INTRODUÇÃO
Crianças podem apresentar vários distúrbios respiratórios durante o sono: ronco primário, síndrome de resistência das vias aéreas superiores e apnéia/hipopnéia (central, obstrutiva ou mista)1.
O ronco primário é o quadro clínico no qual há ruído respiratório, mas a arquitetura do sono, a ventilação alveolar e a saturação de oxigênio da hemoglobina mantêm-se normais. É freqüente na infância e afeta 7 a 9% das crianças de um a 10 anos1.
A síndrome de resistência das vias aéreas superiores (SRVAS) caracteriza-se por: ronco noturno, despertares eletrencefalográficos breves, fragmentação do sono e aumento da resistência das vias aéreas ao fluxo aéreo inspiratório, porém sem redução significativa do fluxo ou dessaturação da oxihemoglobina. Sua prevalência em crianças ainda é desconhecida2.
Apnéia central é a interrupção do comando do sistema nervoso central para a musculatura respiratória, ocasionando cessação do fluxo aéreo oronasal e ausência de esforço respiratório, isto é, de movimentos tóraco-abdominais. Tem maior prevalência nos neonatos e prematuros e também é considerada normal quando não afeta a saturação arterial de oxigênio3. Apnéia obstrutiva é a cessação do fluxo aéreo oronasal por colabamento das vias aéreas superiores (VAS), apesar do esforço da musculatura tóraco-abdominal. Nas crianças normais é um evento raro durante o sono e não costuma durar mais do que 10 segundos4. Apnéia mista envolve tanto a diminuição do controle respiratório central quanto obstrução das VAS. Hipopnéia é a redução parcial do fluxo aéreo oronasal e também pode ser classificada como central, obstrutiva ou mista4.
A síndrome da apnéia obstrutiva do sono (SAOS) foi descrita em crianças pela primeira vez por William Osler em 1892, mas seu estudo tornou-se sistemático somente a partir da década de 19703. Segundo a Classificação Internacional de Distúrbios do Sono, a SAOS é um "distúrbio intrínseco do sono caracterizado por episódios repetidos de obstrução das vias aéreas superiores associados à dessaturação da hemoglobina"5.
A prevalência de SAOS nas crianças varia de 0,7 a 3% nos diferentes estudos epidemiológicos5,6. O pico de incidência é observado nos pré-escolares, faixa etária na qual a hipertrofia das tonsilas palatinas e da adenóide é mais comum2. A SAOS pode ter conseqüências graves como: cor pulmonale3, retardo do crescimento pôndero-estatural7, alterações do comportamento, prejuízo do aprendizado, inteligência e de outras funções cognitivas da criança8,9.
Etiopatogenia da SAOS
Em condições fisiológicas, as vias aéreas superiores (VAS) mantêm-se permeáveis graças a fatores anatômicos e funcionais. Alterações desses fatores podem desencadear a SAOS3.
Fatores anatômicos
1. Alterações ósseas
O esqueleto craniofacial é o arcabouço que protege as VAS. Em contrapartida, anormalidades como atresia de coanas, micrognatia, hipoplasia mandibular e alterações da conformação da base do crânio (platibasia, p. ex.) podem provocar obstrução respiratória10.
A micrognatia é encontrada em mais de 60 síndromes genéticas (microssomia hemifacial, Treacher-Collins, Goldenhar, Pierre Robin, etc.) e costuma coexistir com macroglossia e outras más-formações, levando ao deslocamento dorsal da língua e ao estreitamento da orofaringe11.
Nas síndromes com anomalias craniofaciais (Down, Crouzon, Apert, Pfeiffer, etc.) a deformidade da base do crânio e a hipoplasia maxilar provocam obstrução das cavidades nasais e da rinofaringe11.
Alterações dos limites ósseos da rinofaringe podem diminuir seu diâmetro ântero-posterior. Possivelmente por conta disso nem todas as crianças com hipertrofia da adenóide têm distúrbios respiratórios durante o sono mas, por outro lado, algumas crianças continuam roncando mesmo após a adenoidectomia10.
