INTRODUÇÃOAs osteodistrofias são caracterizadas por alterações da densidade óssea, podendo ter acometimento exclusivamente do crânio ou de outros ossos. As osteodistrofias que acometem o osso temporal também podem ser limitadas ao mesmo como a otospongiose ou ter acometimento sistêmico como a maioria dos casos de displasia fibrosa1 e doença de Paget. A otospongiose é a mais comum1. Patologias mais raras com comprometimento do osso temporal são também descritas na literatura, com manifestações importantes como perda auditiva rapidamente progressiva, tontura e paralisia facial periférica.
Os autores descrevem três pacientes portadores de osteodistrofias raras do osso temporal, dois acometidos pela osteopetrose e uma paciente que apresenta uma doença rara denominada doença de Camurati-Engelmann, mostrando diferentes aspectos que auxiliem no diagnóstico, além da conduta terapêutica da literatura frente à implicações clínicas.
A osteopetrose é uma doença rara (até 1970 existiam apenas cerca de 350 relatos em toda a literatura)2, de etiologia desconhecida, progressiva, hereditária, caracterizada por um aumento da densidade óssea da base do crânio e calota craniana decorrente da redução da reabsorção óssea por disfunção dos osteoclastos, notada na camada endocondral e periosteal3, enquanto a função dos osteoblasto é normal, ocorrendo estreitamento dos forames dos nervos cranianos e sintomas neurológicos secundários. Os nervos cranianos mais afetados são: óptico, trigêmeo, vestíbulo-coclear e facial, este último se caracterizando por episódios agudos recorrentes semelhantes à paralisia de Bell, porém com piora da fraqueza muscular a cada ataque2,4. Os ossos são duros pela maior quantidade de sais de cálcio, porém não apresentam organização para stress, sendo quebradiços2,4,5. O diagnóstico é radiológico mostrando um aumento exagerado do osso com diminuição da cavidade medular e do espaço diplóico2,5. Este aspecto radiológico é importante para diferenciar a osteopetrose de outras patologias, principalmente em crianças com paralisia facial periférica, desde que pode ser o primeiro sinal da doença4, ou nas crianças ou adultos com crises recorrentes da mesma.
Existem duas formas clínicas desta entidade2, a forma maligna, autossômica recessiva, de pior prognóstico, que acomete mais crianças, caracterizada por obliteração da medula óssea por tecido ósseo anormal4,6 com anemia e neutropenia (estas as maiores causas de morte nestas crianças), hematopoese extramedular, aumento do fígado e baço, atrofia óptica por compressão direta do nervo ou decorrente de alteração vascular9, paralisia facial, disacusia severa neurossensorial, retardo mental, hidrocefalia, múltiplas fraturas e hipocalcemia. Notou-se, nos estudos histopatológicos, deiscência do nervo facial com herniação para o nicho da janela oval e ausência de alteração da orelha interna7. Esta forma é fatal até aproximadamente a 2a década de vida. A forma benigna é autossômica dominante (doença de Albers-Schöenberg), de melhor prognóstico, acomete adolescentes e adultos, pode ser assintomática ou caracterizada por macrocefalia, alargamento da mandíbula, proptose (devido ao acometimento dos ossos orbitais), hipoacusia condutiva (envolvimento de estruturas da orelha média), pode haver disacusia neurossensorial por constricção óssea do nervo coclear no meato acústico interno (MAI)3, inteligência normal, raro envolvimento do nervo óptico. Sindactilia ou alterações das unhas podem ajudar no diagnóstico. A forma benigna apresenta dois tipos6,8,9: I) esclerose pronunciada da calota craniana, estreitamento da tuba auditiva, meato acústico interno (disacusia neurossensorial) e externo, disacusia condutiva por aumento da rigidez da cadeia ossicular e obliteração das janelas redonda e oval8; acomete primariamente os nervos trigêmeo e vestíbulo-coclear, mas pode acometer o nervo facial. II) esclerose pronunciada na base do crânio, sem estreitamento do MAI, com envolvimento do nervo facial (paralisia facial em 100% dos casos), podendo acometer o nervo vestíbulo-coclear.
