INTRODUÇÃOA respiração oral é um dos sintomas mais freqüentes na infância. Várias são as suas causas e dessa forma é de uso comum denominar-se a Síndrome do Respirador Oral. Os distúrbios respiratórios podem variar desde pequenos processos alérgicos até quadros mais exuberantes como a apnéia do sono1.
Várias são as etiologias da respiração oral; podemos destacar a hiperplasia adenoamigdaliana, rinites alérgicas e não-alérgicas, hipertrofia de cornetos inferiores, etc.2, sendo a rinite alérgica uma das mais freqüentes3.
Várias características físicas são atribuídas a estes pacientes. As mais relevantes referem-se às alterações do esqueleto dento-craniofacial, já descritas desde o século XIX. As crianças com respiração oral prolongada apresentam alterações faciais características como: aumento vertical do terço inferior da face, arco maxilar estreito, palato em ogiva, ângulo goníaco obtuso, má oclusão dentária (mordida aberta, incisivos superiores protruídos, mordida cruzada), a posição do osso hióide mais baixa e lábio superior curto, lábio inferior evertido, incompetência labial, hipotonia dos elevadores de mandíbula, hipotonia lingual, alterações da postura de língua em repouso, na deglutição e na fala, alterações da mastigação e vocais, além de alterações posturais4-6.
Comumente, citam alguns autores que são características de crianças respiradoras orais o cansaço freqüente, sonolência diurna, adinamia, baixo apetite, enurese noturna e até déficit de aprendizado. Muitos destes relatos são provenientes de citações anedóticas e revisões de literatura, com poucos artigos originais7.
Por se tratar de uma "síndrome" e apresentar causas multifatoriais com associação de diversas patologias, faz-se necessário esclarecer mais detalhes sobre os aspectos clínicos desta entidade.
OBJETIVODessa forma, o objetivo deste trabalho é comparar os achados de sonolência diurna, cefaléia, agitação noturna, enurese noturna, problemas escolares/distúrbios de atenção e bruxismo em crianças de 2 a 14 anos com história de respiração oral, de acordo com os 3 diagnósticos principais: rinite alérgica, hiperplasia adenoideana, hiperplasia adenoamigdaliana.
MATERIAL E MÉTODOSEste trabalho foi realizado de forma prospectiva com 142 pacientes de ambos os sexos entre 2 a 16 anos (média 7.2±3.77 anos) do Ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, de abril de 2001 a dezembro de 2002.
Os pacientes foram classificados em três grupos de acordo com os seguintes diagnósticos: rinite alérgica, hiperplasia adenoideana isolada e hiperplasia adenoamigdaliana.
Para o diagnóstico de rinite alérgica foi necessário que o paciente, além dos sintomas e sinais de história e exame físico característicos, tivesse teste de hipersensibilidade cutânea positivo. Para o grupo com hiperplasia adenoideana, foram incluídos pacientes com obstrução da nasofaringe maior de 80%, Determinado através de telerradiografia de perfil.
Para o grupo com hiperplasia adenoamigdaliana, o mesmo critério para a tonsila faríngea e a obstrução da orofaringe por tonsilas palatinas graus 3 e 4 de Brodsky8.
Foram excluídos pacientes com deformidades craniofaciais, síndromes e problemas neurológicos.
Todos os responsáveis dos pacientes responderam a questionário padronizado (em anexo) sobre os sintomas noturnos para caracterização da presença de apnéia ou não de apnéia do sono, além de questões específicas sobre os aspectos estudados: cefaléia matinal, desempenho escolar e atenção, sonolência diurna, agitação durante o sono, enurese e bruxismo.
O trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e os responsáveis assinaram termo de consentimento para participação na pesquisa.
RESULTADOSForam estudados 142 pacientes, com idades entre 2 e 16 anos (média 7,2±3.77 anos), sendo 92 dos sexo masculino e 50 do sexo feminino.
De acordo com a raça, os pacientes distribuíram-se em 90 brancos, 7 negros e 45 pardos.
Os pacientes foram divididos de acordo com o diagnóstico (Tabela 1).
A comparação entre as médias das faixas etárias para cada grupo de diagnósticos encontra-se na Tabela 2.
Observando-se a Tabela 3, podemos observar que há um aumento progressivo da freqüência de roncos entre os 3 grupos, sendo menor para os pacientes com rinite alérgica e muito maior para o grupo com hiperplasia adenoamigdaliana, o mesmo ocorrendo com a presença de apnéia.
A Tabela 3 também descreve a freqüência dos outros sintomas estudados, de acordo com a classificação preconizada pelos autores.O Gráfico 1 mostra a comparação das características para cada doença, considerando-se o a maior classificação descritas como 4, na Tabela 3.
