INTRODUÇÃOA Doença de Menière, afecção da orelha interna que se apresenta clinicamente com hipoacusia flutuante, vertigem e zumbido tendo como substrato fisiopatológico a hidropsia endolinfática, tem sido objeto de numerosos estudos e controvérsias desde sua descrição por Prosper Menière em 18611.
Em 1995, o Comitê de Audição e Equilíbrio da Academia Americana de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço (AAO-HNS) estabeleceu critérios clínicos para o diagnóstico da Doença de Menière com quatro níveis de certeza (certo, definido, provável e possível) e critérios audiológicos2. No entanto, encontramos diversos estudos de métodos objetivos para o diagnóstico da referida doença, destacando-se a eletrococleografia e as emissões otoacústicas3-8.
A eletrococleografia transtimpânica tem sido considerada o padrão ouro no diagnóstico objetivo da hidropsia endolinfática, com sensibilidade de até 83%4, utilizando-se a medida da relação entre a amplitude do potencial de somação e a do potencial de ação (PS/PA), com uso de estímulo tipo click alternado para anular o microfonismo coclear, com valores variando de 0,33 a 0,501, 3, 4, 5, 6, 9, Levine (1992)10, Johansson (1997)5 e Sass (1998)4, 6 estudaram as latências da onda I, utilizando clicks condensados e rarefeitos e encontraram diferença estatisticamente significativa nos pacientes com Doença de Menière em comparação a indivíduos normais ou com outras afecções cocleovestibulares.
O presente estudo tem como objetivo avaliar a latência da onda I na eletrococleografia transtimpânica, utilizando clicks condensados e rarefeitos num grupo de pacientes com diagnóstico clínico de Doença de Menière e a diferença entre tais valores, considerando-se o resultado da relação entre o potencial de somação e o potencial de ação.
MATERIAL E MÉTODOAvaliamos retrospectivamente as fichas clínicas dos pacientes que realizaram o exame de eletrococleografia transtimpânica no Centro de Diagnóstico Otorrinolaringológico de Florianópolis-SC no período de dezembro de 2000 a abril de 2002. Selecionamos 22 pacientes (22 orelhas) com diagnóstico clínico provável de Doença de Menière segundo os critérios da AAO-HNS descritos em literatura2. Os dados pesquisados foram: idade, sexo, média dos limiares da audiometria tonal nas freqüências de 500, 1000, 2000 e 3000 Hz (PTA) na orelha examinada pela eletrococleografia, a relação PS/PA nos traçados utilizando-se clicks alternados, a latência da onda 1 com uso de clicks alternados, condensados e rarefeitos e a diferença entre as latências com uso de clicks condensados e rarefeitos.
Todos os exames de eletrococleografia foram realizados pelo autor utilizando eletrodo tipo agulha como ativo, introduzido através do tímpano previamente anestesiado com fenol a 89% e eletrodos tipo disco na fronte e região mastóidea ipsilateral como referência e terra respectivamente. Os estímulos utilizados foram clicks de polaridade alternada, condensada e rarefeita, de taxa de 11/s, duração de 100 ms, somatória de 1000 traçados e intensidade de 120 dBSPL. Consideramos o valor da relação PS/PA maior ou igual a 0,339 como indicativo de hidropsia endolinfática e utilizamos este parâmetro para separar os pacientes em dois grupos e comparar os resultados dos dados avaliados entre os mesmos.
RESULTADOSAvaliamos 22 pacientes, 16 do sexo feminino e 6 do masculino, onde encontramos 8 (36,4%) pacientes com relação PS/PA maior ou igual a 0,33, definido como grupo 1 e 14 (63,6%) com relação PS/PA menor que 0,33, definido como grupo 2. Tal relação variou de 0,11 a 0,78. A idade média no grupo 1 foi de 46,4 anos e no grupo 2 de 44,4 anos.
As medidas das latências com uso de clicks alternados, rarefeitos e condensados, a diferença entre as latências com uso de clicks condensados e rarefeitos e o PTA com seus respectivos desvios padrão dentro dos dois grupos são apresentados na Tabela 1.
A distribuição dos pacientes em relação ao grau de perda auditiva é apresentada no Gráfico 1.
DISCUSSÃOOs pacientes avaliados apresentaram características semelhantes a de outros estudos. Houve predomínio do sexo feminino e a idade média na faixa dos 44 a 46 anos, assim como no estudo de Levine (1998)3. Já Celestino (1991)11 e Green (1991)12 encontraram idade média de 48 anos: Logo nossa casuística foi representativa com relação a idade e sexo.
Tabela 1. Resultados dos exames audiométricos e latências da onda I de acordo com a relação PS/PA.
Gráfico 1. Distribuição dos Pacientes em Relação ao Grau de Perda Auditiva. PTA: média aritmética das freqüências 500, 1000, 2000 e 3000 Hz
Ao considerarmos a relação PS/PA, obtivemos 36,4% pacientes com valores maiores ou iguais a 0,33, indicando hidropsia endolinfática. A taxa de pacientes com alteração de PS/PA é variável na literatura. Ferrraro (1985)13 encontrou 36 pacientes com alteração dentre 110 com diagnóstico clínico de Doença de Menière (DM) enquanto Goin obteve 62% em seu estudo14. Conlon (2000)1, utilizando o critério de alteração como PS/PA maior ou igual a 0,50, encontrou 30% de pacientes com alteração. Discute-se que a positividade da eletrococleografia no diagnóstico da DM em relação a PS/PA seria maior em estágios iniciais da doença ou na iminência de uma "crise" o que justificaria a diferença nos valores encontrados dentre os autores uma vez que os pacientes não seriam homogêneos nos diversos estudos3. Levine (1998) encontrou maior número de indivíduos com alteração de PS/PA quando havia história de DM de 7 a 12 meses em comparação com os com história mais longa da afecção3.
