ISSN 1806-9312  
Domingo, 28 de Abril de 2024
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3052 - Vol. 70 / Edição 3 / Período: Maio - Junho de 2004
Seção: Relato de Caso Páginas: 394 a 397
Disacusia sensorioneural autoimune em criança: relato de caso
Autor(es):
Kátia S. Costa 1,
Roberta I. D. Garcia 1,
Suzana B. Cecatto 1,
Priscila B. Rapoport 2,
Renata Mendonça 3

Palavras-chave: disacusia sensorioneural autoimune, ouvido interno, criança

Keywords: autoimmune sensorioneural hearing loss, inner ear, children

Resumo: A disacusia sensorioneural autoimune é reconhecida como uma das poucas causas reversíveis de perda auditiva sensorioneural. Acomete na grande maioria das vezes mulheres entre 30 e 40 anos, sendo extremamente raro em crianças. O diagnóstico baseia-se no quadro clínico, testes laboratoriais, bem como resposta satisfatória a corticoterapia. O exame audiológico não apresenta características típicas. Neste trabalho os autores descrevem o caso de um menino de sete anos com diagnóstico de disacusia sensorioneural autoimune.

Abstract: The autoimmune inner ear disease is a rare case of reversible sensorioneural hearing loss. The typical afflicted patient is the middle-aged woman, and it is very rare in the pediatric population. The diagnosis is based on disease manifestations, laboratory exams and a positive corticosteroid response. The audiometric evaluation does not revel typical characteristics. The authors report a case of autoimmune sensorioneural hearing loss in a seven-year-old child.

Introdução

A disacusia sensorioneural (DSN) autoimune é uma das poucas causas de perda auditiva na qual o tratamento precoce poderá evitar a degeneração auditiva ou mesmo recuperá-la em muitos casos. É classificada como uma forma de DSN adquirida (não genética) tardia1 e manifesta-se como hipoacusia sensorioneural, flutuante, bilateral, rapidamente progressiva e responsiva ao tratamento com drogas imunossupressoras2. Aproximadamente 65% dos casos ocorrem em mulheres, na faixa etária de 20 aos 40 anos, sendo extremamente raro na população pediátrica3. Neste trabalho os autores têm como objetivo descrever um caso de disacusia sensorioneural em uma criança de 7 anos e demonstrar que apesar de ser uma doença atualmente bem definida, seu diagnóstico e tratamento ainda são um verdadeiro desafio, principalmente em crianças.

Relato de caso

P.F.S.J., sexo masculino, 7 anos, encaminhado ao serviço de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC, com queixa de hipoacusia bilateral, pior em orelha direita há 2 anos, de início insidioso, progressiva e com períodos de flutuação percebida pela mãe e também pelo paciente. Não apresentava queixas nasais e de orofaringe. Mãe negava intercorrências durante a gestação, parto e pós-parto. Negava o uso de ototóxicos durante a gestação, consangüinidade entre os pais, bem como história familiar de perda auditiva.

O paciente apresentava ainda história de meningite viral, ocorrida há 5 anos sem complicações ou seqüelas e negava hipoacusia nesta época.

O exame físico otorrinolaringológico foi normal.

O primeiro exame audiométrico revelou presença de hipoacusia sensorioneural moderada em orelha esquerda nas freqüências graves e moderadas (média em 33 dB) e hipoacusia mista profunda em orelha direita. A imitância acústica apresentou curva tipo A bilateralmente e ausência do reflexo em orelha direita. (Figura 1)

Foram realizadas audiometrias seriadas, com um intervalo de aproximadamente 2 meses, na tentativa de avaliar a flutuação da audição referida pela mãe. Notou-se que a orelha esquerda apresentava uma discreta melhora nos limiares tonais (hipoacusia sensorioneural leve com média em 20 dB), e na orelha direita uma piora, apresentando-se praticamente anacúsico. (Figura 2)

Foram solicitadas sorologias para citomegalovírus, toxoplasmose, rubéola e sífilis, e as provas de atividade reumáticas: velocidade de hemossedimentação (VHS), fator reumatóide, proteína C reativa e fator antinúcleo. As sorologias foram todas negativas e apenas o VHS e a proteína C reativa apresentaram-se acima dos valores normais.

A tomografia computadorizada apresentou-se sem alterações.

