INTRODUÇÃOAs adenotonsilectomias são cirurgias freqüentes e devem fazer parte do ensino básico de todo otorrinolaringologista. A principal indicação destas cirurgias é a hipertrofia das tonsilas palatinas e faríngeas, o que é bastante comum em nosso meio e, apesar de ser uma cirurgia tecnicamente simples, as complicações podem ser potencialmente graves. Dentre as complicações, a mais comum e emergencial é a hemorragia intra e pós-operatória. Outras complicações são menos freqüentes, como hematomas de lojas tonsilares, infecção da ferida operatória, edema importante de palato e/ou úvula, sinéquias peri-tubárias, luxação das articulações atlanto-occipital e têmporo-mandibular1,2.
Para minimizar o risco da complicação hemorrágica, devem ser solicitados exames pré-operatórios de rotina e atentar-se aos antecedentes pessoais dos pacientes em relação a sinais e sintomas sugestivos de coagulopatias3,4, bem como o uso de drogas que possam aumentar a chance de sangramento, como o ácido acetilsalicílico.
Nosso trabalho demonstra a casuística de sangramento pós-operatório decorrente de adenotonsilectomias nos serviços de otorrinolaringologia dos HGP e HED, com objetivo de tentar identificar as possíveis causas das hemorragias, visando diminuir sua incidência, e comparar com os dados da literatura.
MÉTODOO atendimento ambulatorial e cirúrgico do HGP e HED está sob a supervisão do departamento de ORL-CCP da UNIFESP-EPM.
A triagem pré-operatória para a realização de tonsilectomia palatina e/ou faríngea em adultos e crianças consiste da realização de hemograma completo (com contagem de plaquetas), atividade de protrombina (AP), tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA), tempo de sangramento (TS) e tempo de coagulação (TC).
Os pacientes somente são submetidos à cirurgia quando a triagem hematológica encontra-se dentro da normalidade.
As cirurgias são realizadas por médicos residentes/estagiários do 1º e 2 anos da disciplina de otorrinolaringologia da UNIFESP-EPM, sob a orientação de pós-graduandos da mesma disciplina.
Este estudo retrospectivo abrangeu 335 cirurgias (17 adenoidectomias, 9 tonsilectomias palatinas e 309 adenotonsilectomias) realizadas no HGP no período de setembro de 1999 a maio de 2001 e 62 cirurgias (7 tonsilectomias palatinas e 55 adenotonsilectomias) no HED no período de fevereiro a maio de 2001. A idade dos pacientes variou de 2 a 39 anos completos.
Todas as 397 cirurgias foram realizadas sob anestesia geral, intubação e fixação da cânula orotraqueal.
A adenoidectomia foi realizada através da técnica de curetagem com cureta de Beckmann, seguida de curagem com gaze.
A tonsilectomia palatina foi realizada através da técnica de dissecção e ressecção das tonsilas palatinas, sem o uso de eletrocautério.
Na hemostasia dos leitos das tonsilas faríngeas utilizou-se gaze ancorada em rinofaringe durante 10 minutos e para os leitos das tonsilas palatinas utilizou-se pontos com fio catgute 2-0 simples.
Classificamos o período de hemorragia pós-operatória da seguinte maneira: imediato (até 1 hora após a cirurgia), mediato (até 24 horas) e tardio (acima de 24 horas). Na análise estatística do número de casos de hemorragia, utilizamos como N total (número de cirurgias relacionadas aos casos de sangramento) a soma das adenotonsilectomias do HGP e HED, pois todos os casos de hemorragia ocorreram nesta modalidade de cirurgia.
Todos os pacientes foram acompanhados ambulatorialmente em intervalos semanais até o primeiro mês de pós-operatório.
RESULTADOSForam realizadas 397 cirurgias, 364 adenotonsilectomias (91,7%), 16 tonsilectomias palatinas (4,03%) e 17 adenoidectomias (4,28%) nos dois hospitais (HGP e HED) (Gráfico 1). Houve 5 casos de sangramento pós-operatório, sendo 3 no período imediato e 2 no período mediato. Não tivemos nenhum caso de hemorragia no período tardio. A incidência de hemorragia, portanto, foi de 1,37% (5 casos em 364).