O músculo genioglosso promove a protrusão da língua, evitando que ela se mova em direção à parede posterior da orofaringe em condições normais. O hábito da respiração bucal provoca a rotação da mandíbula em direção dorsocaudal, alterando a posição do músculo genioglosso e diminuindo a capacidade de protrusão da língua10.
O posicionamento dorso-caudal anômalo do hióide em algumas crianças é o motivo do distúrbio respiratório durante o sono. Esses pacientes tendem a dormir em posição de hiperextensão cervical, na qual há elevação do hióide e alívio temporário da obstrução10.
2. Alterações das partes moles
A obstrução nasal grave pela rinite, tumores ou pólipos nasais volumosos pode ocasionar respiração bucal e SAOS12.
No primeiro ano de vida a laringe da criança é mais cranial e a epiglote pode alcançar o palato mole. Essa conformação oferece maior proteção contra a aspiração de alimentos quando a criança faz movimento de sucção, porém facilita a obstrução da faringe13. Crianças com laringomalácia e outras doenças laríngeas (membranas, tumores) também podem ter apnéia obstrutiva.
A alteração anatômica mais comum nas crianças com SAOS é a hipertrofia do tecido linfático faríngeo14, que ocorre principalmente dos três aos oito anos de idade3. Ressaltamos que essa alteração parece ser um fator necessário, mas não suficiente para desencadear a SAOS, pois: a) nem todas as crianças com hipertrofia adenotonsilar têm apnéia; b) a maioria das crianças com hipertrofia das tonsilas palatinas não apresenta obstrução respiratória durante a vigília, quando o tônus muscular é maior e c) muitas crianças submetidas à adenotonsilectomia voltam a ter sintomas obstrutivos na adolescência3. Esses fatos levam a crer que a SAOS resulte da combinação de anomalias anatômicas e funcionais em determinadas crianças3.
Fatores funcionais
No sono há hipotonia dos músculos intercostais e dilatadores das VAS. No sono de ondas lentas, o reflexo de ativação dos músculos genioglosso e tensor do véu palatino é reduzido ou até abolido. Conseqüentemente, há diminuição do calibre das VAS e aumento de sua resistência ao fluxo aéreo13.
Harvey et al.15 avaliaram a possível relação entre fatores pré- e perinatais e SAOS em 40 crianças sem afecções neurológicas. Observaram maior incidência de complicações na gestação (infecções, necessidade de internações hospitalares, etc.) nas mães de crianças com SAOS do que nas mães de crianças sadias. As crianças com SAOS também tenderam a sofrer mais complicações perinatais como hipoxemia e doenças respiratórias. Os autores aventam a hipótese de influência das complicações maternas e dos eventos perinatais na diminuição do controle neural das vias aéreas superiores e na predisposição à SAOS.
Crianças com doenças neuromusculares que levam à hipotonia generalizada (distrofias musculares) ou incoordenação (paralisia cerebral) têm alto risco de SAOS severa13.
Repercussões Clínicas da SAOS
1. Sistema cardiovascular
Marcus et al.16 estudaram 41 crianças com SAOS, observando que 32% apresentavam pressão arterial (PA) sistólica e diastólica acima do percentil 95, tanto no sono quanto na vigília. A hipertensão teve relação direta com a gravidade da apnéia obstrutiva e o grau de obesidade das crianças. Os autores atribuem a elevação da PA nessas crianças aos despertares subcorticais, e não à hipoxemia, pois não houve relação entre as medidas de pressão e a oximetria. Os autores salientam que ainda é necessário avaliar se o tratamento da SAOS normalizaria os níveis da PA nessas crianças.
A obstrução das VAS e a hipoventilação alveolar crônica levam à alteração da relação ventilação/perfusão nos pulmões. A hipercapnia e a hipoxemia provocam acidose respiratória e conseqüente vasoconstrição da artéria pulmonar, aumentando a carga de trabalho do ventrículo direito. Simultaneamente, as artérias pulmonares de médio e pequeno calibre apresentam remodelação e hipertrofia da camada muscular lisa. Ao longo do tempo, o miocárdio sofre hipertrofia e em alguns casos há dilatação do ventrículo direito, insuficiência cardíaca e cor pulmonale17.