Quanto ao déficit de atenção, referido como grau 4 para o mau desempenho escolar, observamos uma maior freqüência no grupo com hiperplasia adenoamigdaliana, assim como os sintomas de agitação noturna, enurese e bruxismo são estatisticamente mais freqüentes no grupo com hiperplasia adenoamigdaliana, havendo uma relação com a maior freqüência de apnéia do sono.
Tabela 1. Distribuição por diagnósticos
Tabela 2. Idade médias e diagnósticos
ANOVA (análise de variância)
Idades muito diferentes
Tabela 3. Comparação entre as características e os diagnósticos
RA= rinite alérgica; AD= hiperplasia adenoideana; A2= hiperplasia adenoamigdaliana; NR=não responderam; Atenção: não responderam os que não frequentam escola; Sonolência: não responderam os que ainda têm a sono da tarde; Enurese: não responderam os que ainda usam fralda
Gráfico 1. Comparação das características para cada doença
Tabela 4. Correlação entre diagnósticos e sintomas
Significante quando pd"0.050
Teste de Kruskal-Wallis
Tabela 5. Correlação dos sintomas entre os diagnósticos
Teste de Mann-Whitney para pares de grupos pd"0.050
Tabela 6. Correlação entre Apnéia e demais sintomas
Teste de Correlação não paramétrica de Speraman pd"0.050
Tabela 7. Comparação entre a faixas etárias dividas pela mediana e sintomas:
Grupo 1- menores 7 anos
Grupo 2 - maiores de 7 anos
A Tabela 4 mostra que os sintomas e aspectos estudados diferem entre os diferentes diagnósticos. Podemos notar que há diferença principalmente entre atenção, roncos, agitação, roncos, apnéia e bruxismo.
Comparando-se os sintomas entre os 3 diagnósticos, dois a dois, podemos observar diferenças marcantes entre os grupos com hiperplasia adenoamigdaliana e rinite alérgica para a maioria dos sintomas, e entre hiperplasia adenoideana isolada e hiperplasia adenoamigdaliana para roncos e apnéia e agitação. (Tabela 5).
A Tabela 6 nos mostra que cefaléia, atenção, enurese, agitação e bruxismo são dependentes da apnéia.
Observou-se que não há diferença entre os sintomas e a idade, quando se comparam dois grupos de acordo com a mediana, exceto para enurese e atenção (Tabela 7).
DISCUSSÃOOs distúrbios respiratórios são muito freqüentes em crianças. Eles podem variar desde pequenos processos alérgicos até quadros mais exuberantes como a apnéia do sono1.
Pudemos observar em nossa casuística um maior predomínio de meninos, o que está de acordo com outros autores, não somente em relação a maior freqüência de respiração oral9, mas também em relação com a apnéia do sono da criança em decorrência da hiperplasia adenoamigdaliana que é mais freqüente no sexo masculino10.
Comparando-se a idade média dos 3 grupos, podemos observar que crianças com hiperplasia adenoamigdalina são mais jovens que as com rinite alérgica. Isso deve ao pico de incidência das duas doenças serem diferentes. A rinopatia alérgica acomete criança de qualquer idade11, entretanto, por se apresentar com sintomas mais leves, muitas vezes seu diagnóstico é feito mais tardiamente. Já a hiperplasia adenoamigdaliana têm sua maior incidência entre 3 e 6 anos de idade12.
Por seus sintomas serem muitos comuns, os distúrbios respiratórios do sono na criança podem ter seu diagnóstico retardado, podendo chegar há 2 anos13.
Descrevem-se muitas características relacionadas ao paciente respirador oral. Entretanto, sabemos que a respiração oral trata-se de um sintoma, e muitos chegam a descrevê-lo como uma síndrome, dita Síndrome do Respirador Oral. Sabemos que são várias as causas de respiração oral, descrevendo diversas doenças com fisiopatologias muito distintas, então, talvez fique difícil compilar todos os respiradores orais dentro um grupo homogêneo quanto às suas características.
Através desta pesquisa pudemos observar que muitas das características descritas como do respirador oral deveriam estar restritas ao paciente com apnéia do sono. A investigação da apnéia do sono em crianças com respiração oral é fundamental, pois esta é a doença com potenciais complicações, menos freqüentes, por exemplo, na rinopatia alérgica como pudemos observar.
A aplicação de um questionário detalhado e específico para a caracterização do sono e seus distúrbios e a presença de apnéia faz-se muito importante. Compartilhamos com outros autores, a idéia de que este método pode muitas vezes restringir ou mesmo substituir a polissonografia14.