Sabe-se que a hidropsia endolinfática leva a uma distensão da membrana basilar, alterando a mecânica da transmissão sonora na orelha interna, sendo uma das explicações para a alteração na amplitude dos potenciais de somação e ação à eletrococleografia. Da mesma forma, por haver distensão da membrana basilar, a transmissão da onda sonora viajante com o uso de clicks condensados e rarefeitos ocorreria de maneira distinta, resultando numa diferença de latência da onda I em resposta aos mesmos4. Sass4, 6 e Johansson5 utilizaram clicks condensados e rarefeitos e compararam os resultados entre pacientes com DM e com outras afecções cocleovestibulares ou normais e encontraram aumento na latência da onda I com o uso de click condensado e diferença nos valores da latência da onda I com uso de clicks condensados e rarefeitos no grupo de pacientes com DM em relação aos demais. Levine, em seu estudo, definiu a diferença entre tais latências maior ou a igual a 0,30 ms como indicativa de hidropsia endolinfática10. Em nosso estudo, utilizamos o click condensado e alternado, mas comparamos os resultados entre pacientes com diagnóstico clínico de DM, porém separando os mesmos de acordo com o resultado da relação PS/PA, considerando que quando a mesma fosse maior ou igual a 0,33 sugeriria a presença de hidropsia endolinfática de forma significativa, com a presença das alterações na posição da membrana basilar e na transmissão da onda sonora discutidas acima. Assim poderíamos avaliar se os valores da latência da onda 1 com estímulos diferentes iriam refletir as alterações mecânicas do ducto endolinfático e se os mesmos poderiam ser utilizados como mais um parâmetro no diagnóstico de hidropsia endolinfática. Encontramos que a média da latência da onda I com uso de click condensado foi maior que a da latência com uso de click rarefeito entre os grupos estudados, porém de forma não significativa, ao contrário dos outros autores citados, porém nossa amostra foi pequena. Da mesma forma, a diferença entre tais latências esteve presente no grupo 1 (PS/PA > = 0,33), porém de forma não significativa, sendo menor que o valor de 0,30 ms estabelecido por Levine10, mas próximo ao de 0,23 mms encontrado por Saas5, e mais uma vez acreditamos que o tamanho da amostra teve influência nos resultados. Este valor pode parecer paradoxal uma vez que as latências não apresentaram diferença significativa, porém estas últimas são médias e em alguns pacientes os valores das latências com clicks rarefeitos foram maiores que com clicks condensados, o que refletiu no cálculo da diferença entre os mesmos que considerou o valor absoluto.
Sass, considerando o valor da referida diferença de latências, obteve aumento da sensibilidade da eletrococleografia para o diagnóstico de DM de 83 para 87%, mantendo a especificidade de quase 100%, porém tal dado isoladamente teve 37% de sensibilidade apenas. No entanto, em casos onde houvesse dificuldade na obtenção da relação PS/PA, este dado auxiliaria no diagnóstico, uma vez que sua especificidade é alta4.
Durante a realização dos exames, o acréscimo de traçados utilizando clicks condensados e rarefeitos, além do uso dos clicks alternados, não provocou aumento importante no tempo de exame, sendo de fácil realização e, como discutido, pode trazer dados a mais que possam vir a aumentar a sensibilidade da eletrococleografia na DM.
CONCLUSÕESNos pacientes do grupo 1 os valores da latência da onda I com clicks condensados e a diferença entre as latências com clicks condensados e rarefeitos foi maior que os do grupo 2, porém não foi significativo neste estudo. A avaliação destes parâmetros merece mais estudos para o estabelecimento definitivo de sua importância na prática clínica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Conlon BJ, Gibson WPR. Electrocochleography in the Diagnosis of Meniere's Disease. Acta Otolaryngol 2000; 120(4): 480-3.
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3. Levine S, Margolis RH, Daly KA. Use of Electrocochleography in the Diagnosis of Meniere's Disease. Laryngoscope 1998; 108(7):993-1000.
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14. Goin DW, Staller SJ, Asher DL, Mischke RE. Summating Potential in Meniere's Disease. Laryngoscope 1982; 92(12): 1383-9.
1 Médico Otorrinolaringologista do Hospital Governador Celso Ramos, Ex-Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
2 Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
3 Pós-Graduando (mestrado) da Disciplina de Pneumologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Médico Otorrinolaringologista do Hospital Governador Celso Ramos.
4 Pós-Graduando (mestrado) da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Governador Celso Ramos, Florianópolis-SC.
Trabalho realizado no Centro de Diagnóstico Otorrinolaringológico, Florianópolis-SC.
Endereço para correspondência: Cláudio M. Y. Ikino - Av. Jornalista Rubens de Arruda Ramos, 2560
Centro Florianópolis SC - 88015-700
Tel/fax (0xx48) 224.1111- E-mail: claudioikino@hotmail.com
Artigo recebido em 16 de agosto de 2002. Artigo aceito em 19 de setembro de 2002.