A faixa etária dos pacientes com esta complicação variou de 3 a 8 anos de idade. Do total de pacientes operados (397), 81,4% (323) encontravam-se na faixa etária de 0-10 anos de idade (Gráfico 2).
Todos os casos de hemorragia foram submetidos inicialmente à adenotonsilectomia, sendo necessária revisão cirúrgica, observando-se em 4 casos controle do sangramento com a utilização de pontos e fechamento da loja da tonsila palatina com fio catgute 2-0 simples.
Em um caso, além do sangramento da tonsila palatina, houve também sangramento no leito da adenóide, os quais não cessaram apesar da realização de sutura nos leitos das tonsilas faríngeas e palatinas e da utilização de eletrocautério, observando-se somente a diminuição do sangramento após trinta minutos da administração de plasma fresco e concentrado de plaquetas, sugerindo a possibilidade de uma coagulopatia. O paciente foi submetido a um tamponamento do tipo ântero-posterior, ficando internado em U.T.I pediátrica por 72 horas, com reposição complementar de fatores de coagulação, através do uso de plasma fresco, e de plaquetas através de concentrado de plaquetas. No terceiro dia de pós-operatório foi removido o tampão ântero-posterior em centro-cirúrgico sem sangramento, e a criança foi encaminhada ao setor de hematologia para investigação, porém não sendo descoberta a etiologia do distúrbio da coagulação.
Gráfico 1. Distribuição das 397 cirurgias.
Gráfico 2. Distribuição dos pacientes conforme a idade.
DISCUSSÃOO mecanismo hemostático desenvolveu-se no ser humano para manter o sangue fluido no interior dos vasos sanguíneos e proteger contra perdas sangüíneas, que poderiam levar a complicações clínicas importantes1.
Dentro da otorrinolaringologia, o exame clínico deve ser fundamental, sendo a confirmação diagnóstica dos distúrbios de coagulação realizada através da utilização de testes laboratoriais. Inicialmente o distúrbio pode ser classificado com base na fisiopatologia e a distinção em subcategorias é possível através de provas laboratoriais mais específicas1,5.
A adenoidectomia e a tonsilectomia palatina são cirurgias em que podem ocorrer uma série de complicações pós-operatórias, sendo a hemorragia a mais séria delas2,6,7. As causas mais comuns de hemorragia são: vasos não identificados e, conseqüentemente, não ligados, ou realizados de maneira não efetiva1; lesões de estruturas como tórus tubário, mucosa da rinofaringe e porção caudal do septo nasal no caso de adenoidectomia, ou dos pilares, lojas das tonsilas palatinas e ramos da carótida externa (ou da mesma) no caso de tonsilectomia2. A hemorragia pode ocorrer ainda devido à remoção incompleta do tecido adenoideano, distúrbios de coagulação, rapidez excessiva do cirurgião e falta de revisão hemostática local. As causas podem ser, portanto, locais ou sistêmicas, sendo a primeira a mais comum.
Com relação as discrasias sanguíneas da coagulação, sabe-se não serem todas passíveis de serem diagnosticadas pelos exames laboratoriais realizadas no pré-operatório, sendo somente diagnosticadas através de exames mais específicos, como dosagem de fatores específicos de coagulação e provas de adesividade plaquetária. Muitos destes pacientes não relatam história prévia de sintomas relacionados a coagulopatias, sendo verificada sua ocorrência apenas durante ou após o procedimento cirúrgico3,5,8. Porém, após um quadro de hemorragia pós-operatória, é imperativa a investigação hematológica visando o diagnóstico etiológico do quadro e terapêutica adequada.
Em nosso serviço, é realizada uma triagem hematológica para todos os pacientes a serem submetidos a cirurgias, sendo solicitados os seguintes exames: hemograma com contagem de plaquetas, tempo e atividade de protrombina (TAP), tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA) tempo de coagulação (TC) e tempo de sangramento (TS), visando analisar a atividade plaquetária e as vias intrínseca e extrínseca da cascata da coagulação.
