O problema das paralisias diftéricas acha-se no momento em plena atualidade. As discussões sumamente curiosas travadas na Sociedade Médica dos Hospitais de Paris vieram chamar a atenção de patologistas e clínicos sôbre um assunto que parecia ter interesse um tanto relativo. Ao tempo em que se travava tal discussão, interessava-me um informe que não lograra encontrar na literatura, e que, por isso, tentei averiguar por meio da experimentação clínica.
A 7 de máio de 1934 apareciam no meu serviço clínico no Hospital da Santa Casa, dois irmãos, um de 4, outro de 9 anos, que vinham á consulta porque estavam com a voz francamente nasal, e ainda porque lhes saía pelo nariz parte dos líquidos ingeridos. O exame revelou, em ambos, paralisia bilateral do véu; mesmo no reflexo provocado, não se observava a menor modificação na forma dos pilares. A mãe das crianças negava, porém, e terminantemente, terem elas sofrido de anginas mesmo discretas, pois tinha o cuidado de olhar-lhes com frequência a garganta. Declarava, no entanto, que a alteração da voz e do deglutir datava de uns quinze dias, e que em março, precisamente a 19 de março, ambos haviam sido atacados de parotidite epidêmica.
Esta infecção, embora muito raramente, pode determinar paralisias do tipo em apreço, motivo por que fiquei em dúvida sôbre a origem da complicação. Como porém, as paralisias isoladas, bilaterais, do véu são, por assim dizer, manifestação típica de difteria, aconselhei ao colega da Delegacia de Saude, que me enviara os doentinhos, fazer-lhes umas injeções de sôro antidiftérico. Os meninos ficaram radicalmente curados no fim de poucos dias.
Por motivos estranhos á minha vontade não foram feitas no caso, nem a reação de Schick, nem a pesquisa de bacilos diftéricos na faringe. Esta, aliás, só teria valor se fosse verificado possuir o germe ação patogênica.
Mas, justamente porque êstes exames não foram feitos, fiquei indeciso quanto á causa da paralisia. Achei, porém, que talvez pudesse esclarecer em parte o assunto, tratando o primeiro caso de paralisia do véu, que me viesse ás mãos, por um sôro qualquer que não fosse o antidiftérico. Iria assim proceder porque, até então, não conseguira averiguar, na literatura, se no tratamento das paralisias o efeito do sôro era ou não específico, isto é, se uma paralisia diftérica só cederia mediante o emprêgo do sôro antidiftérico.
Em meiados de dezembro, tenho conhecimento do trabalho de Ramon, Debré e Uhry acêrca do estudo experimental das paralisias diftéricas. Vemos, nêsse artigo, que está demonstrado serem as paralisias diftéricas produzidas indiscutívelmente pela toxina diftérica. "Portanto, para lutar-se contra as paralisias diftéricas só vale a antitoxina. A antitoxina, por sua vez, é uma só; vale específicamente contra o veneno elaborado por bacilos diftéricos de tôda e qualquer origem. Mas para que ela seja eficaz, é necessário poder neutralizar a toxina, antes desta se ter fixado no centros nervosos".
Desta frase nasce a discussão. Diz Comby - e cita uma pléiade de clínicos que forma a seu lado - que há trinta anos trata com sôro específico as paralisias diftéricas, e que a maioria absoluta de seus doentes se curou com esta terapêutica. A nossa prática, de nós brasileiros, é também essa: em geral tratamos a paralisia com sôro, e a mor parte dos doentes se cura. Para Rolleston, a cura seria efeito de sugestão e não do soro, argumento a meu ver infantil, embora parta de uma autoridade no assunto. Grenet diz igualmente que não pode deixar de causar espécie dar-se o sôro e a paralisia ceder; mas, pergunta êle, "não se tratará de mera coincidência, em vez de relação de causa e efeito?". Eis um argumento capcioso; se o aceitarmos, a terapêutica inteira vai por água abaixo.
Para contestar Comby, voltam á Sociedade Debré, Ramon e Uhry. Alega o primeiro que não se baseia sómente na experimentação: por muito tempo, com Netter e Marfan, empregou o sôro nas paralisias do véu, e verificou que o tratamento não dava resultado. "Fomos forçados a reconhecer sua impotência- diz Debré. "Como a grande número de autores francêses e estranjeiros, pareceu-nos que as paralisias diftéricas destinadas á cura, evolucionavam favoravelmente mesmo sem sôro, e que as graves, a-pesar da soroterapia intensiva e prolongada, não sofriam alteração, quando a terapêutica era empregada no momento das perturbações nervosas".
