INTRODUÇÃOOs primeiros relatos sobre observação das Emissões Otoacústicas foram descritos por David Kemp, em 19781-3, o qual as definiu como liberação de energia sonora originada na cóclea, que se propaga pela orelha média até alcançar o conduto auditivo externo.
Com os estudos de Békesy (1960)3 sobre a onda viajante, foi possível entender o princípio de captação do som que chega à cóclea, sua transformação em energia elétrica e envio ao córtex. Isto ocorre devido a um movimento sinusoidal formado a partir da vibração da membrana Basilar e membrana de Reissner quando a orelha interna é estimulada. A estimulação das células sensoriais ocorre onde há maior vibração e amplitude dessa onda.
Estudos recentes demonstraram melhor o funcionamento do órgão de Corti, em especial das células ciliadas externas. Dessa forma, as ondas viajantes descritas por Békesy3 seriam as primeiras responsáveis pela excitação das células ciliadas externas, as quais funcionam como um verdadeiro sistema de amplificação mecânica de até 50 dB de intensidade de estímulo na cóclea4.
As EOAEs são sons sublimiares gerados pelas células ciliadas externas e necessitam de absoluta integridade da orelha externa e média para sua captação. Qualquer alteração na transmissão do estímulo acústico poderá acarretar diminuição ou ausência de respostas, comprometendo a análise do exame.
Bonfils et al. (1988)5 afirmaram que as EOAs não quantificam a deficiência auditiva, porém detectam a sua ocorrência, uma vez que estão presentes sempre que há integridade coclear, e não são observadas se os limiares auditivos estiverem acima de 30 dBNA.
Quanto à classificação, as otoemissões acústicas podem ser: Espontâneas, quando captadas sem a apresentação de estímulo sonoro. Estão presentes em 30-60% dos ouvidos com limiares auditivos inferiores a 25-30 dBNA6-9, são predominantes nas mulheres e em neonatos10-13 e não há disfunção significativa nas faixas etárias14; Evocadas Transientes, necessitam de um estímulo sonoro para que sejam desencadeadas, o estímulo habitualmente utilizado é o clique transitório acústico de curta duração com faixa de freqüência bastante abrangente; ou por Produto de Distorção, a qual também necessita de um estímulo sonoro e foi definida por Kemp3 como "energia acústica medida no conduto auditivo externo, originando-se da cóclea pela interação não linear de dois tons puros aplicados simultaneamente". As otoemissões acústicas por produto de distorção (EOAE-DP) ocorrem quando a orelha é estimulada por 2 tons puros de freqüências diferentes simultaneamente, respondendo com intermodulação dos dois e geração de um terceiro, de uma outra freqüência (Kemp 1979; Losbury-Martin, Harris, Stoney, Hawkins & Martin, 1990)15,16. Esses tons puros são chamados f1 e f2, sendo f2 o de maior freqüência. Em humanos com função auditiva normal, a razão entre f1 e f2 é de 1,22 (ratio) e tende a fornecer os maiores produtos de distorção (Gaskill e Brown, 1990)16. O maior produto de distorção ocorre na freqüência resultante da equação 2f1 - f2, sendo f1 < f2, conhecidos como produtos de distorção cúbicos3,17. Esses produtos de função coclear não-linear estão diminuídos ou ausentes em orelhas com perda auditiva quando comparados com orelhas normais (Kimberley e Nelson, 1989)17.
Estudos e experimentos buscam, dessa forma, comparar a origem coclear das Emissões Otoacústicas Evocadas (EOAEs), baseando-se na ausência ou diminuição das mesmas, por meio de danos provisórios ou permanentes das células ciliadas externas como por drogas ototóxicas, hipóxia e exposição a ruídos, entre outros6,17,18.
Por meio de um analisador coclear, pode-se realizar o exame de EOAE-DP de duas formas. Uma delas fornece um gráfico input/output e a outra o gráfico DPGram ou Audiococleograma3,19,20. O primeiro deles seria a representação gráfica das respostas obtidas com variação da intensidade dos estímulos na busca do limiar. Já o segundo, a representação das diversas freqüências por intensidades fixas de L1 e L2.
