INTRODUÇÃOManter o corpo hidratado é um dos fatores que contribuem para a saúde orgânica e funcional da laringe, principalmente nos profissionais da voz. A desidratação tem contribuído para o desenvolvimento de disfonias e piora na performance vocal; os procedimentos de hidratação são considerados importantes na prevenção e tratamento de disfonias1.
A hidratação para os profissionais da voz é um dos hábitos de higiene vocal importantes na manutenção da qualidade de voz2.
A definição de "hidratar" segundo o Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa é: "1. Converter em hidrato; 2. Tratar por água; 3. Combinar com água; 4. Tratar (a pele) com substância que lhe devolve a umidade natural ou evite que resseque." O interesse em conhecer como se dá esse processo de hidratação especificamente na laringe e quais são seus efeitos tem envolvido muitos pesquisadores.
Em estudo de caso verificou-se a redução do grau de disfonia e da instabilidade fonatória, além do relato de redução de sensações de incômodo pelos sujeitos, imediatamente após procedimentos de hidratação. Mas tais dados são subjetivos e de difícil comprovação como resultantes do processo de hidratação3.
Alguns dos efeitos da desidratação laríngea avaliados na mucosa das pregas vocais através da laringoscopia com fibra óptica são: acúmulo de secreção, aumento da viscosidade, brilho excessivo, podendo chegar a apresentar, em casos mais complicados, uma linha atrófica (simulando sulco) e redução da mobilidade da onda mucosa4,5.
Quanto aos procedimentos de hidratação, em pesquisas são utilizados dois tipos: a interna (ingestão de água ou eletrólitos) e a externa (inalação de água ou soro fisiológico)1,6,7.
O uso de soluções com eletrólitos (soro fisiológico e líquidos de hidratação para atletas) é citado como meio eficiente para hidratação laríngea tanto interna como externa6, observado na avaliação visual da redução de sinais de desidratação. Tal efeito sobre o organismo pode ser explicado fisiologicamente, pois a água só consegue adentrar no meio interno de forma ativa, utilizando a bomba de sódio-potássio, acompanhando o fluxo de eletrólitos. Geralmente, quando se bebe apenas água, pouca quantidade é retida pelo corpo, induzindo a diurese aquosa que pode debilitar ainda mais as reservas de sódio, fato este muito conhecido pelos médicos, que ao cuidarem de pacientes com desidratação o fazem com solução de eletrólitos e glicose, sendo esta a forma efetiva de se hidratar um indivíduo.
O estado de hidratação de um indivíduo é avaliado pela inspeção das mucosas oral, conjuntival e pele. Na laringe pode ser, então, avaliada visualmente através da laringoestroboscopia, porém, sem mostrar seu grau de hidratação.
Os recursos atuais utilizados em pesquisas sobre o grau da hidratação laríngea baseiam-se em critérios clínicos que podem induzir subjetividade, não havendo relatos da utilização de métodos que possam aferi-los objetivamente. Há dificuldade em gerar critérios para registrar, comprovar e medir o estado de hidratação nas pregas vocais e no indivíduo.
A avaliação da osmolaridade tecidual e sangüínea é um método objetivo para avaliação das condições de hidratação e poderia ser utilizado para tal comprovação não fosse um exame invasivo e de difícil aplicação, pois existem vários fatores que interferem com esta aferição.
Uma mucosa hidratada apresenta maior flexibilidade, aumentando o contato durante a fase fechada da emissão vocal e diminuindo o tempo de abertura glótica na fase aberta1. Mas apenas com exames de observação visual, como a estroboscopia, fica difícil estabelecer critérios objetivos de mensuração da hidratação.
A videoquimografia é um método de avaliação laríngea8,9 feita em tempo real, no qual movimentos isolados na linha horizontal das imagens da onda mucosa são somados, representando a vibração das pregas vocais num determinado ponto (simulando um corte), porém pouco utilizado devido ao custo e à dificuldade de realização10.
Este método avalia de forma objetiva, e com possibilidade de reprodução, todos os tipos de irregularidade de vibração na onda mucosa independente da qualidade vocal e o seu grau de alteração11.
Diante da utilização da videoquimografia como um procedimento de avaliação objetiva da onda mucosa, e conhecendo que esta se modifica após hidratação, acreditamos ser um procedimento útil para avaliar as condições vibratórias no pré e pós-hidratação.
OBJETIVO
O objetivo do presente estudo foi avaliar as modificações da vibração na onda mucosa das pregas vocais, após hidratação interna e externa, com o uso da videoquimografia em profissionais da voz, após período de trabalho sem hidratação.
MÉTODO
O presente estudo contou com 6 indivíduos do sexo masculino e idade média de 32 anos (entre 28 e 36 anos) trabalhando há, no mínimo, um ano em atividade de uso profissional da voz por um período de 6 horas em ambiente com refrigeração artificial, temperatura e umidade controladas.
A escolha por uma população masculina deveu-se ao fato da eliminarmos outros fatores hormonais que interferissem nas condições laríngeas.
