INTRODUÇÃOAs primeiras descrições de amiloidose datam do início de 1840. Virchow foi o primeiro a definir a substância "amilóide", acreditando haver semelhança com amido ou celuloseAPUD 1.
Amiloidose é caracterizada por deposição extracelular anormal de amilóide em diferentes tecidos e órgãos, geralmente associado com disfunção do tecido ou órgão envolvido2. A causa não é ainda conhecida2.
Nos estudos de Kyle e BayrdAPUD 1, a idade média de acometimento foi de 61 anos, com predominância masculina (63% homens e 56% mulheres), o que foi também visto por Kerner et al.1.
Amiloidose pode ser dividida em formas sistêmica e localizada. Apesar de não existir até então uma classificação satisfatória para a forma sistêmica, foi simplificadamente dividida como segue2: (1) primária; (2) amiloidose associada ao mieloma múltiplo (MM); (3) secundária; (4) amiloidose heredofamiliar.
A amiloidose primária é uma forma sistêmica sem fator causal identificável. Amiloidose secundária refere-se a amiloidose sistêmica concomitante com doença crônica como tuberculose, artrite reumatóide, doença de Crohn, entre outras.
Outra subclasse de amiloidose sistêmica ocorre em pacientes com MM, sendo que há incidência alta de amiloidose (10 a 20%) entre os pacientes com MM1.
Na forma localizada, que é extremamente rara3, não há nenhuma evidência de amiloidose sistêmica nem nenhuma doença crônica de base. São locais já descritos de possível depósito amilóide: bexiga, língua, pele, anel de Waldeyer, palato duro, glândulas salivares, nervos periféricos, laringe, pulmão, entre outros4 APUD 1. A língua (63%) e laringe (19%) são os locais mais freqüentes de amiloidose na cabeça e pescoço, segundo Kerner et al.1.
Não há tratamento satisfatório para amiloidose sistêmica2 e, na literatura, a redução da língua é sugerida por alguns autores quando a macroglossia por amiloidose está presente5.
RELATO DE CASOPaciente do sexo masculino, 71 anos, natural de São Paulo, com história de dificuldade de deglutição inicialmente com alimentos sólidos, porém rapidamente também com pastosos e líquidos, associado à perda de 12 kg neste período. Seis meses depois iniciou quadro de progressivo aumento de volume de região submentoniana de consistência amolecida associado a macroglossia e dificuldade de protrusão da língua. Apresentava como doença de base somente hipertensão arterial sistêmica, controlada com diurético via oral diariamente. Seu irmão faleceu em conseqüência de câncer de língua. Seu exame físico mostrava massa submentoniana se estendendo para regiões submandibulares bilateralmente, de consistência amolecida, móvel à deglutição, associado a aumento difuso importante de língua (macroglossia), sem qualquer alteração de coloração ou lesão nodular na mesma (Figuras 1 e 2). As hipóteses diagnósticas foram tumor maligno de língua, doença de acúmulo como amiloidose, doença vascular localizada ou desordem sistêmica como hipotireoidismo, deficiência de vitamina B12 ou de ácido fólico). O paciente foi tratado com corticóides e pentoxifilina, sem nenhuma diminuição do volume da língua ou da massa submentoniana/submandibular. Os exames laboratoriais revelaram anemia (hemoglobina de 10,3 g/dL) e função renal alterada (Uréia: 103 mg/100ml, Creatinina:1,7 mg/100ml). Sorologias para hepatite B e C foram negativas. A eletroforese de proteínas mostrou um aumento da gama globulina (Proteínas totais: 5,8 g%, albumina: 2,8 g%; 1 globulina: 0,3 g%, 2 globulina: 0,6 g%, globulina: 0,6 g% e gama globulina: 1,5 g%). Sua proteinúria de 24 horas era de 0,48 g/l - 816 mg/24h com urocultura e ultrassonografia renal sem alterações. Seu eletrocardiograma mostrou bloqueio divisional ântero-superior esquerdo, zona inativa septal, sobrecarga ventricular esquerda e alteração da repolarização ventricular anterior. Sua tomografia computadorizada de região cervical mostrou aumento importante e simétrico da língua principalmente em sua região posterior, sem lesões focais, levando a deslocamento inferior de todas as estruturas inferiores à língua (Figura 3). Estes achados foram confirmados por estudo de ressonância magnética de região cervical (Figura 4). Nenhuma alteração vascular foi identificada. Os valores de vitamina B12 (192,0 pg/mL), ácido fólico (2,7 ng/mL) e TSH no sangue foram normais. Foi realizada biópsia de língua na qual substâncias róseas foram encontradas, distribuídas entre fragmentos musculares, sugestivo de sustância amilóide (Figura 5). Apresentavam birrefringência em microscópio de luz polarizada quando corado com vermelho-Congo (Figura 6). Foi realizado aspirado de gordura abdominal, o qual mostrou presença de substância amilóide, fechando, deste modo, o diagnóstico de amiloidose sistêmica. Por último, o paciente realizou mielograma no qual não foi encontrado indícios de MM.
