INTRODUÇÃOA fenda mediana congênita do pescoço é anomalia rara da parte ventral do pescoço e em torno de 100 casos foram relatados na literatura1-13, sendo o primeiro caso descrito por Bailey em 19241. Este defeito é relatado em associação com fenda mediana do lábio inferior, fenda da mandíbula e da língua, e hipoplasia de outras estruturas cervicais medianas. Acredita-se que seja uma malformação de arcos branquiais2. Por se tratar de patologia rara e de difícil diagnóstico, relatamos dois casos atendidos em nosso serviço e fizemos revisão bibliográfica.
REVISÃO DE LITERATURAA fenda cervical mediana congênita é rara anomalia da parte ventral do pescoço que pode ter extensão variável em direção vertical da região mentoniana para a fúrcula supraesternal3. Cerca de 100 casos foram relatados na literatura, aproximadamente 50 deles publicados em literatura inglesa4. A fenda está presente desde o nascimento, mas pode passar desapercebido no início e sua presença tornar-se aparente com o tempo4,5. Pode variar em extensão e largura e segundo um estudo de 12 casos o comprimento variou entre 4 e 12 cm e a largura entre 6 e 14 mm6.
Existe controvérsia na literatura se a anomalia representa uma fenda verdadeira; Fincher e Fincher (1989) a descrevem como uma fenda não verdadeira por não apresentar separação completa entre os retalhos de pele da borda e por estender-se parcialmente através das camadas da pele7. Embora a anomalia não seja identificada na maioria dos casos, é freqüentemente visualizada durante o choro no nascimento, depois enrijece e retrai tornando-se uma cicatriz caso não seja corrigida cirurgicamente2. Esta lesão ocorre mais em indivíduos do sexo feminino3. Eastlack et al. (2000), em revisão extensa, encontraram aproximadamente 100 casos sendo apenas 14 casos no sexo masculino4. Çelinkursun et al. (2001) relataram mais um caso em uma criança de 12 anos e sexo masculino8. O aspecto no nascimento é de defeito mediano na pele do pescoço que se apresenta como uma prega recoberta por uma pele atrófica de aproximadamente 5mm de largura que pode ocorrer em qualquer nível entre o mento e a região da fúrcula esternal. Freqüentemente observa-se uma pequena projeção no bordo superior da fenda e um seio associado à extremidade caudal que pode drenar material mucóide e sempre está presente um espessamento subcutâneo associado ao defeito como uma corda subcutânea que pode causar uma prega no pescoço3. Em casos severos esta corda fibrosa pode causar uma contratura cervical anterior que pode acentuar-se no crescimento da criança1,3.
Em adição aos achados locais a fenda pode estar associada a outras anomalias da cabeça e do pescoço, incluindo fenda do lábio inferior, mandíbula, mento e língua4,9, retardo do desenvolvimento da mandíbula4 e hipoplasia ou ausência de estruturas de suporte do pescoço como o osso hióide4,9,10. Existem relatos da associação com cisto broncogênico1,4,7,11 e anomalias do ducto tireoglosso4. Defeitos associados em outras partes do corpo incluindo fenda esternal, prega abdominal mediana ou anomalia da rafe abdominal, hemangioma na linha média4, bem como lesões cardíacas congênitas tais como anomalias intracardíacas ou ectopias4.
Os achados histológicos da lesão não são específicos3. O epitélio que recobre a anomalia é estratificado paraceratótico sendo o achado mais consistente a ausência de anexos epiteliais na derme3,4. O apêndice cutâneo da lesão tem epitélio normal e pode conter cartilagem ou tecido muscular esquelético4. O seio ou a fistula associada à lesão usualmente é revestido por epitélio cilíndrico ou colunar pseudoestratificado e com freqüência demonstra glândulas seromucinosas associadas7,10. A corda fibrosa que está sob a fenda tem estrutura microscópica distinta e pode incluir feixes de músculo esquelético que lembram histologicamente o torcicolo congênito4.