Alegam êste autores que, no momento em que as paralisias aparecem, o teor de antitoxina no sangue já é muito elevado. Seria, pois, teóricamente, um contrassenso, aumentar a antitoxina para obter a cura. Isto, bem entendido, num doente que foi tratado com sôro em dose insuficiente.
Tinha-se de início a impressão de que os experimentadores achavam que o sôro não tem propriedades terapêuticas na paralisia diftérica. Debré, porém, põe os pontos nos is: "Sem dúvida estamos perfeitamente de acôrdo com nosso mestre Comby e nossos colegas em injetar sôro em indivíduos, mesmo apenas suspeitos de paralisia diftérica, que não foram ainda tratados por êsse meio, ou que o foram insuficientemente, ou ainda que apresentam uma reacção de Schick positiva. Mas se, ao contrário, a-pesar-de tratamento conveniente, se declarar a paralisia diftérica, parece-nos inútil então recorrer ao sôro".
Lesné considera dois casos, aliás já citados por Lereboullet e Boulanger-Pilet: ou 1 ) o doente, durante a angina, recebeu sôro suficiente; ou 2) não o recebeu, ou o recebeu insuficientemente. O sôro é útil apenas no segundo caso. Para êsse autor "é difícil ter uma opinião acêrca da ação da soroterapia nas paralisias diftéricas, porque as formas limitadas velopalatinas, as mais frequentes, parece que se curam no mesmo espaço de tempo, quer sejam tratadas, quer não".
Ainda Grenet, ao fazer a asserção há pouco mencionada, põe uma ressalva: "Os reparos aquí mencionados apenas visam as paralisias consecutivas a uma angina diagnosticada e convenientemente tratada. Compreende-se fácilmente que no caso de uma paralisia reveladora de difteria despercebida e não submetida ainda ao sôro, deve-se começar por injetá-lo".
A questão fica, pois, resumida no seguinte. Quando em um paciente que sofreu de difteria, convenientemente tratada pelo sôro, se manifestarem sintomas paralíticos, é inútil, do ponto de vista terapêutico, recorrer de-novo ao sôro. No caso de ficar em dúvida o clínico acêrca da suficiência do medicamento, pode-se ou recorrer à dosagem da antitoxina existente no sangue, ou, o que é mais fácil, verificar se a reação de Schick é positiva. Se o doente, porém, não recebeu sôro, ou porque o diagnóstico de difteria não foi feito, ou porque esta se manifestou de forma frusta; ou se o paciente foi tratado pelo sôro em dose insuficiente: - a opinião universal é que deve ser feito o sôro específico. Os motivos já ficaram explanados no início do trabalho: a paralisia é função da toxina, e esta é neutralizada pela antitoxina específica, uma vez que não se tenha ainda fixado aos centros nervosos (Ramon, Debré e Uhry).
Mas... são êstes mesmos autores que assinalam um fato deveras singular, fato observado desde que se tornou vulgar o emprêgo da reação de Schick: "em indivíduos com paralisias diftéricas, e no momento mesmo em que estas se manifestavam, mostrava-se a reação negativa, isto é, o sangue de tais pacientes continha uma quantidade de antitoxina suficiente para protegê-los contra a difteria. Tal fato, verificado por Armand-Delille, De Lavergne e Zoeller, Lesné e nós mesmo, foi verificado muitas vêzes, ora em convalescentes de difteria tratada pelo sôro, ora em indivíduos que haviam sofrido de difteria discreta ou não percebida. Estudando com Grenet e Guillemot, e em colaboração com Jean Bernard, a taxa de antitoxina do sangue de convalescentes de difteria, assistimos o manifestar-se de paralisias do véu em crianças cujo sôro continha duas, dez, doze, vinte unidades antitoxicas por centímetro cúbico".