2. Crescimento e metabolismo
Existem três teorias para explicar a ocorrência de retardo de crescimento pôndero-estatural em muitas das crianças com SAOS: 1. redução da produção de hormônio de crescimento, 2. redução do aporte calórico pela anorexia/disfagia nas crianças com hipertrofia adenotonsilar e 3. maior gasto energético pelo esforço respiratório noturno18.
O hormônio de crescimento (GH) é secretado durante os estágios profundos do sono de ondas lentas. Supõe-se que ocorra diminuição da secreção noturna do GH nos pacientes com SAOS. De fato, os níveis sangüíneos de "insulin growth factor" 1 (IGF-1), principal mediador das ações do GH, e de "insulin growth factor binding protein" (IGFBP-3) são menores nas crianças com SAOS do que nas normais. Após a adenotonsilectomia, esses níveis se normalizam18.
De la Eva et al.19 acreditam que a descarga simpática provocada pelos episódios de apnéia leve ao aumento da concentração plasmática de catecolaminas, cortisol e insulina. Estudando o metabolismo de 62 crianças e adolescentes obesos com SAOS, observaram que a glicemia no jejum estava alterada em 11% dos casos, mantendo relação direta com o índice de apnéia e hipopnéia (IAH) registrado na polissonografia.
3. Funções cognitivas, aprendizado e comportamento
A sonolência excessiva diurna é uma das principais queixas dos adultos com SAOS, já que o sono é fragmentado. Nas crianças com SAOS, o menor número de despertares e a relativa preservação da arquitetura do sono fazem com que esse sintoma seja menos freqüente. O teste de múltiplas latências do sono (MSLT) é um dos melhores métodos para avaliação da sonolência diurna. Latência média de sono inferior a 10 minutos é um indicador de sonolência excessiva. O estudo de MSLT em 54 crianças com SAOS (diagnosticada quando índice de apnéia >2), 14 com ronco primário e 24 controles normais mostrou que a latência de sono é menor nas primeiras, porém apenas 13% das crianças com SAOS apresentaram latência inferior a 10 minutos20.
Testes de inteligência, memória e atenção em 16 escolares encaminhados para tratamento do ronco mostraram prejuízo do desempenho cognitivo dessas crianças em relação a 16 controles normais da mesma idade. As crianças com ronco tiveram déficit de inteligência e atenção, mesmo sem hipersonolência diurna. Presume-se que o déficit de atenção comprometa o processamento e o registro de informações, reduzindo a capacidade de aprendizado das crianças com SAOS21.
Um inquérito avaliou a prevalência de distúrbios respiratórios do sono em 782 crianças com mau desempenho na primeira série do ensino fundamental em escolas públicas dos EUA. Fez-se uma entrevista com os pais sobre sintomas respiratórios dos filhos e, posteriormente, as crianças foram submetidas à oximetria de pulso e capnografia durante uma noite. A prevalência de ronco primário nessa amostra foi de 22,2%, e a de distúrbios respiratórios do sono, de 18,1%. Vinte e quatro crianças com distúrbios respiratórios do sono foram submetidas à adenotonsilectomia, e suas notas escolares melhoraram significativamente no ano seguinte à cirurgia9.
Cerca de 28% das crianças com hipertrofia adenotonsilar têm alterações de comportamento como agressividade e hiperatividade2. Por outro lado, a prevalência de ronco noturno habitual entre 143 crianças com déficit de atenção e distúrbio de hiperatividade (DADH) é de 30%8. O DADH usualmente é tratado com medicamentos e acompanhamento psiquiátrico, mas o pediatra deve ficar alerta para a coexistência de distúrbios respiratórios do sono nessas crianças.
Diagnóstico da SAOS
1. Anamnese
Os principais sintomas da SAOS em crianças são: ronco noturno, pausas respiratórias, dificuldade para respirar, sono agitado, sudorese noturna e respiração bucal. Também podem ser encontrados: sintomas de rinite, enurese, hábito de dormir em posição de hiperextensão cervical, sonolência diurna excessiva, alterações de comportamento e déficit de aprendizado22.