O diagnóstico deste defeito é sempre clínico. Os achado do anatomopatológico, embora não sejam específicos, podem se associados à clínica ajudar na confirmação do diagnóstico4. O tratamento da lesão consiste na excisão vertical da lesão e reparação do defeito resultante da ressecção. A maioria dos autores recomenda evitar a reparação simples, preferindo o fechamento com utilização de zetaplastias múltiplas1-14. A zetaplastia é realizada ao invés do fechamento primário para diminuir o risco de ocorrência de contratura cicatricial secundária à cirurgia, a qual pode diminuir a mobilidade do pescoço e causar mordida aberta anterior com microgenia6. Breton e Freidel (1989) utilizaram uma ressecção ampla da anomalia e a reparação do defeito com a utilização de retalho miocutâneo de músculo peitoral maior associando uma genioplastia por osteotomia sinfisária de propulsão12. A cirurgia deve ser realizada, se possível, nos primeiros meses de vida para evitar o aparecimento de exostoses na mandíbula secundária a tração provocada pela corda fibrosa4. A correção precoce da deformidade também pode prevenir contraturas e deformidades cosméticas que podem resultar com correções tardias4.
Vários mecanismos patogênicos têm sido propostos para explicar a fenda cervical mediana: adesão amniótica e anomalias vasculares causando isquemia tecidual localizada, necrose e cicatriz; persistência de remanescente de ducto ou cisto tireoglosso; compressão na área cervical pelo teto do pericárdio nos estágios iniciais do desenvolvimento embrionário; ausência de tecido mesenquimal na linha média cervical e persistência de sulco do arco mandibular combinada com diferenciação mesenquimal deficiente6.
Qualquer discussão da etiologia desta anomalia e de síndromes branquiogênicas medianas leva a uma revisão do desenvolvimento dos pares de arcos branquiais, especialmente do primeiro (mandibular) e segundo (hióide) arcos. Os estudo realizados em embrião de ave, demonstram que virtualmente todo tecido da parte ventral do pescoço é derivado da crista neural. Os arcos branquiais, proeminentes no embrião de quarta e quinta semana, crescem medialmente com a migração de massa de células do mesoderma resultando em fusão na linha média, enquanto o ectoderma é puxado para fora achatando o sulco ventral na linha média. A falha no crescimento do mesoderma ou a fusão ao longo dos arcos branquiais responde pelo espectro de anomalias branquiais relatados. Anomalias no tempo de migração de células, deficiente quantidade de células derivadas da crista neural ou anomalias na interação dessas células com o ambiente local podem ser responsável pela falha de fusão. Esta observação sugere que se a migração do mesoderma ao longo do segundo arco é deficiente ou retardado pode resultar em fenda cervical isolada. Se existe uma grande deficiência bilateral do primeiro arco, entretanto, enquanto existe comumente uma complicada constelação de anomalias incluindo gnatosquise inferior com fenda de mandíbula e língua, fenda cervical e ausência de hióide e outras estruturas de suporte do pescoço. Os arcos branquiais migram em direção cefalocaudal com o arco mandibular fechando na linha média antes do arco hióide. Os arcos inferiores ocupam posição mais lateral e migram depois. Desta forma, seja qual for a razão, o arco mandibular não completa seu fechamento na linha média e então o fechamento sucessivo pode ocorrer em arcos mais caudais. Se esse mecanismo patogênico possa ser absolutamente verdadeiro ou não, parece claro que todas as fendas de origem branquiogênicas estão relacionadas no período de tempo e intensidade da fusão mesodermica6.
APRESENTAÇÃO DE CASOSCaso 1
Paciente do sexo feminino, 4 meses e 12 dias. O pai relatava, na consulta inicial, que a criança apresenta desde o nascimento uma pequena pelota no pescoço, negando a saída de secreções ou episódio anterior de infecção no local. Como antecedente, relatou que a criança nasceu de cesariana, com 4.250g de peso, negando a utilização de medicamentos durante a gravidez ou infecções no período pré-natal. Apresentava ao exame clínico, lesão na linha média na forma de uma corda, constituída de pele atrófica, estendendo-se da fúrcula até a região submentoniana onde formava nódulo de 5mm e apresentava um pequeno orifício na região submentoniana de 2mm (Figuras 1A e 1B). Foram realizadas dosagens de TSH e T4 que estavam normais. Realizou-se cintilografia da glândula tireóide a qual apresentou resultado normal. Permaneceu sem diagnóstico durante cinco anos e após esse período foi submetida à cirurgia com excisão em fuso do orifício cutâneo e dissecção subcutânea da fístula da região submandibular até o nível da fúrcula (Figura 1C e 1D). Secção do término da fístula ao nível da fúrcula através de incisão horizontal neste nível. No fechamento do defeito resultante foi utilizada técnica de zetaplastia múltipla para evitar recidiva da corda cutânea. A lesão foi encaminhada para exame anatomopatológico que mostra tratar-se de cordão fibroso aderido ao apêndice cutâneo (Figura 1E). A criança permaneceu em seguimento ambulatorial durante 1 ano sem sinais de recidiva da corda cutânea.