Vemos nesta longa citação dois fenômenos do maior interesse: 1.° - a reação de Schick negativa tanto em convalescentes tratados pelo sôro, como em pessoas que tiveram difteria frusta, ou que nem sabiam tê-la tido. 2.° - o aparecimento da paralisia em indivíduos plenamente imunizados. Que concluir dêsses fatos? Do primeiro, que a reação de Schick está longe de poder orientar o clínico, quanto ao estado de imunidade ou não do paciente, pelo menos para fins de nova inoculação de sôro. Do segundo, que a dosagem de antitoxina não dá informes mais seguros do que a reação de Schick. E ainda - o que é sobremodo chocante - que não parece indiscutível a relação causal entre os fenômenos paralíticos e a toxina. Tem-se o direito de supor que não é a toxina diftérica por si só, e tal como se acha no sangue, que determina os fenômenos paralíticos Que conclusão outra se pode tirar se a paralisia se observa em pacientes em cujo sangue há antitoxina mais que suficiente para neutralizar a toxina existente? Ou a antitoxina não neutraliza a toxina, o que sabemos não ser exato; ou a paralisia não depende exclusivamente da toxina.
O trabalho extenso e minucioso de Ramon, Debré e Uhry não respondia de modo irretorquível à minha dúvida acêrca da ação do sôro antidiftérico na paralisia diftérica. Para esclarecer o problema seria útil experimentar o efeito de um sôro inespecífico sôbre a paralisia. Foi o que fiz na primeira oportunidade que se me apresentou.
A 6 de junho de 1935 apresenta-se em meu serviço na Clínica Stevenson a menina Lavínia F., branca, de 9 anos, residente em Itú.
Há uns 14 dias notam os pais estar a voz da criança fortemente nasal. Diz a menina, por sua vez, que desde esta época reflue pelo nariz uma porção dos líquidos que ingere. E uma criança muito viva, dando assim os informes com clareza e relativa segurança. Só teve dor de garganta em abril. E sujeita a anginas, acompanhadas em geral de febre elevada. Vive em casa somente com os pais e uma irmã de 8 anos, que nada apresentaram de anormal até agora. Não há crianças na vizinhança. Freqüenta uma escola pública.
Ao exame, dou com uma paralisia total do véu palatino. Amigdalas pequenas, esclerosas. Nada no nariz. Gânglios cervicais.
A 10 de junho injeto 20 centímetros cúbicos de sôro antiestreptocócico. A 11 a voz inalterada. Nova injeção de igual dose do mesmo sôro. A 12 e a 13, mesma terapêutica. A 14, tendo recebido 80 cc. de sôro antiestreptocócico, o estado é o mesmo, e a criança volta para casa, para vir á minha presença uma semana depois.
Na noite de 15, cerca de sessenta horas portanto depois da última injeção, surge febre elevada e prurido generalizado. A 16 a temperatura chega a 39.° 5. A 18 a criança já está quási bôa. Levanta-se a 19. A 20 começa a família a perceber pequena melhora na voz. De 23 em diante pode se considerar a voz normal.
A 24 volta a criança á minha presença, dando-me o pai os informes acima relatados. Ao exame, noto movimentos nítidos dos pilares á emissão da letra e. Contração em bloco do véu pelo reflexo provocado.
A 1.° de julho torno a examinar a criança, que se acha completamente restabelecida.
Desta observação podemos inferir que a cura se obteve ou 1) por efeito do sôro inespecífico, ou 2) por um choque proteínico, ou 3) por sugestão, ou 4) espontâneamente.
A cura espontânea, lembrada por Lesné, já tem sido observada. Nêste caso porém, a coincidência da cura com a reação sérica, e a cessação quási repentina dos fenômenos paralíticos, tornam muito forçada a admissão da hipótese.
A cura por sugestão não parece também muito plausível, dada a maneira aguda da cessação da paralisia. Aliás, a terapêutica sugestiva encontra grandes dificuldades de emprêgo na criança.
Se a cura, nêste caso, foi produzida pelo sôro, temos que apurar se houve qualquer ação da antitoxina estreptocócica. Minha ideia inicial foi de empregar o sôro antitetânico. Mas as grandes afinidades entre as toxinas do tétano e da difteria poderiam causar maiores dúvidas na explicação da cura. Resolví fazer uso do sôro antiestreptocócico, sem me lembrar de que o estreptococo é, nas anginas, um auxiliar precioso do bacilo diftérico, e que, assim, a cura podia ser atribuída á antitoxina específica. Acho, pois, que devemos experimentar, como sôro inespecífico, o sôro normal, os sôros antipeçonhentos, etc., isto é, sôros em que não entrem toxinas microbianas.