Foi aventada, então, a hipótese de disacusia autoimune, e iniciou-se a corticoterapia como prova terapêutica. A dose inicial foi de 20 mg de prednisolona diária divididas em 2 tomadas.

O controle audiométrico realizado após 1 mês de tratamento mostrou melhora significativa nos limiares tonais, principalmente na orelha esquerda, que praticamente atingiu os valores normais (média em 7 dB). (Figura 3)

A mãe e o paciente também referiram melhora importante da audição, porém com um aumento de peso de 6 Kg neste período.

Iniciamos, então, redução da dose no intuito de obter uma dose de manutenção segura por 3 meses que mantivesse os limiares de audição, sem porém trazer os efeitos colaterais indesejáveis da corticoterapia. A dose foi sendo gradualmente reduzida, e atualmente (dez meses após o início do tratamento) o paciente vem utilizando 2,0 mg de prednisolona ao dia e preserva os limiares tonais inalterados.



Figura 1. Audiometria tonal realizada na primeira consulta.



Figura 2. Audiometria



Figura 3. Audiometria tonal 1 mês após a corticoterapia.




Discussão

A doença autoimune caracteriza-se por uma reação do sistema imunológico contra antígenos autólogos, que deveriam ser reconhecidos como próprios, proporcionando lesão tecidual. É em geral resultante da falha ou quebra dos mecanismos que normalmente são responsáveis pela manutenção da autotolerância4.

O marco diagnóstico é uma perda auditiva sensorioneural rapidamente progressiva, que ocorre em um período de semanas ou meses, freqüentemente bilateral e assimétrica. Pode estar associada a sintomas vestibulares (vertigem ou instabilidade), plenitude auricular, zumbido ou hipoacusia de caráter súbito ou flutuante. Com o passar do tempo a audição continua a declinar até total deterioração.5

A perda auditiva pode começar em qualquer idade, sendo mais comum em mulheres com idade entre 30 e 45 anos.6

O exame otorrinolaringológico não revela alterações.

As curvas da audiometria tonal não apresentam características típicas, podendo apresentar formas ascendentes ou descendentes. A discriminação vocal também apresenta comportamento imprevisível.7

Na eletrovectonistagmografia observa-se mais comumente resposta reduzida.8

O diagnóstico deve ser baseado no curso clínico, nos testes laboratoriais e na resposta terapêutica. A investigação laboratorial pode ser feita através de testes não específicos (imunocomplexos circulantes, sistema complemento, complemento hemolítico total, imunoglobulinas circulantes, velocidade de hemossedimentação, proteína C reativa, fator reumatóide, fator antinuclear, anticorpo anti colágeno II, anticorpos para vírus Epstein-Barr, citomegalovírus, vírus da hepatite B, toxoplasmose e sífilis) e testes específicos (transformação linfocitária, inibição da migração linfocitária, análise imunoenzimática e imunofluorescência contra antígenos da orelha - proteína 68 kD).5

A ressonância magnética possibilita a identificação da atividade inflamatória no labirinto membranoso pelo aumento do sinal após infusão de contraste paramagnético (gadolínio) em T1.1

A corticoterapia continua sendo a principal opção no tratamento da disacusia sensorioneural autoimune. A prednisona na dosagem inicial de 1 mg/kg/d, até a dose total de 60 mg/d é a primeira escolha. A dexametasona com dose de 0,1mg/kg/d, até 8 mg/d ou o deflazacort com dose total ao redor de 30 mg/d podem ser opções alternativas à prednisona.

A duração do tratamento depende da evolução do caso. Usualmente após 4 semanas atinge-se a estabilização do quadro, possibilitando a redução gradativa do medicamento até a dose de manutenção ao redor de 10 a 20 mg/d de prednisona. Essa dosagem deverá ser mantida por pelo menos 3 meses. Caso observe a recrudescência da perda auditiva ou outros sintomas, o aumento da dose está indicado.9

Durante a administração do corticóide, deve-se monitorizar os efeitos colaterais da corticoterapia e a relação custo-benefício deve ser amplamente discutida com o paciente e seus familiares.