2. Exame físico
Li et al.23 ressaltam que apenas a parte superior das tonsilas palatinas é visível na orofaringoscopia, podendo causar falsa impressão de seu tamanho e formato. Os autores sugerem a realização da radiografia em perfil das VAS para avaliar com maior precisão a obstrução da coluna aérea pelas tonsilas palatinas.
A nasofibroscopia tem grande utilidade no exame das cavidades nasais e da rinofaringe, permitindo ao otorrinolaringologista diagnosticar desvios do septo nasal, hipertrofia das conchas nasais e da adenóide, bem como alterações da dinâmica respiratória e da deglutição em conseqüência da hipertrofia das tonsilas palatinas.
O diagnóstico precoce da SAOS nas crianças tornou mais raro o achado de sinais clínicos de cor pulmonale22.
3. Polissonografia
A polissonografia (PSG) em laboratório de sono durante uma noite inteira é o padrão-ouro para diagnóstico da SAOS. O exame tem excelente reprodutibilidade, documenta a obstrução das VAS, distingue apnéia obstrutiva da central e registra crises epilépticas nas crianças com doenças neurológicas22. As indicações da "American Thoracic Society"24 para realização da PSG em crianças são:
1. Diagnóstico diferencial entre ronco primário e síndrome da apnéia obstrutiva do sono;
2. Avaliação da criança com padrão de sono patológico (sonolência excessiva diurna, p. ex.);
3. Confirmação diagnóstica de obstrução respiratória durante o sono para indicação de tratamento cirúrgico;
4. Avaliação pré-operatória do risco de complicações respiratórias da adenotonsilectomia ou outras cirurgias nas vias aéreas superiores;
5. Avaliação de pacientes com laringomalácia cujos sintomas são mais intensos no período noturno ou têm cor pulmonale;
6. Avaliação de crianças obesas com sonolência excessiva diurna, ronco, policitemia ou cor pulmonale;
7. Avaliação de crianças com anemia falciforme (pelo risco de oclusão vascular durante o sono);
8. Persistência do ronco no pós-operatório de adenotonsilectomia;
9. Controle periódico do tratamento com pressão positiva contínua das vias aéreas (CPAP).
Há inúmeras diferenças entre crianças e adultos no registro da SAOS através de polissonografia. Nos adultos com SAOS o episódio de apnéia quase sempre é seguido de um despertar cortical, provocando a fragmentação do sono, porém menos de 20% das crianças com SAOS apresentam despertares corticais3,13,25.
A maioria dos despertares, apnéias e hipopnéias obstrutivas nas crianças ocorre durante o sono REM. Essa característica é oposta à dos adultos, nos quais a obstrução das VAS é mais comum no sono de ondas lentas13,25.
Considera-se apnéia no adulto a cessação do fluxo aéreo por 10 segundos ou mais. Nesse intervalo um adulto apresenta apenas dois ou três ciclos respiratórios, porém crianças pequenas podem apresentar até seis ciclos em função da sua maior freqüência respiratória3.
A criança sofre dessaturação significativa da hemoglobina mesmo nas apnéias de curta duração, já que seu metabolismo e o consumo de oxigênio são maiores do que os do adulto3. O adulto apresenta obstrução completa e cíclica das VAS, enquanto a criança - sobretudo menor de três anos - tende ter uma obstrução parcial demorada, chamada hipoventilação obstrutiva13.
Em vista dessas diferenças, os parâmetros para análise da PSG nos adultos são inadequados para as crianças. A "American Thoracic Society"26 recomenda os seguintes critérios:
* Índice de apnéia (IA): número de apnéias obstrutivas e mistas com duração mínima de dois ciclos respiratórios. Expresso em eventos por hora (considerando para cálculo o tempo total de sono). SAOS é diagnosticada nas crianças quando IA?1/hora.
* Hipopnéia obstrutiva: redução de 50% ou mais do fluxo aéreo associada à dessaturação da oxihemoglobina ?4%, ou SaO2<90% e/ou despertar.