DISCUSSÃOManifestações orais da amiloidose foram descritas em 39% dos casos desta doença6. A deposição de amilóide na língua de pacientes com MM ocorre com freqüência e pode resultar em macroglossia (aumento do volume da língua)6,7, a qual é o achado oral mais freqüente nestes casos. O primeiro sinal de amiloidose primária pode ser aumento de volume da língua8. A coloração da língua pode ser pálida e ocasionalmente avermelhada9.
Figura 1. Macroglossia pode ser observada associada à massa submentoniana/submandibular, sem alteração da coloração da língua ou lesões nodulares.
Figura 2. Com a boca aberta é possível perceber a intensa macroglossia que o paciente apresentava.
Figura 3. Corte axial de tomografia computadorizada cervical com janela para partes moles mostrando macroglossia, principalmente em sua região posterior (seta), sem lesões nodulares.
Figura 4. Corte sagital de ressonância nuclear magnética mostrando macroglossia que levava a deslocamento inferior das estruturas localizadas abaixo da língua.
Figura 5. Biópsia de língua corada por hematoxilina-eosina: substâncias róseas distribuídas entre fragmentos musculares sugerindo substância amilóide.
Figura 6. Biópsia de língua corada com vermelho Congo: birrefringência no microscópico com luz polarizada.
O achado principal de exame físico no paciente deste relato era a macroglossia. A massa submandibular encontrada, na realidade, era resultado da macroglossia exuberante, levando provavelmente a dificuldades de deglutição.
O diagnóstico de amiloidose não deve ser o primeiro a ser aventado quando nos deparamos com um caso de macroglossia. Outras doenças, como tumor maligno de língua, doença vascular ou etiologia sistêmica como hipotireoidismo ou deficiência de vitamina B12 ou de ácido fólico devem sempre ser investigados. Na realidade, algumas dessas doenças ocorrem com maior freqüência do que a amiloidose, mas, por outro lado, um paciente do sexo masculino com 71 anos coincide com o padrão epidemiológico da amiloidose. A perda de peso e a presença da massa submandibular poderia ser decorrente à doença maligna, porém isto foi descartado através dos achados na tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética. Por fim, a biópsia de língua fechou o diagnóstico de amiloidose e o aspirado de gordura abdominal mostrou que se tratava de amiloidose sistêmica. Etiologia sistêmica como deficiência de ácido fólico, vitamina B12 ou hipotireoidismo foram descartados a partir dos resultados normais dos respectivos exames laboratoriais.
Em 1935, Kramer e SomAPUD 3, em uma revisão de literatura, identificaram 95 casos de depósitos de amilóide no trato aerodigestivo superior e respiratório inferior, sendo a laringe acometida em 36 pacientes, a língua em 16 pacientes, laringe e língua em 8 pacientes, traquéia em 13 pacientes, árvore traqueobrônquica em 4 pacientes, nariz em 6 pacientes, e poucos casos na cavidade oral, faringe e pulmão.
Kerner et al.1 observaram que a língua e a laringe são os locais mais freqüentes de amiloidose na cabeça e pescoço, sendo que encontraram 59% dos pacientes com amiloidose em língua com MM associado.
A biópsia de língua leva ao diagnóstico de amiloidose, porém não define se seu subtipo é a forma sistêmica ou localizada, o que é importante devido à diferença de sobrevida entre uma forma e outra1. A forma localizada, que é extremamente rara3, tem prognóstico melhor do que a forma sistêmica.
O diagnóstico entre forma sistêmica e localizada de amiloidose pode ser conseguido através de aspirado de gordura abdominal ou biópsia retal10.
Neste paciente estudado, foi preferido realizar o aspirado de gordura abdominal ao invés de biópsia retal porque é um procedimento mais simples, consistindo na remoção de tecido adiposo da parede anterior do abdome através de aspiração com agulha fina10. Estes dois procedimentos são positivos em 75% a 90% dos pacientes com amiloidose sistêmica1. Como foi demonstrado, substância amilóide no aspirado de gordura abdominal pode-se concluir que se tratava de amiloidose sistêmica.
