INTRODUÇÃOA vertigem pode ser definida como uma sensação de tontura rotatória ou na qual esteja implícita a sensação de deslocamento espacial. Este sintoma tem uma grande prevalência mundial, sobretudo nas populações mais idosas, seja isolado ou associado a outros sinais e sintomas, representando desta forma um grande contingente das visitas aos consultórios médicos das mais variadas especialidades, principalmente neurologistas, cardiologistas e otorrinolaringologistas1,2.
A etiologia da vertigem pode ser uni ou multifatorial, podendo estar envolvidos os vários órgãos e sistemas responsáveis pelo equilíbrio corporal, desde o sistema proprioceptivo, o sistema visual e o aparelho vestibular propriamente dito2.
No tocante ao aparelho vestibular, este pode ser envolvido tanto em sua porção periférica, composta pelos canais semicirculares, pelo conjunto utrículo-sacular e pelo nervo vestibular quanto em sua porção central que envolve o ângulo ponto-cerebelar, os núcleos vestibulares no tronco cerebral e sua representação no córtex cerebral. Em ambas as situações podem ocorrer comprometimento por fatores locais (infecções, trauma, tumores) como por fatores sistêmicos (hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, doenças degenerativas-desmielinizantes)3. Dentre estas várias causas, as doenças degenerativo-desmielinizantes respondem por um pequeno percentual dos quadros vertiginosos, necessitando para seu diagnóstico de uma história clínica e um exame físico muito bem conduzidos e de exames complementares mais específicos para avaliação do sistema nervoso central4.
A sintomatologia relacionada aos distúrbios do equilíbrio pode ser unicamente a instabilidade corporal no espaço ou estar associada a alterações tipo naúseas, vômitos e sudorese fria. As crises vertiginosas podem ter duração e intensidade as mais variadas possíveis, desde segundos até dias.
Apresentamos a seguir o caso de um paciente que deu entrada no serviço com quadro de vertigem, associada à hipoacusia e acúfenos discretos, cuja investigação cuidadosa revelou tratar-se de um caso de síndrome degenerativo-desmielinizante de etiologia ainda não esclarecida. Com este relato, pretendemos chamar a atenção dos colegas otorrinolaringologistas, para a possibilidade de depararem-se em seus consultórios com alterações do sistema nervoso central que apresentam como primeira manifestação quadros vertiginosos, associados ou não, a outros sinais e sintomas do aparelho auditivo.
REVISÃO DE LITERATURAAs alterações do sistema nervoso central associadas a sintomatologia vertiginosa, isolada ou não, já têm sua ocorrência bem documentada na literatura mundial. Estas alterações podem envolver uma série de doenças: vasculares, tumorais, degenerativo-desmielinizantes3. Da mesma forma, sintomas neurológicos transitórios resultantes de alterações em sistema nervoso central podem se manifestar como vertigens ou instabilidade corporal no espaço.
Apesar da maior incidência de casos de crises vertiginosas terem sua origem na porção periférica do aparelho vestibular, os casos de origem central podem se constituir em verdadeiros dilemas diagnósticos, sendo necessário para sua elucidação etiológica a solicitação de exames complementares como Pesquisa de Potenciais Evocados de Tronco Cerebral e Ressonância Nuclear Magnética, os quais avaliam com maior propriedade o sistema nervoso central2. Nestes casos, já está bem definido o papel da Ressonância Nuclear Magnética como procedimento diagnóstico mais indicado para a identificação das alterações anatômicas do sistema nervoso central que podem ser responsáveis por quadros vertiginosos, raramente isolados ou associados a outros sinais ou sintomas5.
Outra formas de propedêutica armada, como estudo vectoeletronistagmográfico e mesmo a avaliação dos Potenciais Evocados de Tronco Cerebral, são não específicas e inclusive podem se revelar normais na vigência de alterações no sistema nervoso central6.
A insula posterior, o sulco central e o lóbulo parietal inferior (incluindo o sulco intraparietal) têm sido considerados como componentes do córtex vestibular, responsável pela manutenção do equilíbrio corporal no espaço, baseado em estudos de mapeamento cerebral humano e experimentos em primatas inferiores. Estas mesmas regiões recebem projeções aferentes complementares visuais, optocinéticas e proprioceptivas6.
