ISSN 1806-9312  
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2995 - Vol. 68 / Edição 6 / Período: Novembro - Dezembro de 2002
Seção: Artigos Originais Páginas: 805 a 810
Fatores cognitivos na reabilitação vocal após laringectomia total
Autor(es):
Katia Nemr 1,
Zélia Ramozzi-Chiarottino 2

Palavras-chave: laringectomias totais, reabilitação, voz esofágica

Keywords: total laryngectomy, rehabilitation, oesophageal voice

Resumo: Objetivo: Este trabalho visou estudar as condições para o aprendizado da voz esofágica como alternativa de reabilitação vocal após laringectomias totais em câncer, através de análise fundamentada na Epistemologia Genética de Jean Piaget. Forma de estudo: Clínico prospectivo. Material e método: Foi realizado um protocolo de atendimento durante um ano (45 sessões), com um grupo de seis pacientes laringectomizados, considerados fracassos absolutos. Resultados: A nova abordagem terapêutica baseada nas imagens que informavam ao paciente o novo processo da produção da voz mostrou-se eficiente para cinco dos pacientes estudados. Todos conseguiram emitir o som esofágico até a nona sessão, mas o fato de emitirem o som mostrou ser condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento da voz fluente. Três pacientes alfabetizados atingiram a fluência antes de completar seis meses de terapia, conseguindo compreender o processo, e percebendo as relações causais dentro do sistema de produção da voz. Dois pacientes analfabetos apresentaram, no final do protocolo, emissões de frases com fluência assistemática. O terceiro paciente analfabeto não conseguiu a voz esofágica e não conseguiu estabelecer as inferências causais necessárias, mantendo a significação do padrão automático da produção de voz laríngea e demonstrando uma incapacidade cognitiva de estabelecer nova significação do mecanismo de produção de voz.

Abstract: Aim: The present study intended to investigate the conditions for learning esophageal voice as a vocal rehabilitation alternative after total laryngectomy in cancer patients, by using the analysis based on the Genetic Epistemology by Jean Piaget. Study design: Clinical prospective. Material and method: We followed a one-year protocol (45 sessions) with a group of six laryngectomized patients who were considered total failures. Results: The new therapeutic approach based on images that informed the patients about the new process of vocal production proved to be efficient in five of the studied subjects. All of them managed to produce the esophageal sound up to the ninth session, but the production of the sound was not sufficient a condition for the production of fluent voice. Three literate patients managed to become fluent before six months of therapy by understanding the process and the causal correlations within the vocal production system. Two illiterate patients produced sentences with non-systematic fluency by the end of the protocol. The third illiterate patient did not manage to learn esophageal voice and did not perceive the necessary causal inferences, maintaining the meaning of the previous automatic pattern of laryngeal voice production and showing cognitive inability to establish a new meaning to the vocal production mechanism.

INTRODUÇÃO

Desde a primeira laringectomia total, realizada por Billroth', em 1873, várias técnicas de reabilitação têm sido desenvolvidas visando suprir a principal seqüela deixada pela retirada cirúrgica da laringe - a perda irreversível da voz laríngea. A importância da voz, na vida de relação dos indivíduos2, 3, 4 e a seqüela deixada pela retirada total da laringe justificam os esforços para que a reabilitação vocal se viabilize.

O eletrolaringe5, as fístulas traqueoesofágicas6-9, as próteses traqueoesofágicas10-15 e a voz esofágica16-19 são as alternativas de reabilitação para estes casos. Diante da impossibilidade de opção pelas próteses traqueoesofágicas, a voz esofágica surge como a melhor alternativa visto ser uma adaptação natural do próprio organismo para a emissão de sons. Contudo, um dos aspectos mais limitantes no desenvolvimento desta voz é o próprio aprendizado pois, além da necessidade de um tempo longo, não existe garantia de sucesso final2, 3, 16-21.

Alguns dos fatores para a ausência de resultados sempre satisfatórios estão sintetizados na resposta ao questionamento de Mahieu16: "Por que alguns pacientes fracassam no desenvolvimento da voz esofágica, enquanto outros dão a impressão que a desenvolvem com pequeno esforço? Obviamente, alguns não querem aprender, mas outros apenas não estão aptos, apesar de boa motivação e inteligência, entre outros fatores..." Esta parece ser a mais intrigante questão enfrentada pela maioria dos terapeutas diante de pacientes que desenvolvem ou não a voz esofágica.