De qualquer sorte, êste caso vem mostrar que, mesmo em doentes que tiveram difteria frusta e que não receberam sôro, é possível a neutralização da toxina, sem se lançar mão da antitoxina específica. A observação, como se vê, põe em cheque as ideias clássicas.
Visa esta comunicação, que não passa de simples nota prévia, solicitar a contribuição dos colegas para a verificação das possibilidades ora aventadas. Na clínica civil são raros, entre nós, os casos de paralisias velopalatinas. Mas os colegas do Hospital de isolamento, como os de S. Sebastião, no Rio, têm á mão farto material para tirar a limpo as hipóteses sugeridas pelo caso ora relatado. Poderá ser verificada não só a ação dos sôros inespecíficos, como a da proteinoterapia. Esta, sobretudo, se dér resultado, será uma arma de muito valor, pela sua simplicidade de aplicação, mas sobretudo, pela sua inocuidade, em relação ás demais terapêuticas: o sôro, as altas doses de estricnina, as aplicações elétricas.
TRABALHOS CITADOS
1 - RAMON, G., DEBRÉ, R. E UHRY, P. - Sur les paralysies diphtériques -.Preste Médicale 42: 2037 (19 Déc.) 1934. 2 - COMBY, J. - Traitement des paralysies diphtériques Buli. et Mém. Soc. Méd. Hôpit. Paris, s. 21 Déc 1934, p. 1757. 3 - ROLLESTON - cit. Comby - Proceedings of the Royal Soc. of Medicine - agosto 1934, p. 1424. 4 - GRENET, H. - A' propos du traitement des paralysies diphtériques par la serothérapie - Buli. et Meim. Soc. Méd. Hôpit. Paris s. 25 Janvier 1935, p. 172. 5 - DEBRÉ, R., RAMON, G. E UHRY, P. - A' propos des paralysies diphtériques - Buli. et Mém. Soc. Med. Hôpit. s. 18 Janvier 1935, p. 116. 6 - LESNÉ - Discussão á comunicação de Debré, Ramon e Uhry - Buli. et Mém. Soc. Méd. Hôpit. Paris s. 18 Janvier 1935, p. 122. 7 - LEREBOULLET, P. E BOULANGER - PILET - Manuel clinique et thérapeutique de la Diphtérie - Baillière - Paris, 1928.
RESUMÉ
DR. P. MANGABEIRA - ALBERNAZ - Paralysies diphtériques et sérum rron-spécifique.
Les paralysies diphhtériques sont determinées par la toxine spécifique et il faut les traiter au moyen de l'antitoxine, elle aussi spécifique. D'après quelques suteurs celle-ci est la thérapeutique de choix dez paralysies. D'après d'autres, on doit employer le sérum antitoxiques seulement dans des cas dans lesquels 1'angine n'a pas été traitée par le sérum, ou dans lesquels la dose de serum a été insuffisante, c'est-à-dire, dans les cas oú toxine n' est pas encore fixée sur la céllule nerveuse. Cette fixation peutêtre démontrée par la réaction de Schick ou par le dosage de 1'antitoxine contenue dans le sang. Mais ces procédés sont loin d'étre infaillibles.
En opposition à ces idées classiques, 1'auteur obtient la guérison d'un cas de paralysie vélo-palatine au moyen du sérum anti-stréptococcique. Il s'agissait d'un enfant de 9 ans, présentant depuis 14 jours des troubles de la voix et de la déglutition. Pas d'angine antérieure. On injecte 40 cc. de sérum anti-stréptococcique par jour, pendant 5 jours. Soixante heures après la dernière injection, se manifestent les symptômes de la maladie du sérum. Pendant 24 heures, fièvre de 39,5. Au 7 e jour après la dernière injection, la voix se montre moins nasonnée et deux jours après elle redevient normale.
L'A. admet 4 hipothèses pour expliquer la guèrison: 1) le hasard; 2) la suggestion; 3) 1'effet du sérum non-spécifique; 4) le choc proteïnique.
Dans cette note préliminaire 1'A. met ces faits en évidence et rappelle l'action de la proteïnothérapie, qui lui a parut l'agent guérisseur du cas rapporté.
(1) Comunicação apresentada á Secção de Oto-rino-laringologia da Associação Paulista de Medicina, em 17 de Outubro de 1935.
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