Muitos estudos examinaram a utilidade clínica das EOAE-DP1,2,3,16,20,21, tais como: triagem auditiva para recém-nascidos, auxílio no diagnóstico de deficiência auditiva, avaliação de pacientes simuladores, prognóstico de hidropsia endolinfática, acompanhamento de pacientes que utilizam drogas ototóxicas, prevenção de deficiência auditiva induzida por ruído, monitorização de orelha interna durante cirurgias.
Este estudo teve por objetivo enfatizar a utilização das EOAE-DP como triagem auditiva em crianças de 2 a 7 anos, para detecção precoce de perdas auditivas, possibilitando um melhor desenvolvimento social psicoemocional e escolar.
MATERIAL E MÉTODO Participaram deste estudo 105 crianças na faixa etária de 2 a 7 anos de idade, matriculadas em uma creche, "Lar das Crianças", localizada na cidade de Marília - SP, no período de junho a dezembro de 2002. Foram incluídas todas as crianças do berçário, maternal, pré I, II e III que concederam autorização prévia de pais ou responsáveis para participação no estudo. 4 crianças não participaram do estudo por não apresentarem esta autorização.
Inicialmente as crianças foram submetidas a um exame otorrinolaringológico completo, com remoção de cerume, quando possível, e Emissões Otoacústicas Evocadas por Produto de Distorção, com o aparelho DP 2000, Starkey, nas freqüências de 2000, 3000 e 4000 Hz, com nível de intensidade sonora de L1=65 dBNPS e L2=55 dBNPS. A resposta utilizada de DP1 foi = 2 f1 - f2 e de DP2 = 2f2 - f120,21,22.
Os dois procedimentos foram realizados na própria instituição.
RESULTADOSDas 105 crianças avaliadas, 40 tinham idade entre 2 e 3 anos, 35 entre 4 e 5 anos e 30 entre 6 e 7 anos, como visualizado no Gráfico 1. A idade média foi de 3,85 anos.
Observa-se no Gráfico 2 que 59% das crianças avaliadas eram do sexo feminino e 41% do sexo masculino.
Encontrou-se presença de cerume em 44,76% (47) das 105 crianças avaliadas após otoscopia, sendo que em 13,33% (14) destas crianças não foi possível a remoção imediata do cerume por lavagem auricular ou extração mecânica. No total, 91 crianças foram submetidas à triagem auditiva por meio das EOAEs-DP, inicialmente, e mais duas crianças após remoção de cerume, totalizando 93 crianças avaliadadas por EOAEs-DP.
O ceruminolítico foi fornecido aos pais ou responsáveis das 14 crianças que apresentaram rolha de cerume de difícil remoção ao primeiro exame otorrinolaringológico, e estes também foram orientados a pingar o medicamento na orelha da criança por uma semana para, posteriormente, realizar-se a remoção do cerume. Destas 14 crianças, 6 abandonaram a escola, 6 não utilizaram o ceruminolítico conforme orientação e 2, após o uso da medicação e remoção de cerume, apresentaram EOAEs-DP dentro dos limites da normalidade.
Ao realizar-se a análise das EOAEs-DP, verificou-se que 5,37% das crianças avaliadas apresentavam exames alterados, sendo 60% do sexo masculino e 40% do sexo feminino (Gráfico 3). Observou-se também que 1 criança do sexo feminino e de 5 anos de idade apresentava otite média serosa bilateral, sendo seus responsáveis orientados a procurarem assistência médica especializada.
Com relação à orelha acometida, 60% das crianças apresentaram alteração bilateral e 40% unilateral, sendo apenas a orelha esquerda acometida. Não foi encontrado nenhum acometimento unilateral de orelha direita (Gráfico 4).
Gráfico 1. Apresentação da idade das 105 crinaças avaliadas.
Gráfico 2. Apresentação em porcentagem do fator sexo das 105 crianças avaliadas.
Gráfico 3. Apresentação da porcentagem do fator sexo das 5 crianças com EOAE-DP alteradas.
Gráfico 4. Apresentação do número de orelhas acometidas nas 105 crianças avaliadas.
DISCUSSÃOEste estudo teve como proposta realizar a triagem auditiva por meio das Emissões Otoacústicas Evocadas por Produto de Distorção em uma população pré-estabelecida sem queixas de comprometimento auditivo23,24.
Diante dos resultados obtidos, verificou-se que 5,37 % das crianças apresentaram EOAEs-DP alteradas, o que difere dos estudo realizado por Vallejo (1999), onde 9,7% foram alterados na avaliação das Emissões Otoacústicas Evocadas Transientes25. Não podemos afirmar que nossos resultados foram inferiores ao estudo citado acima devido ao fato de este ter sido realizado com outro tipo de EOAEs.