Os critérios indicativos de responsividade à corticoterapia são: 1) melhora na média tritonal para tom puro em 15 dB ou mais; 2) aumento da discriminação vocal em 20% ou mais e 3) estabilização da audição com completa resolução da vertigem.2

Quando não se obtém resposta satisfatória com o uso de corticóide, e em casos mais graves, está indicada a imunossupressão - ciclofosfamida 1 mg/kg/d por até 3 meses com substituição pela prednisona na dose de manutenção. Deve-se controlar o impacto da ciclofosfamida na série branca. Leucopenia abaixo de 2000 células/ml ou neutropenia abaixo de 1000 células/mm, poderá determinar o encurtamento do tratamento ou mesmo sua suspensão. A ciclofosfamida pode ainda causar cistite hemorrágica, doenças malignas do trato urinário e nefrotoxicidade. A azatioprine e metotrexate já foram propostos nestas condições e também para o tratamento em crianças por serem mais seguros nesta faixa etária.

Em alguns casos, com títulos elevados de imunocomplexos circulantes e auto anticorpos, a plasmaferese poderá ser considerada como medida complementar à corticoterapia e/ou imunossupressão.1

Hughes et al. observaram que a perda auditiva pode começar em qualquer idade, sendo mais comum entre 30 e 45 anos, e extremamente raro em crianças.6 A prevalência desta doença nesta faixa etária varia muito (de 4 a 30 %)10 e alguns autores sugerem que o mecanismo autoimune está muito mais envolvido do que freqüentemente se tem suspeitado.3

Devido à dificuldade de realização de exames laboratoriais específicos, o estabelecimento do diagnóstico preciso desta doença se torna difícil e o tratamento muitas vezes retardado. Dinces et al. reportam em seu estudo que o teste de transformação linfocitária é exame mais utilizado para diagnosticar a disacusia sensorioneural autoimune, com especificidade de 93% e sensibilidade de 96%.11 Outros autores argumentam que a sensibilidade seja menor e que a proteína 68kD apresenta especificidade semelhante ao teste de transformação linfocitária e sensibilidade maior. Harris e Hughes consideram a melhora audiométrica com a corticoterapia, um método diagnóstico. Porém em crianças, existe uma certa resistência quanto à utilização da prova terapêutica, principalmente por parte dos pais e parentes, devido aos inúmeros efeitos colaterais que a corticoterapia a longo prazo traz.12

O tratamento inicial produz uma melhora significativa nos limiares audiométricos, porém devido à instabilidade da doença, pode ocorrer um declínio gradual e contínuo da função auditiva.9

Comentários Finais

A disacusia sensorioneural autoimune é uma patologia geralmente descrita em adultos, principalmente mulheres de meia idade e poucos casos têm sido relatados em crianças. Neste relato o paciente apresentava quadro clínico sugestivo com flutuação de audição, velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa elevados. Porém, devido à impossibilidade de obter os exames específicos para o diagnóstico da doença, foi realizado teste terapêutico com corticosteróide e obteve-se melhora audiométrica. Desta maneira foi confirmado o diagnóstico de disacusia sensorioneural autoimune nesta criança que, até o presente momento, vem mantendo o mesmo padrão audiológico.

Deste modo, os autores concluem que se deve levar em consideração a possibilidade de disacusia sensorioneural em todas as faixas etárias, inclusive a pediátrica, lembrar que o uso de corticosteróides ainda é a melhor opção de tratamento e também pode ser usado como teste terapêutico quando não se tem acesso aos exames disponíveis ou estes se mostram negativos.

referências Bibliográficas

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8. Hughes GB, Kinney SE, Barna BP, Calabrese LH. Autoimmune inner ear disease - laboratory tests and audio-vestibular treatment responses. In: Veldman JE, McCabe BF. Oto-immunology. Amsterdam: Kugler Plu; 1987. p. 149-55.
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11. Dinces EA, Yang SAB, Balogun AO. Pediatric fluctuating sensorioneural Hearing Loss: Problems in medical management. In: Laryngoscope 2001; 111(1): 21-5.
12. Harris JP, Moscicki RA, Hughes GB. Immmunologic disorders of the inner ear. In: Hughes GB. Pensac NL eds. Clinical Otology. 2nd ed. New York: Thieme Medical Publishers; 1997. p.381-91.




1 Médicas residentes do terceiro ano da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC.
2 Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC.
3 Médica residente do primeiro ano da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC.
Endereço para Correspondência: R. São Paulo Antigo, 319 ap. 51 Real Parque São Paulo SP 05684-010
E-mail: katia.guga@originet.com.br
Artigo recebido em 18 de setembro de 2002. Artigo aceito em 13 de março de 2004.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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