INTRODUÇÃOA síndrome de Behçet é um distúrbio inflamatório de etiologia desconhecida que acomete pequenos vasos sangüíneos, sobretudo as vênulas, caracterizado por úlceras orais e genitais recorrentes, uveítes, lesões cutâneas de eritema nodoso e erupções acniformes1,2.
Nenhum agente infeccioso foi isolado. Embora haja suspeita de uma etiologia viral, há uma forte correlação entre marcadores de HLA B51 e essa síndrome, de tal forma que quem apresenta esse marcador possui 3,8 vezes mais chance de desenvolvê-la. Além disso, os níveis séricos de complemento geralmente estão elevados, principalmente os de C93,4.
A Síndrome de Behçet pode ocorrer de várias formas, mas as úlceras aftosas orais recorrentes estão presentes em 99% dos pacientes, enquanto que o sistema nervoso central é acometido em cerca de 10% dos casos, constituindo um indicador de gravidade5,6.
Padronização diagnóstica de cunho internacional tem sido proposta, de forma que a síndrome de Behçet completa está associada a quatro critérios maiores (úlceras aftosas orais recorrentes, lesões oculares, ulcerações genitais e lesões cutâneas). No entanto, alguns critérios menores (artrite, lesões gastrintestinais, lesões vasculares e acometimento do sistema nervoso central) são considerados. Ademais, deve-se suspeitar do diagnóstico quando dois locais importantes forem afetados7,8.
O tratamento é complexo requerendo terapias combinadas de acordo com o número de órgãos envolvidos, dentre as quais destacam-se corticosteróides, agentes imunossupressores, clorambucil, colchicina, sulfasalazina e agentes fibrinolíticos7,9.
Dada a sua raridade, a síndrome de Behçet ainda não está amparada por uma literatura significativa - tanto no aspecto qualitativo quanto no quantitativo - que pudesse defini-la, caracterizá-la e, principalmente, relacioná-la com a Otorrinolaringologia5.
Em 2003, Martins e cols.10 relataram o primeiro caso, associando, com relevante probabilidade, o desenvolvimento de rinite com sinusopatia destrutiva à síndome de Behçet.
RELATO DE CASOO paciente NMS, do sexo feminino, 11 anos, com diagnóstico prévio de Síndrome de Behçet, foi internado na UTI do Hospital Pequeno Príncipe por apresentar estado de mau convulsivo. Durante sua permanência no hospital, evoluiu com dor facial e rinorréia purulenta bilateral. Como já apresentava obstrução nasal importante, relatou piora do quadro há 4 dias quando passou a apresentar episódios febris (38,8º C), iniciando uso de ceftriaxona 30 mg/kg/dia.
Ao exame físico, possuía 28kg de peso e 1 metro de altura, apresentava ulcerações genitais e sangramento de mucosas.
Ao exame otorrinolaringológico, apresentava úlceras aftosas orais, hiperemia de orofaringe, hipertrofia bilateral de cornetos inferiores, coriza e muita fibrina em cavidade nasal. A conduta inicial foi dobrar a dose da ceftriaxona para 60mg/kg/dia.
Após dois dias, evoluiu com piora daqueles sintomas, acrescido de cefaléia importante. Optou-se por solicitar uma Tomografia Computadorizada de Seios da Face (Figuras 1 e 2). A ceftriaxona foi mantida e a paciente seria reavaliada no dia seguinte. Após sete dias, apresentou edema palpebral à direita e persistência dos sintomas referidos. Solicitou-se novo exame tomográfico, cujas imagens reafirmaram a existência de um abscesso peri-orbitário. A drenagem ocorreu no mesmo dia através de incisão súpero-medial da órbita direita com dissecção até o abscesso, acrescida de uma contra-incisão para a fossa nasal através do etmóide com colocação de um dreno de Pen Rose. Fez-se a limpeza de toda a cavidade nasal, com remoção de grumos e placas inteiras de fibrina, chamando a atenção para o fato de o sangramento ter sido insignificante, apesar da extensa área de necrose de corneto inferior (região altamente sangrante), sugerindo associação com a vasculite de Behçet.
Figura 1. Corte axial evidenciando velamento de seios maxilares e células etmoidais e obliteração bilateral do infundíbulo.
Figura 2. Corte coronal evidenciando velamento de seios maxilares e células etmoidais e obliteração bilateral do infundíbulo.
Até o segundo dia de pós-operatório, a paciente cursava com boa evolução clínica, com discreta melhora do quadro. No entanto, ao 3º dia de pós-operatório, evoluiu com exacerbação do edema palpebral, acompanhado de picos febris de 39ºC. Foi solicitada outra Tomografia Computadorizada de Seios Paranasais, cujo laudo reforçava a idéia da necessidade de uma ressecção mais ampla. Após três dias, foi realizada uma biópsia de mucosa de seio maxilar direito cujo diagnóstico revelava: "Tecido necrótico com áreas de tecido de granulação com inflamação crônica e aguda inespecíficas e extensa deposição de fibrina".
Decidiu-se pela Cirurgia de "Caldwell-Luc", como técnica cirúrgica na maxilo-etmoidectomia. Procedeu-se uma incisão em mucosa gêngivo-labial, no sentido de se obter abertura de parede anterior do seio maxilar. À esquerda, foi encontrada secreção purulenta abundante e uma mucosa pouco espessada. À direita, além de secreção, havia uma degeneração da mucosa - o que exigiu sua limpeza - que ocupava todo o seio; além disso, constatou-se necrose parcial de cornetos inferiores e médios. Em ambos os lados foi procedida a curetagem do etmóide e a drenagem de seio maxilar, com contra-abertura nasal bilateral.