Não há tratamento para evitar a progressão da doença, porém a descompressão dos pares cranianos II,VII e VIII têm sido realizada (na forma benigna) na tentativa de prevenir perdas funcionais pela compressão óssea. A descompressão do nervo facial nos segmentos mastóideo e timpânico têm sido realizada, porém, segundo alguns autores9, isto não previne recidiva de paralisia facial aguda ou não melhoraria totalmente nos casos em que há compressão por estreitamento também do MAI, devendo-se então realizar a descompressão total do nervo2 (via mastóidea e fossa média).
A doença de Camurati-Engelmann é uma doença hereditária autossômica dominante, de penetrância variável, reportada por Camurati em 1922 e depois mais caracterizada por Engelmann em 192910, que envolve principalmente diáfises de ossos longos podendo acometer a base do crânio, clavícula e causar anormalidades neuromusculares. A progressão da esclerose óssea também pode afetar os forames dos nervos cranianos, causando déficits, como paralisia facial, perda auditiva, visual, distúrbios vasculares e hipoestesia facial. A perda auditiva ocorre em 18% dos casos10 e pode ser condutiva, por fixação do estribo na janela oval, mista ou neurossensorial por estenose do meato acústico interno. Os achados radiológicos do crânio incluem esclerose da base do crânio e ossos frontal e occipital, podendo haver comprometimento da mandíbula, maxila e zigoma10.
O tratamento pode ser cirúrgico através de descompressão dos nervos acometidos podendo necessitar de abordagem do meato acústico interno ou reabilitação com prótese auditiva convencional ou até implante coclear10 (em relação à seqüela da perda auditiva), dependendo fundamentalmente da reserva coclear.
Relato de CasosCaso 1D.S., masculino, 11 anos, pardo. Hipoacusia esquerda, baixa estatura, diminuição da acuidade visual. Alargamento da fronte, máculas hipercrômicas de mucosa jugal e pele, sindactilia em dedos das mãos e parcial nos pés, coxa varo, hipertelorismo e telecanto.
Avaliação audiomética: disacusia condutiva moderada à esquerda.
RX de crânio: esclerose difusa.
TC de ossos temporais: hiperdensidade óssea da calota craniana.
Evolução Clínica: Paciente mantém-se estável em relação à audição (5 anos após o diagnóstico), porém com baixa estatura pelo tratamento instituído, no intuito de diminuir o crescimento ósseo.
Caso 2J.A.J., masculino, 48 anos, branco. Anacusia à esquerda, paralisia facial periférica à esquerda e tontura rotatória. Posteriormente, anacusia na orelha direita. Alargamento do crânio generalizado.
Exame Vestibular: Síndrome Vestibular Periférica Deficitária Bilateral.
Avaliação audiomética: anacusia bilateral, curva timpanométrica tipo A, ausência de reflexos bilateralmente.
TC de crânio: osteopatia hipertrófica generalizada com etmóide poupado.
TC de ossos temporais: craniodisplasia hiperostótica com obliteração dos meatos acústicos internos.
ABR: ausência de respostas bilateralmente.
Evolução Clínica: Paciente optou por tratamento clínico e foi a óbito 3 anos após a paralisia facial por hipertensão intracraniana (devido ao aumento do tecido ósseo do crânio).
Caso 3C.L.G.S., feminino, 28 anos, branca.
Paralisia facial à direita há 2 meses sem melhora, com hipoacusia de início insidioso, piora progressiva e tinitus bilateral. Após 1 mês da paralisia facial à direita, paralisia facial à esquerda. Acompanhamento na Ortopedia e Genética com H.D.: Doença de Camurati-Engelmann.
Exame otorrinolaringológico: Paralisia facial periférica GIII à esquerda e GV à direita (House-Brackmann).
Hilger: 1,0mA à esquerda e inexcitável à direita.
Audiometria tonal e vocal e imitanciometria: perda mista bilateral moderada à severa, gap de 10 à 20dB, curva descendente. Ausência de reflexos estapedianos, timpanometria tipo A.
ABR: retardo das latências I, III e IV bilateralmente, mais acentuado à direita.
Eletroneuromiografia: denervação bilateral sem sinais de reinervação.
TC de ossos temporais: alterações osteoblásticas da base do crânio além de estreitamento de ambos os meatos acústicos internos.
Evolução Clínica: Indicada cirurgia de descompressão total do nervo facial à direita, paciente optou por tratamento clínico, mantendo o grau da paralisia facial.