Observou-se também em nosso estudo uma maior ocorrência de exames alterados no sexo masculino, mesmo com uma amostragem predominantemente feminina, o que contraria os dados da literatura que apontam uma maior ocorrência de EOAEs alteradas no sexo feminino25.
Durante a realização da avaliação otorrinolaringológica verificou-se que muitas crianças (44,76%) apresentavam presença de cerume no conduto auditivo externo ao 1º exame. Ao compararmos com os dados disponíveis na literatura, observou-se que estes variavam de 6-15% 26-28.
Todos os responsáveis pelas crianças foram comunicados sobre o resultado dos exames por meio de cartas. Aquelas que apresentaram alguma alteração foram encaminhadas à avaliação otorrinolaringológica complementar posterior. Porém, 20%, ou seja, apenas 1 criança, procurou assistência em outro serviço, apresentando avaliação normal, segundo o responsável. Do restante, 40% não procuraram assistência especializada e 40% abandonaram a creche. Assim, observou-se claramente uma dificuldade no acompanhamento das crianças que apresentaram EOAEs-DP alteradas. Foram levantados como possíveis causas desse abandono, fatores sócio-econômico-culturais.
CONCLUSÃOA partir da análise e discussão dos resultados, pode-se concluir que as Emissões Otoacústicas mostraram-se úteis para a realização da triagem auditiva em crianças de 2 a 7 anos por ser um exame de baixo custo, não invasivo, de fácil realização e aceitação internacional.
Observou-se a importância de se realizar a otoscopia antes da realização das EOAEs- DP. Concluiu-se também que é questionável a sistematização deste exame em programas de triagem de perda auditiva precoce, quando este não for realizado com a prévia avaliação otorrinolaringológica.
AGRADECIMENTOSAgradecemos a colaboração na realização deste trabalho: Dr. José Carlos Nardi - Mestre e Professor da Disciplina de Otorrinolaringologia. Dra. Kazue Kobari - Médica Professora da Disciplina de Otorrinolaringologia. Dra. Fabiana E. Vasconcelos - Ex-Estagiária da Disciplina de Otorrinolaringologia. Dra. Sandra Fumi Uema - Ex-Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia. Juliana Betine dos Santos - Fonoaudióloga da APAE de Marília.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Oliveira JAA et al. Emissões otoacústicas no diagnóstico precoce de lesão coclear na Doença de Ménière. Rev Bras Otorrinolaringol 2002 set/out; 68(5): 761-6.
2. Costa Filho OA et al. Emissões otoacústicas evocadas - produto de distorção em neonatos audiologicamente normais. Rev Bras Otorrinolaringol 2001 set/out; 67(5): 644-8.
3. Lopes Filho O, Carlos RC. Emissões otoacústicas In: Da Costa HOO, Campos CAH. Tratado de Otorrinolaringologia. 1ª ed. São Paulo: Roca; 2003 v. 1. p.500-8.
4. Oliveira JAA. Fisiologia Clínica da Audição - Cóclea Ativa. In: Lopes Filho O, Campos CAH. Tratado de Otorrinolaringologia. São Paulo: Roca; 1995. p.510-30.
5. Bonfils P, Uzel A, Pujol R. Screening for auditory dysfunction in infants by evoked otoacoustic emissions. Archives of Otolaryngology Head and Neck Surgery 1988 August; 114(8): 887-90.
6. Mcfadden D, Plattsmier HS. Aspirin abolishes spontaneous otoacoustic emissions. J Acoust Soc Am 1984; 76:443-8.
7. Bonfils P. Spontaneus Otoacoustic emissions clinical interst. Laryngoscope 1989; 99: 752-6.
8. Lopes Filho O, Carlos RC. Produtos de distorções das emissões otoacústicas. Rev Bras Med Otorrinolaringol 1996; 3(5): 224-37.
9. Lopes Filho O. et al Emissões otoacústicas produtos de distorção na hidropsia endolinfática aguda. Caderno Otorrinolaringol. A Folha Médica 1996; 112 (supl.1): 87.
10. Probst R. et al. Spontaneous clic and tone-burt-evoked otoacoustic emissions from normal ear. Hearing Research 1986; 21: 261-75.