Mas quais seriam os fundamentos para esta falta de aptidão?

Em 1992, estudamos os fatores determinantes da reabilitação vocal do laringectomizado, avaliando, em 64 pacientes, as relações de significância estatística entre 21 variáveis (dados pessoais, da lesão e do tratamento) e a aquisição de voz esofágica. Observamos uma relação positiva quanto ao nível de escolaridade, atendimento fonoaudiológico pré-cirúrgico (com valor prognóstico na reabilitação) e uma relação inversa para a presença de metástase, recidiva ou segunda lesão (Nemr17).

Outra possibilidade para explicar esta falta de aptidão poderia ser a incapacidade de desenvolvimento ou aprimoramento da cognição relacionada à percepção da perda da laringe e do processo de reabilitação vocal. O conhecimento e a compreensão dos fatores relacionados à cirurgia na laringe e à recuperação com a voz esofágica possibilitaria a assimilação de uma nova imagem corporal fornecendo condições de "fazer" a ação, ou seja, de produzir o som esofágico e, posteriormente, compreender o seu mecanismo, abstraindo e automatizando a nova voz com base na diferenciação entre fazer e compreender22. Desta forma, o paciente teria condições de usar a voz esofágica em qualquer situação comunicativa.

A busca da viabilização deste aprendizado e o estabelecimento de objetividade nos critérios prognósticos da reabilitação destes pacientes levou-nos a estudar um aspecto não descrito na literatura - as condições cognitivas dos sujeitos laringectomizados, consolidadas no Modelo Piagetiano do Conhecimento, a Epistemologia Genética22, 23.

OBJETIVO

O objetivo deste trabalho foi desenvolver uma nova abordagem de fonoterapia para o desenvolvimento da voz esofágica, baseada na Epistemologia Genética de Jean Piaget, transformando em sucesso terapêutico um grupo de pacientes considerados fracassos absolutos, isto é, sem nenhuma emissão esofágica após fonoterapia por, no mínimo, dez sessões.

Pela hipótese deste estudo, se o paciente desenvolver a compreensão do processo anterior e posterior à cirurgia de produção vocal e de respiração, a partir de imagens dinâmicas, estaremos estimulando a cognição (seja no seu desenvolvimento, seja no seu aprimoramento), aumentando a chance de desenvolvimento da voz esofágica. Se estes pacientes desenvolverem a voz esofágica, estará demonstrada uma nova abordagem terapêutica, facilitadora para este aprendizado.

CASUÍSTICA E MÉTODO I

Casuística: Para viabilizar este estudo foi formado um grupo de seis pacientes que haviam sido atendidos no Serviço de Fonoaudiologia e no Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia do Hospital Heliópolis desde 1987, após a laringectomia total ou faringolaringectomia e que, nos registros do Serviço, foram classificados como fracassos terapêuticos. O grupo foi constituído com o número de pacientes correspondente à média de pacientes freqüentes às sessões de fonoterapia nos atendimentos grupais da Instituição.

Critérios de inclusão, os pacientes deveriam ter feito o primeiro tratamento fonoaudiológico no Hospital Heliópolis, em grupo, com a mesma profissional (fonoaudióloga autora do presente estudo); deveriam ter participado de, no mínimo, dez sessões de fonoterapia; não poderiam ter emitido nenhum som esofágico. Foram aceitos os casos de laringectomia total e faringolaringectomia, independente de idade, sexo, escolaridade, profissão, data e tipo de cirurgia, reconstrução, esvaziamento cervical e radioterapia.

Foram contactados vários pacientes e o grupo foi constituído com os seis primeiros que se apresentaram, que estavam dentro dos critérios de inclusão e que aceitaram participar do estudo.

Na Tabela 1 encontram-se descritas as características pessoais (sexo, idade, escolaridade e profissão), cirúrgicas e radioterápicas (tipo de cirurgia e ano) e o acompanhamento fonoaudiológico dos pacientes selecionados para o estudo.


Tabela 1. Características dos pacientes selecionados para o estudo

LT = Laringectomia total FL = Faringolaringectomia RXT = Radioterapia Pós-operatória m = meses EC = Esvaziamento cervical B = Bilateral D = Direito E = Esquerdo M = masculino F = feminino


Todos os pacientes eram fumantes até a cirurgia, de 1 a 4 maços por dia. À exceção de P6, os demais pacientes eram usuários de álcool em doses variadas de bebidas destiladas e/ou fermentadas antes da cirurgia. A totalidade dos pacientes apresentava boa alimentação, sem queixas quanto à deglutição de alimentos de qualquer consistência ou qualquer outra alteração em sistema digestivo alto (como dores, refluxo e outros). A avaliação complementar mostrava endoscopia e exames neurológicos normais.