A partir de então, apresentou boa evolução até a alta; como seqüela, tanto o quadro quanto as intervenções resultaram em sinéquia bilateral.
DISCUSSÃOA confirmação diagnóstica da Síndrome de Behçet foi estabelecida na medida em que a paciente apresentou três critérios maiores (úlceras aftosas orais recorrentes, ulcerações genitais e lesões oculares) e dois critérios menores (lesões vasculares e acometimento do sistema nervoso central - provável etiologia do mau convulsivo) da Síndrome de Behçet, internacionalmente padronizados.
Martins e cols.10 publicaram de forma inédita a provável associação entre Síndrome de Behçet e rinossinusopatia em um paciente masculino de 47 anos que também desenvolveu um quadro de otite média bilateral crônica, e cujos achados tomográficos assemelhavam-se aos da paciente do presente caso (predomínio maxilo-etmoidal, com características destrutivas). Porém, concluíram que devido à inexistência de um marcador histológico confiável, a documentação clara de tal associação deve ser postergada.
Outros dois autores1,11 constataram o envolvimento da orelha interna como uma complicação tardia da Síndrome de Behçet (aproximadamente uma década após o início das manifestações) a vasculite - lesão patológica básica desta doença - foi considerada única responsável pela desordem no labirinto. Exames audiológicos e vestibulares detalhados revelaram anormalidades na cóclea e no aparelho vestibular; ademais, seus resulatados indicam que 62% dos pacientes com Síndrome de Behçet devem se queixar de distúrbios auditivos e que 37% deles apresentariam vertigem.
A vasculite a que os dois autores se referem é a provável explicação para o sangramento inexpressivo quando da remoção dos grumos e até placas inteiras de fibrina, enquanto se procedia a limpeza da cavidade nasal na paciente deste caso. Isso sugere a alteração vascular como o cerne da fisiopatologia da rinossinusite relacionada neste trabalho.
A vasculite presente na Síndrome de Behçet caracteriza-se por um processo de inflamação necrotizante dos microvasos (com preferência para as vênulas, em cujas paredes ocorrem acúmulo de neutrófilos e linfócitos fragmentados) e pelo fato de todas as lesões estarem no mesmo estágio de evolução - o que lhe conferiu presença no grupo das "Vasculites por Reações do Sistema de Imunidade"10.
A má perfusão, decorrente da contração espasmódica do vaso arterial, é indiscutivelmente uma das principais conseqüências de uma vasculite, que também responde por uma drenagem venosa deficiente2. Um tecido mal perfundido é muito mais propenso a infecção e conseqüente inflamação do que um tecido normal (principalmente um nasal e dos seios paranasais), bem como um tecido mal drenado, já que há o acúmulo da maioria dos elementos e substâncias tóxicas produzidos e resultantes da reação inflamatória no próprio local da lesão2. Na descrição do relato não se deixou de mencionar a existência de necrose parcial de cornetos inferiores e médios, além de diversas porções de seios maxilares e células etmoidais.
Além da predisposição a um processo infeccioso, é notória a complexidade de cuidados clínicos que a vasculite pode gerar uma vez que acentua os sinais inflamatórios (edema periorbitário), exacerba as manifestações da doença (necrose parcial de cornetos) e não só dificulta (refratariedade ao tratamento clínico) como prolonga o tratamento (neste caso, 40 dias).
Apesar das evidências clínicas e fisiopatológicas, a correlação entre a vasculite de Behçet e rinossinusite não pode ser precisamente estabelecida, dada a inexistência de marcadores histológicos específicos que possam ser analisados à biópsia dos seios da face.
Por fim, tanto a idade da paciente quanto as particularidades dos sintomas por ela apresentados, especialmente o desenvolvimento da Síndrome de Behçet com rinossinusopatia na ausência de otopatia, conferem relativa originalidade a este relato de caso.
COMENTÁRIOS FINAISO paciente portador da Doença de Behçet é um alvo vulnerável a inúmeras afecções que podem atingir praticamente todos os sistemas do organismo humano. Indubitavelmente, há muito o que se fazer para desvendar sua fisiopatologia e esclarecer suas formas de atuação. No entanto, espera-se que com este trabalho os profissionais médicos atentem para o fato de a rinossinusite ser uma das possíveis manifestações pronunciadas por essa síndrome.
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11. Brama I, Fainaru M. Inner Ear Involvement in Behçet's Disease. Arch Otolaryngol Apr 1980; 106 (4): 215-7.
12. Wyngaarden JB, Smith LJ. CECIL: Tratado de Medicina Interna. Rio de Janeiro; 1990, 18ª ed., Vol. 2, 2141 p.
1 Médico da Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
2 Acadêmico de Medicina da UFPR.
3 Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
4 Médico da Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
5 Residente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
6 Residente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
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Trabalho apresentado no 36º Congresso Brasileiro de ORL, Florianópolis/SC em 22/11/2002 na categoria pôster (P- 105).
Artigo recebido em 18 de junho de 2003. Artigo aceito em 13 de agosto de 2004.