No que tange à etiologia dos distúrbios vestibulares e sua relação com alterações degenerativo-desmielinizantes do sistema nervoso central, a ressonância nuclear magnética apresenta-se como um exame altamente sensível e de escolha na suspeita destas afecções. Entre as principais causas de síndromes degenerativo-desmielinizantes do sistema nervoso central encontram-se a esclerose múltipla, a esclerose lateral amiotrófica, leucoencefalopatias4.
O aparecimento destas síndromes tendo como sintomatologia inicial a vertigem, associada ou não com hipoacusia neurossensorial e acúfenos, é bastante raro4. Porém não existem dados quantitativos sobre esta real incidência, o que justifica e recomenda a avaliação com ressonância nuclear magnética nos pacientes com esta sintomatologia, nos quais as afecções que acometem o aparelho vestibular em sua porção periférica foram pesquisadas e excluídas, e as alterações sistêmicas que possam precipitar estas síndromes foram também excluídas através da realização de exames complementares que nada revelaram de anormal.
APRESENTAÇÃO DE CASO CLÍNICOPaciente M.O.L., masculino, branco, 62 anos, apresentou-se no serviço em agosto/2001 com queixa de discreta hipoacusia associada a acúfenos em orelha direita há cerca de 3 meses. Referia também vertigem associada a episódio de síncope, que necessitou de internação hospitalar, sem diagnóstico elucidativo. Apresentava no momento marcha tipo atáxica. Sem outras queixas ORL. Referia HAS com controle medicamentoso. Negava uso de drogas ototóxicas. Não havia história de alterações sistêmicas. Exame ORL e restante exame físico geral normais. Solicitado audiometria tonal e imitanciometria que revelaram hipoacusia leve em freqüências agudas na orelha direita, com presença do reflexo estapediano, sem outras alterações. Solicitada avaliação otoneurológica, que constou dos exames: pesquisa de nistagmo espontâneo e semi-espontâneo, reflexo pendular, pesquisa de nistagmo optocinético, prova rotatória pendular decrescente e provas calóricas, os quais foram todos normais. Solicitada também avaliação bioquímica que constou de dosagens sorológicas de sódio, potássio, cálcio, lipidograma, proteinograma, curva glicêmica e insulinêmica de 03 horas, VDRL, pesquisa de hormônios tiroidianos (T3/ T4 / TSH) que se revelaram normais. Avaliação hematológica através de hemograma, tempo de protrombina e tempo parcial de tromboplastina ativada sem qualquer alteração. Encaminhado para avaliação pela neurologia, o qual solicitou T.C. de crânio, não encontrando nada de significativo (Figura 1).
Paciente retornou mantendo as mesmas queixas e acusando aumento de intensidade e freqüência das vertigens, chegando a ponto de tornarem-se quase incapacitantes. Frente a esta apresentação clínica, optou-se pela realização de potenciais evocados de tronco cerebral (BERA) que se mostrou sem alterações no tempo de latência absoluta entre as ondas I e V e também sem alterações no tempo de latência absoluta entre as ondas I e III e entre as ondas III e V. Prosseguimos avaliação através de R.N.M. de crânio e condutos auditivos internos. A RNM de condutos auditivos internos nada revelou, porém a RNM de crânio revelou áreas com desmielinização em sistema nervoso central, principalmente em regiões peri-ventriculares, que se apresentaram como áreas bem delimitadas, hiperatenuantes, principalmente em janelas T2 e FLAIR (Figuras e 3). Com base nestes achados, nova avaliação pela Neurologia foi solicitada, na tentativa de elucidação etiológica da síndrome desmielinizante, a qual foi responsabilizada pelo quadro vertiginoso do paciente, já que toda avaliação restante foi negativa.
DISCUSSÃOO caso apresentado ilustra as dificuldades diagnósticas que os distúrbios vestibulares podem apresentar, além da importância da história clínica e exame físico bem conduzidos nestes distúrbios e a relevância da ressonância nuclear magnética no diagnóstico final.