11. Strickland AE, Burns FM, Tubis A. Incidence of spontaneous otoacoustic emissions in neonates under intensive care. Br J Audiol 1990; 24(5): 293-300.
12. Turek PM. Spontaneous narrow band acoustic signals imitted by human ears. J Acoust Soc Am 1981; 69: 514-23.
13. Bonfils P, Uziel A, Narcy P. The properties of spontaneous and evoked acoustic emissions in neonates and children: A preliminary report. Archives otolaryngology 1989; 246: 249-51.
14. Lonsbury-Martin BL, Cutler WM, Martin GK. Evidence for the influence of aging on distorcion-product otoacoustic emissions in humans. J Acoust Soc Am 1991; 89(4):1749-59.
15. Munhoz MSL et al. Otoneurologia: Abordagem diagnóstica. In: Cruz OLM, da Costa SS. Otologia Clínica e Cirúrgica. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revinter; 2000. p. 445- 62.
16. Gorga MP et al. From laboratory to clinic: a large scale study of distortion product otoacoustic emissions in ears with normal hearing and ears with hearing loss. Ear & Hearing 1997 dec; 18(2):450-5.
17. Longsbury-Martin BL, Martin GK, Probst K. Acoustic distorcion products in rabbit ear canal. Basic Features Physiological Vulnerability Hear Res 1987; 28: 173-89.
18. Turek PM, Clrck WM, Kim DO. The behavior of acoustic distorcion products in the ear canals of chinchillas with normal or danaged ear. J Acoustic Soc Am 72: 774-80.
19. Gorga MP et al. The use of cumulative distributions to determine critical values and levels of confidence for clinical distortion product otoacoustic emission measurements. J Acoust Soc Am 1996 aug; 100(2): 968-77.
20. Gorga MP et al. Otoacustic emissions from normal-hearing and hearing-impaired subjects: distortion product responses. J Acoust Soc Am 1993; 93 (4): 2050-61.
21. Gorga MP et al. Toward optimizing the clinical utility of distortion product otoacoustic emission measurements. J Acoust Soc Am 1996 aug; 100(2): 956-67.
22. Gorga MP et al. Predicting audiometric status from distortion product otoacoustic emission using multivariate analyses. Ear & Hearing 1999 apr; 20(2): 149-63.
23. Tiradentes JB, Coube CZV, Costa Filho OA. Estudo do padrão de respostas das curvas de crescimento (DP growth rate) das emissões otoacústicas produto de distorção em indivíduos com audição normal. Rev Bras Otorrinolaringol jan/fev 2002; 68(1): 21-6.
24. Wang YF, Wang SS, Tai CC, Lin LC, Shiao AS. Hearing screening with portable screening pure-tone audiometer and distortion product otoacoustic emission. Zonghua Yi Xue Za Zhi 2002 jun; 65(6): 285-92. Taipei.
25. Vallejo JC et al. Análise das emissões otoacústicas transientes em crianças com e sem risco auditivo. Rev Bras Otorrinolaringol 1999; 65(4): 332-6.
26. Minja BM, Machemba A. Prevalence of otitis media hearing impairement and cerúmen impaction among school children in rural and urban Dar es Salaam Tanzânia. Int J Pediatr Otorhinolaringol 1996 set; 37(1): 29-34.
27. Nazar J, Aguila P, Miranda E. El enigma del cerumen. Rev Otorrinolaringol Cir Cabeza Cuello 47(3): 91-9.
28. Sperling N et al. Doenças da orelha externa. In: Cruz OLM, da Costa SS. Otologia Clínica e Cirúrgica. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revinter; 2000. p.121-36.
1 Doutor e Chefe da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Marília.
2 Fonoaudióloga Especializando no Hospital de Reabilitação de Anomalias Crânio Faciais - USP - Bauru.
3 Médico Residente em Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Marília.
4 Médica Residente em Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Marília.
5 Médico Residente em Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Marília.
Endereço para Correspondência: Disciplina de Otorrinolaringologia - Faculdade de Medicina de Marília - Av. Monte Carmelo 800 Fragata, Marília SP 17519-030.
Tel (0xx14) 421- 1744 - E-mail: orl@famema.br - Ambulatório Mário Covas
Artigo recebido em 25 de junho de 2003. Artigo aceito em 02 de abril de 2004.