Caso 2
Paciente do sexo masculino e 4 meses de idade. Segundo a mãe apresentava desde o nascimento uma abertura no pescoço com a drenagem de secreção clara e transparente. Após a saída de maternidade, com o uso de pomada que continha antibiótico, parou a drenagem e cresceu uma pele fina que fechou o orifício da lesão. Como antecedentes referiu que a criança nascera de termo e com o peso 3.150g. A mãe relatou também que teve Diabetes Mellitus gestacional. Ao exame clínico notava-se lesão cervical mediana recoberta por pele atrófica e brilhante com corda subcutânea que se estendia da região mentoniana até a fúrcula esternal. Figura (2A e 2B). A criança apresentava discreta retrognatia mandibular e mordida aberta. Com 18 meses de idade foi submetida à cirurgia com excisão em fuso da lesão e dissecção subcutânea da fístula da região submandibular até o nível da fúrcula, com secção do término da fístula a este nível. No fechamento do defeito resultante foi empregada técnica de zetaplastia múltipla (Figura 2C) com intuito de evitar retração fibrosa ou recidiva da corda cutânea. O anatomopatológico da lesão mostrava tratar-se de cordão fibroso aderido ao apêndice cutâneo, circundado por denso infiltrado linfoplasmocitário (Figura 2D). A criança permaneceu em acompanhamento ambulatorial durante 3 meses com bom resultado estético e funcional e após este período abandonou o seguimento.
DISCUSSÃORelatamos a fenda cervical mediana utilizando os dois casos acima com o objetivo de descrever na literatura nacional essa rara anomalia do aparelho branquial. Desta forma temos como objetivo impedir o que aconteceu no nosso primeiro caso que permaneceu em acompanhamento ambulatorial durante 5 anos devido a dificuldade no diagnóstico. O reconhecimento precoce dessa malformação permite também o seu tratamento imediato com melhor resultado estético e prevenindo desta forma a retrognatia que pode ser resultante da tração exercida pela corda cutânea6. Devemos também lembrar a possibilidade de outras anomalias associadas que devem ser identificadas antes do tratamento cirúrgico1,4,7,11. Estamos de acordo com a maioria dos autores que utilizaram a zetaplastia múltipla no seu tratamento ao contrário do fechamento primário, pois dessa forma as chances de recidiva da corda subcutânea diminuem1-11,13-14. A utilização de retalho miocutâneo do músculo peitoral maior e genioplastia seria uma opção de tratamento para as seqüelas ou em caso de diagnóstico tardio12.
Figura 1A
Figura 1B
Figura 1C
Figura 1D
Figura 1E
Figura 2A
Figura 2B
Figura 2C
Figura 2D
CONCLUSÃOA fenda cervical mediana é um defeito embrionário raro, o mecanismo embrionário responsável pelo seu aparecimento permanece controverso e devemos sempre lembrar que pode estar associada a outras mal-formações da linha média. Um diagnóstico precoce seguido de um tratamento apropriado, previne tanto seqüelas por atraso no tratamento cirúrgico como uma contratura do pescoço devido à excisão incompleta. A reparação deve, segundo a maioria dos autores, ser realizada com zetaplastia múltipla.
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1 Professor Assistente, Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço-Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
2 Otorrinolaringologista, Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço-Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
3 Professor Adjunto, Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço - Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP
Endereço para Correspondência: José Vicente Tagliarini - Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de
Cabeça e Pescoço - Faculdade de Medicina de Botucatu - Distrito de Rubião Júnior s/n Botucatu SP 18618-000.
Telefax (0xx14) 3811-6256 - E-mail: vicente@fmb.unesp.br
Trabalho apresentado durante o 36o Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, em Florianópolis (SC), 2002.
Artigo recebido em 27 de junho de 2003. Artigo aceito em 13 de novembro de 2003.