Todos os indivíduos estavam cientes dos procedimentos a serem realizados para a avaliação laríngea pré e pós-hidratação.
Na Tabela 4 encontra-se descrita a hipótese diagnóstica (otorrinolaringológica) referente às condições estruturais da mucosa de cobertura das pregas vocais.
Previamente à avaliação, os indivíduos sadios (sem uso de qualquer tipo de medicação sistêmica) receberam orientações a serem seguidas no dia do exame como permanecer no ambiente de trabalho, não consumir café, bebidas alcoólicas, produtos dietéticos, nem ingerir líquidos 4 horas antes da avaliação do otorrinolaringologista.
No dia da avaliação a temperatura relativa do ar no ambiente de trabalho dos indivíduos variou entre 19 e 21 graus e a umidade relativa do ar entre 40 a 50%.
Os exames foram realizados logo em seguida ao turno de trabalho dos indivíduos (respeitando-se o tempo de locomoção entre o trabalho e o local de avaliação que foi de aproximadamente 60 minutos), que seguiam para o consultório médico.
Os indivíduos foram submetidos à avaliação laringológica por um otorrinolaringologista, utilizando equipamento computadorizado com imagem digital da marca Key, Laringoscópio Machida 70°, 7mm acoplado a câmera de vídeo Panasonic KS 5152 e fonte Key Eletrônics modelo 4914, com luz halógena e estroboscópica.
Os indivíduos, sem hidratação, foram avaliados por um médico otorrinolaringologista, primeiramente, utilizando o equipamento acima referido sendo as imagens armazenadas em DVDs. A seguir foi utilizado videoquimografia, com Laringoscópio Optomic 90º acoplado a fonte de luz halógena white light (Richards), sem uso de anestesia tópica, devido à sua ação na qualidade no muco e no movimento ciliar da traquéia.
Durante a realização do exame estroboscópico da laringe, foram registradas a intensidade (decibelímetro RadioShack) e a freqüência da emissão vocal, de tal forma que na avaliação pré e pós hidratação os parâmetros foram mantidos para o registro das imagens.
Para o exame de videoquimografia, os indivíduos emitiam a vogal /i/ sustentada em emissão habitual.
Logo em seguida da primeira avaliação laríngea, laringoscopia com estroboscopia e videoquimografia, os indivíduos ingeriram de 2 copos de solução aquosa com eletrólitos (total de 300 ml), em temperatura ambiente e em seguida foram submetidos à hidratação laríngea externa com inalação de solução salina a 0,9% durante 10 minutos.
Após uma hora da primeira avaliação laríngea os exames de laringoscopia com estroboscopia e videoquimografia foram repetidos.
As imagens obtidas e registradas na videoquimografia foram avaliadas quadro a quadro, selecionadas, congeladas e impressas. Cada amostra foi avaliada isoladamente, considerando a freqüência (Hz) e intensidade (dB), não se levando em consideração a qualidade vocal dos sujeitos.
Um otorrinolaringologista e duas fonoaudiólogas avaliaram as imagens congeladas. Foi utilizado o quociente: tempo da fase aberta/ tempo na fase fechada, comparando os resultados pré e pós hidratação no mesmo indivíduo. Para extração das medidas foi utilizada uma régua milimetrada.
Tabela 1. Comparação do quociente tempo de fase aberta / tempo de fase fechada
no pré e pós-hidratação.
A variação da intensidade na emissão da vogal /i/ prolongada no pós-hidratação variou entre 4 a 7 Hz.
Tabela 2. Comparação das medidas de intensidade pré e pós hidratação.
Tabela 3. Comparação da freqüência fundamental freqüência fundamental pré e pós-hidratação.
Tabela 4. Diagnóstico Otorrinolaringológico (avaliação laríngea realizado por laringoscopia e estroboscopia)
RESULTADOSDa análise comparativa entre pré e pós-hidratação verificou-se que cinco indivíduos (80%) apresentaram tempo da fase aberta/ tempo na fase fechada reduzido e um deles (20%), aumentada.
A variação da freqüência fundamental na emissão da vogal /i/ prolongada no pós-hidratação variou entre 2 a 13 Hz. Analisando-se essas variações, nota-se que em 60% dos indivíduos estudados houve elevação da freqüência e 40% redução da mesma.
DISCUSSÃOA manutenção de uma hidratação adequada é muito importante no desempenho vocal, principalmente nos profissionais que fazem uso deste instrumento para realizar seu trabalho.
Estudos relatam que com hidratação laríngea realizada em laringes caninas excisadas, o limiar de pressão subglótica apresenta uma redução importante, podendo levar a uma emissão vocal mais confortável e menos lesiva para a mucosa1,12,13.
Em estudo de caso verificou-se a redução do grau de disfonia e da instabilidade fonatória, além da redução das sensações de incômodo relatadas pelos indivíduos imediatamente após procedimentos de hidratação6.