DiscussãoOs dois casos de osteopetrose apresentados são da forma benigna da doença, ou seja, a que acomete adolescentes e adultos. Podemos ver que a forma de apresentação é variável. No 1o paciente, os sintomas principais foram a diminuição da acuidade visual e a hipoacusia, esta última representada por uma perda do tipo condutiva. O 2o paciente apresentava anacusia, paralisia facial periférica e vertigem, caracterizando uma compressão de pares cranianos, o que se confirmou na tomografia pelo estreitamento dos meatos acústicos internos. O exame físico pode nos auxiliar no diagnóstico, como a presença de alargamento do crânio ou da fronte, sindactilia8 e alterações em outros ossos. Porém o exame que mais nos ajuda no diagnóstico é a tomografia, principalmente a de ossos temporais, pois podemos verificar o diâmetro do MAI, além do comprometimento do canal do nervo facial. A presença de aumento exagerado do osso com rarefação da cavidade medular auxiliam no diagnóstico2. Na paciente acometida pela doença de Camurati-Engelmann, o sintoma inicial em relação ao acometimento do osso temporal foi a perda auditiva lentamente progressiva. O que nos chamou a atenção e o que levou a paciente a procurar o otorrinolaringologista foi a paralisia facial, que evoluiu para um quadro bilateral em um período de um mês, sendo que houve uma demora entre a primeira manifestação de envolvimento do nervo facial e a primeira consulta (2 meses), o que piora bastante o prognóstico em se tratando de compressão do nervo por estreitamento do MAI. As primeiras manifestações da doença costumam ser em ossos longos, mas devemos estar atentos para a possibilidade de alterações no osso temporal para que o tratamento seja feito de forma mais precoce.
Foto 1. Caso 1: paciente de 11 anos, masculino, com osteopetrose forma benigna. Notar o alargamento da fronte e o hipertelorismo.
Foto 2. Caso 2: paciente de 48 anos, masculino, com osteopetrose evolutiva. Notar o alargamento do crânio, no sentido ântero-posterior.
Foto 3. Caso 2: Tomografia de crânio (corte axial) evidenciando craniodisplasia hiperostótica, principalmente na região frontal, mas com acometimento difuso.
Foto 4. Caso 3: Tomografia de ossos temporais (corte coronal) em paciente com Doença de Camurati-Engelmann, evidenciando comprometimento do osso temporal, com compressão óssea do meato acústico interno à direita.
Foto 5. Tomografia de ossos temporais em corte axial de paciente com displasia fibrosa do osso temporal à esquerda, como diagnóstico diferencial. Notar o osso mais espongiótico.
Devemos fazer o diagnóstico diferencial com outras alterações crânio-faciais decorrentes de osteodistrofias como a doença de Paget, a displasia fibrosa, principalmente em suas formas pagetóide ou esclerótica (porém na displasia ocorre expansão da cavidade medular), osteogênese imperfeita (Síndrome de Van Der Hoeve)9, exostoses e osteomas de forma mais exuberante, entre outras.
Em relação à perda auditiva destes pacientes, o uso de prótese auditiva deve ser considerado, quando o paciente não se encontra com anacusia. Quando o paciente apresenta anacusia bilateral, podemos aventar a possibilidade de realização de implante coclear, sem negligenciar o fato de que o nervo coclear pode estar comprimido quando há estenose do MAI, o que pode resultar em falha do tratamento com implante, mas sinais indiretos de viabilidade do nervo devem ser levados em consideração, como ausência de paralisia facial ou de sintomas vestibulares10. A audiometria de tronco cerebral pode ser útil para auxiliar na decisão terapêutica. No nosso paciente adulto com osteopetrose, o ABR mostrava ausência de resposta bilateral o que teoricamente impossibilitaria o implante coclear. O mesmo paciente foi a óbito anos após, pelo crescimento ósseo excessivo e compressão de estruturas vitais.
O comprometimento do nervo facial é relativamente comum nas formas da doença que acometem o osso temporal e na descrição de nossos três casos, dois apresentaram paralisia facial (ambos com comprometimento do MAI confirmado pela tomografia). Talvez a paralisia indique a evolução da doença em um estágio de maior envolvimento do osso, podendo ocorrer antes do aparecimento de uma disacusia neurossensorial (como observamos em nossa paciente com a doença de Camurati-Engelmann.