Figura 1. TC normal, corte axial
Figura 2. RNM corte axial T2 mostrando áreas de desmielinização
Figura 3. RNM corte axial T2 mostrando áreas de desmielinização
Em casos de vertigem permanente, em que o paciente se queixa constantemente, referindo permanência ou mesmo piora do quadro clínico apesar de tratamentos medicamentosos e/ou comportamentais instituídos, com exclusão de afecções periféricas do aparelho vestibular, torna-se imperativo a investigação de afecções que possam estar comprometendo o sistema nervoso central do paciente7. Nesta investigação, a ressonância nuclear magnética apresenta papel primordial, já que dentre os exames de imagem disponíveis é o que melhor retrata o córtex do sistema nervoso central, podendo revelar alterações tumorais, congênitas e degenerativo-desmielinizantes8. Podemos também lançar mão de exames neurofisiológicos como a pesquisa de Potenciais Evocados de Tronco Cerebral que podem ou não se mostrar alterados. Em nosso presente caso, o paciente apresentava uma vertigem com piora progressiva associada à hipoacusia neurossensorial e acúfenos discretos com evolução de 3 meses. Durante sua investigação apresentou tomografia computadorizada de crânio normal e avaliação neurológica, feita por especialista neurologista, também normal. Apesar dessa avaliação, permanecia com queixa de piora do quadro vertiginoso, sendo solicitado uma pesquisa de potenciais evocados de tronco cerebral que não mostrou alterações, exemplificando o exposto acima sobre a possibilidade de normalidade deste exame nos quadros de alteração do sistema nervoso central. Apenas a Ressonância Nuclear Magnética revelou a alteração responsável pelo quadro do paciente, mostrando áreas de desmielinização justa ventriculares no córtex do sistema nervoso central, em cortes realizados após a infusão de contraste paramagnético gadolinium, em janelas T2 e FLAIR9. Com isto, fica demonstrada a importância deste exame na investigação de doenças do sistema nervoso central que possam se manifestar como quadros de vertigem. Ressaltamos, dessa forma, a importância da avaliação otorrinolaringológica na condução de pacientes que se apresentam nos consultórios com queixas de vertigem, assoc
iadas ou não a acúfenos e hipoacusia, excluindo causas periféricas responsáveis por estes sintomas, através de anamnese e exame clínico bem conduzidos e solicitação de exames complementares que se fizerem necessários. Enfatizamos novamente a possibilidade de pacientes com alterações em sistema nervoso central apresentarem-se com queixa única de vertigem ou acúfenos, procurando muitas vezes o auxílio de um médico otorrinolaringologista em primeiro lugar. Desta forma, o otorrinolaringologista deve estar atento a estas possibilidades e procurar esgotar a pesquisa clínica e avaliação complementar do paciente, na tentativa de sua elucidação diagnóstica.
COMENTÁRIOS FINAISAs síndromes degenerativo-desmielinizantes como causa isolada de quadros vertiginosos são raras e seu diagnóstico denota um alto grau de suspeição e a solicitação de exames complementares adequados para o caso. A suspeita clínica surgirá a partir de uma história clínica e um exame físico bem conduzidos que excluirão, juntamente com exames complementares, as afecções periféricas do aparelho vestibular. Apesar da freqüência de aparecimento destas síndromes em consultórios de médicos otorrinolaringologistas ser extremamente baixa, este fato não torna menos importante o conhecimento de suas possibilidades de manifestação e seu correto diagnóstico, encaminhando desta forma o paciente para tratamento adequado com médico neurologista.
A ressonância nuclear magnética apresenta papel fundamental na investigação diagnóstica, mostrando as alterações provocadas pela desmielinização do sistema nervoso central e sua localização, devendo sempre ser lembrada como uma ferramenta de extrema utilidade diagnóstica, a qual podemos e devemos lançar mão quando da persistência das queixas de nosso paciente, e com o restante da avaliação realizada sem alterações.
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Médico Otorrinolaringologista do Hospital Otorrinos; Doutor em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da USP.
Médico Otorrinolaringologista do Hospital Otorrinos.
Médico Otorrinolaringologista; Estagiário em F.E.S.S. pela S.B.O.R.L. no Hospital Otorrinos.
Residente do 2° ano em Otorrinolaringologia no Hospital Otorrinos.
Residente do 3° ano em Otorrinolaringologia no Hospital Otorrinos.
Residente do 1° ano em Otorrinolaringologia no Hospital Otorrinos.
Trabalho realizado no Hospital Otorrinos - Doenças do ouvido, nariz, garganta - Cirurgia de Cabeça e Pescoço Feira de Santana - Bahia - Brasil.
Endereço para correspondência: Washington Luís de Cerqueira Almeida - Rua Barão de Cotegipe 1141 Centro Feira de Santana BA 44025-030.
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Artigo recebido em 22 de maio de 2003. Artigo aceito em 10 de julho de 2003.