Os depósitos de amilóide têm algumas características: são eosinofílicos na coloração hematoxilina-eosina e apresentam birrefringência na microscópico de luz polarizada quando corado com vermelho Congo. Este é o critério mais simples e mais aceito para o diagnóstico de amiloidose11. Com microscopia eletrônica, essas proteínas têm aparência fibrosa12.
Após diagnóstico de amiloidose sistêmica, é importante saber quais suas características: se é primária ou secundária e também se está associado ao mieloma múltiplo. Existe uma diferença considerável na sobrevida dos pacientes com amiloidose sistêmica e localizada1, e também com ou sem MM. Na Mayo Clinic, foi observado que a média de sobrevida era de 15 meses em pacientes com amiloidose sem MM e 5 meses quando o MM estava associadoAPUD 1.
Amiloidose secundária foi excluída já que o paciente não apresentava nenhuma doença crônica como tuberculose, artrite reumatóide ou doença de Crohn.
Mais da metade dos casos de amiloidose sistêmica estão associados ao MM, mas somente 6 a 15% dos casos de MM têm amiloidose associada13.
Kyle e BayrdAPUD 1 relataram incidência de 26% de macroglossia por amiloidose em pacientes com MM.
Reinish et al.9 relataram 54 casos de amiloidose oral em pacientes com MM. A língua estava afetada em todos os pacientes com amiloidose oral. Na maioria dos casos, a dor era o principal sintoma seguido de disfagia e dificuldade de fala.
Xerostomia como resultado de depósito amilóide na língua e glândulas salivares pode ser causa de disfagia7.
Apesar de a eletroforese de proteínas ter mostrado aumento de gama globulina o que poderia ser um indício de MM, o mielograma realizado estava normal, afastando a possibilidade desta doença.
Doença renal é a principal causa de óbito em pacientes com amiloidoseAPUD 1 e o paciente deste relato já demonstrava alguns sinais de envolvimento cardíaco e renal.
Na literatura, redução cirúrgica da língua é sugerido quando macroglossia está presente5. Kerner et al.1 trataram alguns de seus pacientes com macroglossia decorrente de amiloidose com glossectomia, que cicatrizaram de forma adequada, levando à melhora da qualidade de vida, pois foi restabelecida a habilidade de fala e alimentação. Dendy et al.14 apresentaram um caso de uma senhora de 62 anos com macroglossia decorrente de amiloidose primária que se submeteu a ressecção de dois terços anteriores da língua, com resultado bastante satisfatório. De acordo com Reinish et al.9, pelo fato de que as lesões em língua freqüentemente recorrem e, por isso, geralmente são necessárias sucessivas ressecções, a intervenção cirúrgica deveria ser considerada como um modo de tratamento somente em casos extremos de macroglossia, com possibilidade de obstrução da via aérea.
Foi decidido não realizar nenhum procedimento cirúrgico no paciente relatado já que não existe consenso na literatura a respeito da certeza de melhora de sua qualidade de vida e também pela alta morbidade da cirurgia neste paciente. O paciente está sendo visto pela equipe de Clínica Médica e uma conduta expectante está sendo oferecida.
CONCLUSÃOApesar de a amiloidose não ser a principal hipótese diagnóstica que deve ser aventada quando nos deparamos com um paciente com macroglossia, esta doença não pode ser esquecida, uma vez que o suporte clínico é essencial para o controle das doenças que podem estar associadas, como falência renal, cardíaca e o MM.
Além disso, mais estudos são necessários a respeito dos possíveis benefícios e conseqüências de um procedimento cirúrgico para correção da macroglossia.
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1 Residente do 3º ano do Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa de São Paulo.
2 Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa de São Paulo.
3 Chefe de Clínica Adjunto do Serviço de Anatomia Patológica da Santa Casa de São Paulo.
Trabalho realizado nos Departamentos de Otorrinolaringologia e Anatomia Patológica da Santa Casa de São Paulo.
Endereço para Correspondência: Sandra Doria Xavier - Rua Nazaré Paulista, 163 ap.94 05448-000.
Trabalho apresentado no 36º Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia realizado no período de 19 a 23 de novembro de 2002 em Florianópolis (pôster).
Artigo recebido em 07 de agosto de 2003. Artigo aceito em 20 de novembro de 2003.