A descompressão do nervo facial deve ser sempre aventada quando a evolução da paralisia é desfavorável (pelo grau da paralisia e pelos testes elétricos de prognóstico), tendo-se em mente que a descompressão total do nervo é preferível devido ao acometimento do MAI e também pelo fato de que a paralisia facial pode ser recorrente e, nestes casos, pode apresentar evolução cada vez menos favorável.
Comentários FinaisAs osteodistrofias do osso temporal são doenças de apresentação rara, com exceção da otospongiose, com neoformação óssea que pode se manifestar apenas no osso temporal ou envolver outros ossos dentro do crânio ou mesmo ser extracraniano. As manifestações clínicas das osteodistrofias raras como a osteopetrose e a doença de Camurati-Engelmann dependem do sítio de envolvimento, podendo se apresentar com perda auditiva condutiva, mista ou neurossensorial ou até anacusia, vertigem, paralisia facial, diminuição da acuidade visual, entre outros sintomas. Devemos ter em mente os possíveis diagnósticos diferenciais e a necessidade, em alguns casos, de intervenção cirúrgica como a descompressão do nervo facial ou a realização de implante coclear nas perdas auditivas profundas bilaterais.
Referências Bibliográficas1. Cruz OLM, Pessoto J, Pezato R, Alvarenga EL. Osteodistrofias do osso temporal: Revisão dos conceitos atuais manifestações clínicas e opções terapêuticas. Ver Bras Otorrinolaringol 2002; 68: 119-26.
2. Hamersma H. Total decompression of the Facial Nerve in Osteopetrosis (Marble Bone Disease - Morbus Albers - Schönberg). ORL J Otorhinolaryngol Relat Spec 1974; 36: 21-32.
3. Suga F, Lindsay JR. Temporal bone histopathology of osteopetrosis. Ann Otol Rhinol Laryngol 1976; 85: 15-24.
4. Myamoto RT, House WF, Brackmann DE. Neurotologic manifestations of the osteopetrosis. Arch Otolaryngol 1980; 106: 210-4.
5. Myers EN, Stool S. The temporal bone in osteopetrosis. Arch Otolaryngol 1969; 89: 44.
6. Milroy CM, Michaelis L. Temporal Bone Pathology of Adult - Type Osteopetrosis. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 1990; 116: 79-84.
7. Yarington CT, Sprinkle PM. Facial palsy in osteopetrosis. Jama 1967; 202: 549.
8. Bollerslev J, Grontved A, Anderson PE. Autossomal dominant type osteopetrosis: an otoneurological investigation of two radiological types. Laryngoscope 1988; 98: 411-3.
9. Hamersma H. Osteopetrosis (Marble Bone Disease) of the temporal bone. Laryngoscope 1970; 80: 1518-39.
10. Friedland DR, Wackym PA, Rhee JS, Finn MS. Cochlear implantation for auditory rehabilitation in Camurati-Engelmann disease. Ann Otol Rhinol Laryngol 2000; 109: 160-2.
11. Benecke JE Jr. Facial Nerve Dysfunction in Osteopetrosis. Laryngoscope 1993; 103: 494-7.
12. Hawke M, Janh AF, Bailey D. Osteopetrosis of the temporal bone. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 1981; 107: 278-82.
13. Welfort N. Facial paralysis associated with osteopetrosis. J Pediatr 1959; 55: 67-72.
1 Mestre e Pós-graduando em Nível de Doutorado. Disciplina de Otorrinolaringologia - Unifesp.
2 Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica. Universidade Federal de São Paulo - Unifesp.
3 Mestre em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Disciplina de Otorrinolaringologia - Unifesp.
4 Residente do 3o ano. Disciplina de Otorrinolaringologia - Unifesp.
Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana - Unifesp.
Endereço para correspondência: Marcos Luiz Antunes - Rua 1o de Janeiro, 20-ap.41 Vila Clementino 04044-060 São Paulo SP.
Apresentado como tema livre no 36o Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, Florianópolis, Nov-2002.
Artigo recebido em 28 de janeiro de 2003. Artigo aceito em 24 de março de 2003.