* Índice de apnéia-hipopnéia (IAH): somatória do número de apnéias obstrutivas e mistas, hipopnéias obstrutivas e mistas. Expresso em eventos por hora (considerando para cálculo o tempo total de sono). Considera-se anormal nas crianças o IAH?1/hora. O IAH também é denominado índice de distúrbio respiratório (IDR)14.
Harvey et al.15 classificam a SAOS em crianças como leve quando 1?IAH<5/hora, moderada quando 5?IAH<9/hora e grave quando IAH>10/hora.
Saturação de O2 da hemoglobina (SaO2): são consideradas a saturação mínima (nadir SaO2) e a saturação média de oxigênio durante o exame. É critério diagnóstico o nadir da SaO2<90% associado à apnéia obstrutiva.
Hipoventilação alveolar: calcula-se a porcentagem do tempo total de sono com hipercapnia (CO2>50mmHg) ao final da expiração. Considera-se hipoventilação: CO2>50mmHg ao final da expiração por mais de 8% do tempo total de sono, ou variação do CO2 >13mmHg em relação ao valor basal.
Crianças com ruído respiratório durante o sono, porém com IAH<1, ausência de dessaturação da hemoglobina ou de hipercapnia durante a PSG recebem o diagnóstico de ronco primário.
4. Outros exames
O número insuficiente de laboratórios de sono pediátricos para atender a demanda de polissonografias, bem como o custo elevado do exame, faz com que se busquem outros métodos para diagnóstico.
Já se sugeriu a realização de PSG diurna por uma a duas horas ("nap polysomnography") para triagem dos casos suspeitos de SAOS. O método tem as seguintes desvantagens: 1. ao contrário da PSG noturna, os exames diurnos comumente necessitam ser feitos sob sedação, o que pode aumentar o número de apnéias obstrutivas; 2. durante a PSG diurna a criança pode não apresentar sono REM. Como vimos, os eventos de obstrução respiratória são mais comuns justamente nesta fase do sono26. Por conseguinte, a PSG diurna tende a subestimar os episódios de apnéia e hipopnéia obstrutiva25.
De acordo com a Academia Americana de Pediatria22, a PSG de triagem só tem valor quando registra apnéias ou hipopnéias. Na suspeita clínica de SAOS, mesmo com resultado normal na PSG diurna, a criança deve ser submetida à PSG de noite inteira.
Pensando na dificuldade para adaptação da criança ao ambiente do laboratório de sono e na comodidade para os pais, Goodwin et al.27 realizaram 157 exames de PSG domiciliar em crianças de cinco a 12 anos. Quinze exames foram insatisfatórios porque o oxímetro de pulso saiu do dedo da criança no meio da noite, a criança não cooperou ou ocorreram problemas técnicos (desconexão de cabos, falha no funcionamento da bateria do equipamento). Apenas 61% dos registros foram considerados de excelente qualidade. Sugere-se, portanto, que a PSG só deva ser feita na residência do paciente quando este não tiver condições clínicas para se deslocar ao laboratório de sono.
Brouillette et al.28 avaliaram os resultados da oximetria noturna em 349 crianças submetidas à PSG com suspeita de SAOS por hipertrofia adenotonsilar. Os dados da oximetria foram analisados sem o conhecimento do resultado da PSG. A oximetria foi considerada positiva para SAOS quando registrou três ou mais episódios de dessaturação num intervalo de 10 a 30 minutos, dos quais pelo menos três eventos resultaram em SaO2<90%. Em 93 crianças a oximetria foi positiva e, destas, 90 confirmaram o diagnóstico de SAOS na PSG (IAH?1). Neste trabalho, o valor preditivo positivo da oximetria de pulso noturna para diagnóstico de SAOS foi de 97%. Os autores ressalvam que a oximetria normal frente à suspeita clínica não descarta SAOS, e a criança deve ser encaminhada para PSG.
