelo).
Figura 2. Aumento maior mostrando a depressão existente entre o feixe acústico-facial (AF) e os pares bulbares (PB) (quadrado branco). Esta depressão corresponde ao forame de Luschka (FL) e é facilmente visível após o afastamento do flóculus cerebelar (BJ: bulbo da jugular,CSC: canais semi-circulares, Cr: cerebelo).
RESULTADOSA técnica cirúrgica utilizada para a implantação do eletrodo de tronco cerebral é semelhante à utilizada na remoção do shwannoma vestibular. O complexo de núcleo coclear, composto pelo núcleo coclear ventral e dorsal, é o local para a colocação do eletrodo. O núcleo coclear ventral é o principal núcleo de transmissão de impulsos neurais do VIII par e seus axônios formam a principal via ascendente do nervo coclear. Tanto o núcleo ventral como o dorsal não são visíveis durante a cirurgia e sua localização depende de identificação de estruturas anatômicas adjacentes. A terminação lateral do quarto ventrículo, o forame de Luschka, se situa entre as saídas dos nervos glossofaríngeo e facial. Em se afastando o flóculus, o cirurgião visualiza uma depressão entre os pares cranianos mencionados, local onde se deve inserir o eletrodo (Figuras 1 e 2). Normalmente, apenas um coto do nervo coclear é identificado, podendo também ser usado como referência ao recesso lateral.
DISCUSSÃOO conceito de implante auditivo de tronco cerebral é semelhante ao do implante coclear disponível atualmente, com a diferença de configuração do eletrodo, desenhado para ser introduzido ao nível do nervo coclear e não na rampa timpânica da cóclea. Beneficiam-se deste tratamento pacientes que por motivos anatômicos ou funcionais não possam receber estímulos elétricos pela orelha interna. Em países sociologicamente avançados, a principal causa da perda estrutural das vias auditivas periféricas bilateralmente é a neurofibromatose tipo 2, cuja característica essencial é a de evoluir com shwannomas vestibulares bilaterais9. Porém isto não ocorre no Brasil. Infelizmente as etiologias infecciosas ainda são responsáveis pela maioria dos casos de surdez, e, entre elas, a meningite certamente é a principal. Em dados a serem por nós publicados, observamos que 23.9% de todos os nossos casos já implantados com algum tipo de implante coclear multicanal são pacientes que perderam a audição após meningite.
Este fato é preocupante, uma vez que o prognóstico da função auditiva após a implantação está intimamente relacionado à quantidade de elementos neurais viáveis à implantação e ao correto posicionamento dos eletrodos na cóclea. A meningite contraria estes dois fatores. Primeiro, é a etiologia que mais leva à destruição de células ciliadas da cóclea e neurônios do nervo coclear e, em segundo, comumente leva a algum grau de ossificação da cápsula ótica. Observando nossos resultados em discriminação de sentenças, novamente em dados a serem publicados, vemos que os pacientes com meningite adquirem discriminação bastante inferior (média de 22% em sentenças em formato aberto) aos portadores de etiologias diversas (média de 82% em sentenças em formato aberto), resultados que os impossibilitam de manter conversação sem auxílio da leitura labial. Além da questão funcional, a meningite foi responsável por todos os nossos seis casos de falha técnica no posicionamento do eletrodo durante a cirurgia, com conseqüente explantação da unidade interna e necessidade de nova cirurgia para implantação de novos eletrodos. Este fator infeccioso amplia muito a necessidade de se tornar disponível uma alternativa ao implante coclear convencional no Brasil. Os pacientes com neurofibromatose tipo 2 são raros, mesmo em um serviço de referência como o Hospital das Clínicas da FMUSP. Não mais de seis casos por ano nos procuram, alguns já sem indicação cirúrgica. Porém, levando em conta a evolução trágica mas lentamente progressiva desta doença, o impacto do restauro de alguma audição útil a estes pacientes é extremamente elevado. Por esta razão vemos o implante auditivo de tronco cerebral o próximo passo a ser realizado em nosso Grupo de Otologia, o que faz obrigatório o estudo e desenvolvimento da técnica cirúrgica em laboratório de anatomia.