Em nossa casuística cirúrgica no período analisado, houve 5 casos de sangramento pós-operatório em 364 adenotonsilectomias, correspondendo a uma incidência de 1,37%.
Wei et al., em seu estudo sobre avaliação do risco de hemorragia pós-tonsilectomia na clínica Mayo, encontraram uma incidência de 1,93% de sangramento pós-operatório. A maior incidência de hemorragia pós-operatória foi na faixa etária de 21 a 30 anos e no período de 5 a 7 dias após o procedimento cirúrgico9. Em nossa casuística não obtivemos nenhum caso de hemorragia nesta faixa etária, e a hemorragia ocorreu dentro do período mediato.
Na Universidade de Paris, Gabriel et al. encontraram um índice de 3% e concluíram que a ausência de história pregressa de sangramento e testes laboratoriais normais não puderam predizer o sangramento no pós-operatório8. Acreditamos, assim como os autores acima, que os testes pré-operatórios, estando normais, não podem identificar os pacientes de maior risco para hemorragia.
Collison e Mettler em Yankton-EUA, obtiveram 3,7% de sangramento pós-operatório (no período por eles chamado de secundário, ou seja, após 24 horas da cirurgia) sendo a maioria após o oitavo dia pós-operatório e 0,23% no período primário (menos de 24 horas de pós-operatório) em pacientes com exames pré-operatórios dentro da normalidade10. Os autores acima acreditam que a técnica de hemostasia com o uso de eletrocautério é efetiva para prevenir a hemorragia primária, porém ocasiona uma área de necrose mais extensa e profunda, podendo expor vasos de maior calibre que seriam responsáveis por hemorragias secundárias, decorrentes de descolamento de crostas hemáticas10,11.
Em nosso estudo, todos os casos que apresentaram hemorragia ocorreram no período até 24 horas de pós-operatório. Não utilizamos de rotina o eletrocautério para hemostasia dos leitos cirúrgicos, mas sim a realização de sutura de vasos sangrantes. Acreditamos que este seja o principal fator responsável pela hemorragia em relação ao tempo de pós-operatório quando comparados com a maioria dos autores.
Observamos que os pacientes que apresentaram hemorragia no pós-operatório também tiveram maior volume de sangramento no intra-operatório, o que também foi observado por Myssiorek e Alvi12. Isto sugere que a principal causa de hemorragia no período que classificamos como mediato seja a dificuldade técnica encontrada em alguns pacientes na realização da cirurgia e da hemostasia, possivelmente pela presença de aderências cicatriciais do leito cirúrgico decorrentes de processos inflamatórios pregressos e/ou hipervascularização local.
CONCLUSÃOO presente estudo relembra aos otorrinolaringologistas o fato de que pacientes com exames de hemostasia sem alteração não se encontram excluídos de apresentarem sangramento pós-operatório, visto não serem todas as doenças da coagulação sanguínea detectáveis nos exames hematológicos usualmente utilizados.
Concluímos, de acordo com os nossos achados, que o fator de risco mais importante para a hemorragia pós-operatória foi a dificuldade técnica da cirurgia e alteração da hemostasia encontradas em alguns pacientes.
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12. Myssiorek D, Alvi A. Post-tonsillectomy hemorrhage: an assessment of risk factors. Int J Pediatr Otorhinolaryngol 1996: 37(1): 35-43.
Pós-graduando nível mestrado em Otorrinolaringologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Médico Otorrinolaringologista pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Doutor em Otorrinolaringologia pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Pós-graduando nível doutorado em Otorrinolaringologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Professor Adjunto da Disciplina de Otorrinolaringologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Professor Associado Livre Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia da UNIFESP-EPM.
Trabalho realizado na Disciplina de Otorrinolaringologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Endereço para correspondência: Dr. Gabriel Cesar Dib - Rua Borges Lagoa 980 apto 12 Vila Clementino 04038-002 São Paulo SP
Tel (0xx11) 9937-1212 - E-mail: gcdib@hotmail.com
Artigo recebido em 26 de maio de 2004. Artigo aceito em 14 de outubro de 2004.