A apnéia do sono tem uma grande variabilidade em crianças e nem sempre se pode ter um diagnóstico fidedigno em apenas uma noite no laboratório de sono, sem considerar os custos do exame, que em nosso meio é desencorajador. O histórico clínico de apnéia do sono é altamente sensível para a triagem dos pacientes14.
O ronco e a apnéia do sono foram mais freqüente na hiperplasia adenoamigdaliana o que corrobora os dados de literatura que nos mostra que esta é a principal causa do distúrbio respiratório do sono na infância12.
Neste quadro, diferentemente dos grupos com rinopatia alérgica e hiperplasia adenoideana, a apnéia do sono deve-se a obstrução da hipofaringe. A patência da hipofaringe é determinada tanto por fatores anatômicos como fisiológicos e durante a inspiração, há uma pressão intraluminal negativa (subatmosférica) podendo promover o colapso da faringe. Assim, qualquer fator que diminua a luz faringiana ou aumente sua complacência predispõe um indivíduo a apnéia do sono15.
Considerando-se, agora, as freqüências de sonolência diurna e cefaléia, estas foram semelhantes nos dois grupos. Era de se esperar, comparando-se com o quadro de apnéia do adulto que a sonolência diurna e a cefaléia também fossem mais freqüentes no grupo com hiperplasia adenoamigdaliana e, portanto, apnéia. Entretanto descreve-se que nas crianças, ao invés de freqüentes períodos de apnéia, o padrão de hipoventilação obstrutiva parcial caracterizado por roncos, movimentos paradoxais da caixa torácica, dessaturação fásica da oxi-hemoglobina e hipercarpnia justificam a baixa incidência de sonolência diurna e cefaléia matinal nas crianças15.
O déficit de atenção e o mau desempenho escolar também foram mais prevalentes no grupo com hiperplasia das tonsilas faríngea e palatina que estão associados à apnéia. A baixa do oxigênio sangüíneo durante o sono ocorre na fase de sono REM (fase de movimento rápido dos olhos), assim como o despertar. Esta fragmentação do sono é responsável por estes sintomas12. Parece que isto impede a estimulação de centros cognitivos durante o crescimento cerebral16. Deve-se ressaltar, entretanto que pacientes com rinopatia alérgica também podem apresentar déficits cognitivos. Nestes casos, isto é relacionado ao uso de anti-histamínicos clássicos que por passarem a barreira hematoencefálica provocam sonolência17.
Por fim, também em decorrência da apnéia e da fragmentação do sono, observa-se com grupo com hiperplasia adenoamigdaliana uma maior freqüência de agitação noturna, bruxismo e enurese. A agitação noturna decorrente do aumento do tônus muscular e aparecimento de movimentos dos membros inferiores, assim como o bruxismo. Sabe-se, que este melhora após a adenoamigdalectomia, quando se trata a apnéia18.
A enurese noturna melhora com a adenoamigdalectomia e esta ocorre em função da alteração da arquitetura do sono, pois há um diminuição da secreção do hormônio antidiurético ou um aumento do peptídeo atrial natriurético levando a um aumento do volume urinário19.
Comparando-se os sintomas com as faixas etárias baseadas na mediana de idade do grupo estudado, pudemos verificar que na maioria dos sintomas não há diferença entre os mais jovens e os mais velhos, exceto para enurese noturna e déficit de aprendizado. Estes achados não apresentam grande significado, uma vez que a faixa etária dos pacientes estudados é muito extensa e, portanto, há crianças muito pequenas, em que a enurese noturna é esperada e ainda não freqüentam a escola, e não se pode classificar o déficit escolar.
CONCLUSÕESPudemos concluir que bruxismo, enurese, agitação noturna e cefaléia estão relacionados com a apnéia do sono, sendo mais freqüente na hiperplasia adenoamigdaliana. Sonolência diurna e cefaléia matinal são pouco freqüentes na criança com respiração oral, mesmo com apnéia do sono. Dessa forma, a investigação de apnéia do sono na criança com respiração oral é fundamental e assim é a determinação da causa da respiração oral, pois como pudemos observar as repercussões são bastante distintas.
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1 Médica Assistente Doutora do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
2 Médico Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
3 Aluno do 6º ano do Curso de Graduação em Medicina da Faculdade de Medicina da USP.
4 Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
Trabalho apresentado no III Congresso Triológico de Otorrinolaringologia. Rio de Janeiro, 2003.
Classificado entre os 10 melhores trabalhos para o prêmio na área de Rinologia.
Instituição: Trabalho realizado na Divisão de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Endereço de correspondência: Rua Guarará 529 cj. 121 Jardim Paulista SP 01425-001
Tel (0xx11) 3889-0359 - Fax (0xx11) 3887-6387 - E-mail: difran@attglobaal.net
Artigo recebido em 27 de julho de 2004. Artigo aceito em 13 de agosto de 2004.