A gravação dos ruídos respiratórios da criança durante o sono também é usada para triagem de casos suspeitos de SAOS. Pode ser feita pelos pais no próprio quarto de dormir dos filhos. Na análise da gravação a equipe médica pode avaliar a intensidade do ronco e as pausas respiratórias29. A sensibilidade do método para detecção de apnéia é superior a 90%, porém seu valor preditivo positivo não ultrapassa 50%22.
O registro das imagens do sono da criança é mais dispendioso e tecnicamente complicado, podendo obrigar ao uso de câmaras infravermelhas para gravação nos ambientes com pequena luminosidade. A análise do padrão respiratório da criança na fita de vídeo tem uma sensibilidade de cerca de 94% para diagnóstico da SAOS, com valor preditivo positivo de 83%22.
A cefalometria nos raios-X em perfil das VAS analisa as estruturas craniofaciais e mede a coluna aérea em diferentes pontos, o que é particularmente importante nas crianças com malformações10.
Tratamento da SAOS
1. Tratamento cirúrgico
A adenotonsilectomia permite a cura da SAOS em 75-100% das crianças com hipertrofia adenotonsilar7.
O risco de complicações respiratórias no pós-operatório da adenotonsilectomia é maior quando a cirurgia é indicada em casos de SAOS do que nos casos de faringotonsilites recorrentes. São consideradas crianças de alto risco para complicações respiratórias: lactentes, portadoras de anomalias craniofaciais, síndrome de Down e outras doenças genéticas, paralisia cerebral, doenças neuromusculares, metabólicas e de depósito, doença pulmonar obstrutiva crônica, cor pulmonale e anemia falciforme22, aquelas com SaO2<70% ou IAH>10/hora26. Nesses casos a Academia Americana de Pediatria recomenda que as crianças permaneçam hospitalizadas na noite seguinte à cirurgia para monitorização contínua pela oximetria de pulso22.
Embora a traqueotomia seja eficaz para tratamento da SAOS, o procedimento pode ter complicações (estenose do estoma, obstrução da cânula por rolhas de secreção ou tecido de granulação) e aumenta a necessidade de cuidados da família para com o paciente. Por isso advoga-se o tratamento específico dos pontos de obstrução das VAS (cirurgias otorrinolaringológicas, ortognáticas e maxilofaciais)11.
Levantamento de 25 cirurgias para tratamento da micrognatia mostrou que houve sucesso do alívio da obstrução respiratória em 23 casos, sendo necessária a reoperação em dois casos. Oitenta por cento das crianças puderam fechar a traqueostomia nos pós-operatório11.
A uvulectomia e a uvulopalatofaringoplastia podem ser feitas em conjunto com a adenotonsilectomia no tratamento da SAOS, dependendo da avaliação do otorrinolaringologista e demais membros da equipe multidisciplinar. Estes procedimentos são aplicáveis aos casos de doenças neuromusculares e paralisia cerebral.
2. Tratamento clínico
A pressão positiva contínua das vias aéreas (CPAP nasal ou BiPAP) é indicada quando: 1. não há hipertrofia adenotonsilar; 2. há contra-indicações para tratamento cirúrgico da apnéia; 3. persiste SAOS após o tratamento cirúrgico22. Recomenda-se a realização de nova PSG seis a oito semanas após a cirurgia para confirmar a persistência de SAOS13. O CPAP também pode ser usado temporariamente nos casos de SAOS severa associada a síndromes genéticas, mucopolissacaridoses e paralisia cerebral, até que a criança seja submetida à cirurgia13.
O CPAP nasal ainda não foi aprovado pela "Food and Drug Administration" norte-americana para uso em crianças com menos de 30kg13.
As orientações para higiene do sono, tratamento da obesidade e da rinite também são importantes na abordagem das crianças com SAOS22. As seqüelas da respiração bucal crônica necessitam ser corrigidas através da atuação da equipe multiprofissional, com terapia fonoaudiológica e/ou ortodôntica para restabelecer os padrões normais de respiração e crescimento craniofacial30.
DISCUSSÃO
As pesquisas sobre os distúrbios respiratórios do sono na criança vêm se desenvolvendo muito nas últimas décadas. Contudo, há um descompasso em relação ao diagnóstico e tratamento dessas doenças na prática clínica.