Fujita e Ferreira (1999) observaram a redução de sinais de desidratação após a hidratação interna e externa, através da análise laringoscópica e estroboscópica. Os autores destacam, com análise subjetiva, que o aumento da viscosidade e brilho nas pregas vocais sugerem sinais de desidratação e que a hidratação com solução salina associada a dois copos de solução aquosa com eletrólitos favorece uma hidratação das pregas vocais.
Diferentes métodos para avaliação da mucosa laríngea podem ser utilizados à laringoscopia, como a videoquimografia, estroboscopia, eletroglotografia, câmeras de alta velocidade e RX estroboscópio.
Utilizando-se a estroboscopia e a laringoscopia tradicionais pode-se observar que após hidratação rápida ocorrem os seguintes sinais: a redução da aparência na viscosidade do muco e a alteração no brilho das pregas vocais, aumento na amplitude de vibração da onda mucosa6.
Todos sinais acima descritos são muito subjetivos e podem levar a discordâncias no diagnóstico e nas mudanças, não representando uma forma objetiva de avaliação do estado de hidratação na mucosa da prega vocal.
Escolhemos a videoquimografia por ser um tipo de filmagem ultra-rápida para a pesquisa e permite, em tempo real, a avaliação objetiva das fases de fechada e aberta de um único ciclo vibratório e, além disso, pode-se avaliar o padrão de vibração das pregas vocais8,11,14 aspecto que pode sofrer alteração com procedimentos de hidratação.
No registro das ondas da videoquimografia podemos observar e medir as fases aberta e fechada de um ciclo, podendo expressar estas medidas numa forma de quociente para que eventuais erros de aferição sejam corrigidos14. Numa mucosa hidratada o ciclo apresenta maior tempo de fase fechada, pois a amplitude de excursão está aumentada devido à maior flexibilidade15.
Fica muito difícil avaliar o estado de hidratação de um indivíduo, se não se conhece seu hábito, seu local de trabalho, a quantidade de ingesta de líquidos e se faz uso de algum medicamento.
A amostra estudada apresenta necessidade de atendimento clínico, pois são profissionais da voz que atuam em situação de elevada demanda vocal durante seis horas, exposto a ambiente ruidoso, umidade de ar e temperatura controlados.
Grande parte da amostra apresentou alterações na mucosa de cobertura na prega vocal (Tabela 4), pois são profissionais da voz e com qualquer alteração na emissão, precisam ser avaliados e tratados. E apesar das alterações estruturais mínimas não mostrarem relação com o fator ambiental, tornam-se mais freqüentes quando se avalia profissionais da voz, pois os que não apresentam alterações não procuram o médico. Talvez seja por isso que nossa amostra apresenta a maior parte dos indivíduos com lesões.
Sabemos que algumas destas lesões podem apresentar alterações no padrão de vibração de onda mucosa. Destacamos que a análise foi realizada intra-indivíduo, isto é, a mesma laringe antes e após a hidratação.
Todos os indivíduos da pesquisa apresentaram sinais de desidratação laríngea (aumento da viscosidade do muco, excesso de brilho mucoso, acúmulo de secreção e em alguns indivíduos linha atrófica). Ao utilizarmos as imagens pré e pós hidratação de um mesmo indivíduo, conseguimos avaliar o fator estudado. Porém destacamos que o ambiente e demanda vocal proporcionam uma condição desfavorável à hidratação. Após a jornada de trabalho todos os indivíduos tiveram uma hora de descanso muscular, pois locomoviam-se até o consultório, sendo que neste período não foi utilizada de forma profissional a voz. Este tempo pode ter retirado da avaliação hidratação o efeito contração muscular.
Semelhante ao descrito por Verdolini-Marston et al. (1994), a hidratação laríngea favoreceu uma diminuição da viscosidade das pregas vocais quando avaliados apenas pela estroboscopia, sendo um sinal extremamente subjetivo. Com a videoquimografia pudemos registrar mudança na amplitude de excursão mucosa, e observar que além dos relatos individuais de uma emissão vocal mais confortável, encontramos um aumento na fase fechada do ciclo vibratório.
Continuaremos o estudo no intuito de tentar utilizar a videoquimografia como método objetivo de avaliar o estado de vibração da mucosa das pregas vocais após hidratação, utilizando uma amostra maior sem o fonotrauma, no intuito de estudar apenas o fator hidratação da mucosa na prega vocal.
CONCLUSÃO1. A videoquimografia demonstrou ser um método de avaliação objetiva para comprovar modificações na vibração da onda mucosa da prega vocal após hidratação interna e externa.
2. Observou-se redução no quociente tempo de fase aberta/ tempo de fase fechada no pós-hidratação.
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Chefe Clínica ORL-Pediátrica UNIFESP-EPM.
Fonoaudióloga; Especialista em Voz e Motricidade Oral pelo CFFA.
Fonoaudióloga; Especializanda em Voz CEV.
Instituição: UNIFESP - Escola Paulista de Medicina.
Endereço para correspondência: Caroline Sarkovas - Rua Tibiriçá, 44 - Santana de Parnaíba SP 06534-130.
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Artigo recebido em 14 junho de 2004. Artigo aceito em 25 de outubro de 2004.