Em relação à via de acesso utilizada para a implantação dos eletrodos no tronco cerebral, duas são as principais: a via retrossigmoidea suboccipital e a via translabiríntica10. Acreditamos que a via de acesso escolhida deva ser ampla o suficiente para permitir a correta identificação dos parâmetros anatômicos utilizados como referência ao correto posicionamento dos eletrodos, e a escolha entre estes dois acessos é feita conforme a experiência do cirurgião com cada um deles. A maioria dos otorrinolaringologistas optam pelo acesso translabiríntico em cirurgias para exérese de schwannomas vestibulares grandes ou com audição deteriorada, e, portanto, em se realizando a implantação no mesmo tempo cirúrgico, este acesso é o escolhido por nós. Apresenta as vantagens da identificação do nervo facial antes de sua imersão no tumor, evita a retração cerebelar mesmo em grandes tumores e oferece acesso direto ao forame de Luschka. Os pacientes submetidos à cirurgia por este acesso acordam bem e rapidamente, raramente tendo problemas anestésicos. As desvantagens são a exposição limitada dos pares cranianos bulbares e grandes vasos da fossa cerebral posterior, que se encontram posteriores ao tumor na visão do cirurgião, e a possibilidade de variação anatômica do bulbo da jugular ou seio sigmóide, ou mesmo uma mastóide pequena, limitar muito o acesso. O acesso retrossigmoideo suboccipital é tradicionalmente o preferido dos neurocirurgiões. É bastante seguro e permite a exposição ampla da fossa cerebral posterior mostrando as relações do tumor com os pares cranianos bulbares e grandes vasos. Contudo requer retração cerebelar extensa e portanto desequilíbrio no pós-operatório, além de não permitir a identificação precoce do nervo facial. Em ambos os acessos, a identificação da emergência do nervo coclear no tronco cerebral e o plexo coróide deve ser realizada e suas posições marcadas, com o objetivo de referência ao posicionamento dos eletrodos11.
O local de inserção do eletrodo do implante auditivo de tronco cerebral é o complexo do núcleo coclear, composto pelos núcleos dorsal e ventral, que corresponde ao local onde terminam os axônios do nervo coclear. O núcleo dorsal se localiza superiormente ao recesso lateral do quarto ventrículo, enquanto que o núcleo ventral se encontra encoberto pelo pedúnculo cerebelar médio. Portanto não são visíveis ao cirurgião e devem ser localizados através de referências anatômicas localizadas na superfície da ponte. Entre a emergência dos nervos facial e glossofaríngeo se situa o recesso lateral ou forame de Luschka. O núcleo coclear dorsal (NCD) é o principal núcleo recebedor de axônios do nervo coclear e forma a principal via ascendente auditiva, porém o local preferível para colocação do eletrodo é o forame de Luschka onde se encontra o núcleo coclear ventral (NCV) e parte inferior do NCD, em razão de ser esta a região que se mostrou menos susceptível em originar estímulos não-auditivos, como estímulos dos nervos facial e glossofaríngeo ou de regiões adjacentes como o flóculus e o cerebelo12. A importância em se posicionar bem o eletrodo está em se evitar justamente os efeitos colaterais desta estimulação neural não auditiva. Eletrodos posicionados no forame de Luschka têm se mostrado eficazes em estimulação auditiva com efeitos colaterais mínimos, além de se mostrarem estáveis pelo fato do foram estarem em local espacialmente limitado13,14.
Em nossa dissecação cirúrgica estudamos estas referências por acesso translabiríntico, ao qual estamos confortáveis tecnicamente. Não houve dificuldade em reconhecer com precisão o recesso lateral (forame de Luschka), depressão bastante visível entre o feixe acústico-facial e os pares bulbares. É necessário lembrar que a exérese de grandes tumores leva a uma alteração da anatomia na região, principalmente em relação a emergência do VIII par na ponte, difícil de se reconhecer com a perda da integridade do nervo durante a cirurgia, e em presença de restos de aracnóide. A observação de regiões anatomicamente preservadas além do leito tumoral, distal ou proximal, e a eletromiografia intra-operatória sem dúvida são parâmetros úteis durante o procedimento de posicionamento dos eletrodos.
CONCLUSÃOA região de implantação do eletrodo do implante auditivo de tronco cerebral apresenta referências anatômicas que permitem sua identificação durante a cirurgia. O estudo da técnica cirúrgica em laboratório de anatomia deve ser encorajado, principalmente em razão da importância de se conhecer com exatidão estas referências anatômicas pelo cirurgião.
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