De acordo com Bower; Buckmiller2 é comum a demora para diagnóstico de SAOS nas crianças, mesmo nos países desenvolvidos. O intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico pode chegar a três anos2, aumentando os riscos de complicações cardiovasculares16,17, metabólicas19 e de prejuízo das funções cognitivas e aprendizado escolar8,9. Nesse ínterim piora a qualidade de vida da família como um todo, pela angústia frente ao desconforto respiratório da criança durante o sono.
O padrão-ouro para diagnóstico da SAOS é a polissonografia (PSG) de noite inteira em laboratório de sono22,24. A "American Thoracic Society" recomenda que a PSG seja feita sempre que há necessidade de: confirmação diagnóstica, avaliação do risco cirúrgico das crianças submetidas à adenotonsilectomia e controle dos resultados do tratamento clínico ou cirúrgico da SAOS24. Todavia, em nosso país o número de locais aptos a realizar a PSG em crianças está muito aquém da demanda, implicando o deslocamento dos pacientes e seus pais aos grandes centros, onde geralmente há filas de espera. Outros agravantes são: o alto custo da PSG nas clínicas de sono particulares e sua exclusão da lista de procedimentos cobertos por vários planos de saúde. Por essas razões, embora o ideal seja a comprovação da SAOS em todos os casos suspeitos, na prática a maioria das crianças sem outros problemas de saúde pode ser submetida à adenotonsilectomia com base no diagnóstico clínico do pediatra e otorrinolaringologista e nos achados radiográficos ou de nasofibroscopia.
Nos casos em que há doenças associadas (malformações craniofaciais, cardiopatias, doenças neurológicas, etc.) devem ser feitos todos os esforços para que a criança seja submetida à PSG em laboratório de sono, a fim de avaliar a gravidade da apnéia e o risco de complicações respiratórias no pós-operatório de adenotonsilectomia22. Nas situações em que o exame definitivamente não esteja disponível, o médico pode lançar mão de alternativas como a oximetria de pulso noturna e a gravação em fita cassete do ruído respiratório da criança durante sono28,29.
Em relação à PSG destacamos que ainda não há consenso sobre os critérios para diagnóstico da SAOS e mensuração de sua gravidade24,26. Provavelmente serão necessários alguns anos para estabelecer o que é normal e o que é patológico na polissonografia em crianças de diferentes faixas etárias.
Segundo a literatura, a adenotonsilectomia proporciona a cura da SAOS em mais de 75% das crianças com hipertrofia adenotonsilar7,22 e tem impacto positivo no crescimento18, comportamento e cognição das crianças9. Os demais procedimentos cirúrgicos para correção das anomalias das vias aéreas superiores também têm bons resultados, e muitas vezes é possível remover a traqueostomia da criança no pós-operatório11.
Lembramos que o otorrinolaringologista deve ter cuidados especiais ao operar crianças com SAOS associada a outras afecções (neurológicas, cardiovasculares, más-formações craniofaciais, etc.), pois elas têm maior risco de apresentar complicações respiratórias após a intervenção. Os procedimentos cirúrgicos devem ser realizados em hospitais devidamente aparelhados e providos de unidades de terapia intensiva/semi-intensiva, para monitorização adequada da criança no pós-operatório.
A terapia com CPAP ou BiPAP nasal, embora dispendiosa, traz grande benefício às crianças com SAOS associada a doenças neurológicas ou musculares13 e merece ser melhor estudada também nos lactentes.
COMENTÁRIOS FINAIS
Enfatizamos que a equipe médica multidisciplinar - pediatras, neuropediatras e otorrinolaringologistas - deve se conscientizar da importância do diagnóstico e tratamento precoce da SAOS para prevenir complicações e melhorar a qualidade de vida da criança.
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1 Professora Voluntária Doutora da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP)
2 Professora Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP)
3 Livre Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP)
Endereço para correspondência:
Dra. Aracy P. S. Balbani
Rua Capitão Lisboa, 715, cj. 33, 18270-070, Tatuí, SP. Fax: (0xx15) 3259.1152
Email: a_balbani@hotmail.com
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