Método: Estes pacientes foram submetidos a um protocolo de atendimento durante um ano com sessões semanais, atendidos pela mesma fonoaudióloga da terapia inicial, sob as mesmas condições e com o estímulo das mesmas técnicas de introdução de ar no esôfago: método da deglutição de ar24 e método de injeção de ar (ou método Holandês)25 com suas duas variações: injeção de ar por pressão glosso-faríngeca e por emissão consonantal (ou fonemas plosivos).

A abordagem terapêutica proposta neste protocolo visou estimular a compreensão das relações de significações no processo vocal anterior à cirurgia e atual, através de imagens com recursos visuais de figuras e slides dinâmicos, para que os pacientes conseguissem assimilar e incorporar em seu corpo a nova significação do mecanismo de voz. O pressuposto teórico estabelecido neste estudo tem por base a diferenciação conceitual que Piaget faz entre fazer e compreende22: a partir da assimilação da nova imagem corporal (anatômica, o paciente desenvolveria condições de "fazer" a ação (ou seja, o som esofágico) e, posteriormente, compreender o mecanismo da voz esofágica, abstraindo e automatizando a nova voz (ou seja, utilizar a voz esofágica com fluência).

Durante as sessões semanais em grupo (duração média de uma hora) foram apresentadas as imagens através de esquemas e figuras referentes aos mecanismos normais de respiração, alimentação e fonação. Na sequência eram apresentadas figuras da localização da laringe, do tumor, da retirada da laringe, das alterações anátomo-fisiológicas determinadas pela cirurgia e dos mecanismos de alimentação com e sem a sonda naso-gástrica após a cirurgia. Eram apresentados também os esquemas referentes à respiração e à produção de voz esofágica com as técnicas de introdução de ar no esôfago, descritas anteriormente.

As sessões eram divididas em três partes: as figuras eram mostradas no início de cada sessão e repetidas conforme o interesse e a necessidade do grupo. Na segunda parte era realizado o treino da voz esofágica com o estímulo às três técnicas e/ou àquela que o paciente apresentasse mais facilidade. A última parte era reservada aos questionamentos sobre as técnicas ou sobre qualquer outro assunto de interesse do grupo (como fumo e álcool) e considerações sobre o aprendizado da voz (as dificuldades e facilidades de cada um). Todos os participantes foram estimulados a dar continuidade aos exercícios em casa.

Os dados eram anotados ao final de cada sessão quanto ao aproveitamento de cada paciente: se compreenderam as imagens apresentadas, quais as dúvidas apontadas, se pediram para repeti-las, se emitiram o som esofágico ou a voz esofágica fluente (gradualmente a evolução de palavras monossílabas, dissílabas e trissílabas; frases curtas e frases longas com fluência assistemática e sistemática) e as observações mais relevantes apresentadas pelos pacientes quanto às questões ligadas à comunicação e à cognição.

Os pacientes analfabetos, durante os períodos em que falavam sem voz, eram compreendidos pela terapeuta através da leitura labial e gestual, sendo sempre reforçada a necessidade de uma boa articulação para facilitar a compreensão da mensagem. A mensagem era sempre repetida verbalmente pela fonoaudióloga para garantir a correta compreensão.

O projeto de pesquisa e o Consentimento Livre e Esclarecido foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Complexo Hospitalar Heliópolis.

RESULTADOS

Foram realizadas 45 sessões no período de um ano.

Todos os pacientes conseguiram emitir o som esofágico até a nona sessão.

Os três pacientes alfabetizados (P1, P3 e P5) conseguiram a voz esofágica fluente antes de completar seis meses de terapia, conseguindo compreender o processo e perceber as relações causais dentro do sistema de produção da voz.
Dois pacientes analfabetos (P2 e P4) levaram quase um ano para estabelecer as relações causais necessárias ao aprendizado. O desenvolvimento cognitivo foi lento e gradual; a partir da 30ª sessão conseguiram emitir o som pelos três métodos e, no final do protocolo, estavam em fase de emissão de frases com fluência assistemática.

O terceiro paciente analfabeto (P6) não desenvolveu a voz esofágica. Ao final do protocolo ele permanecia com emissões assistemáticas do som esofágico pelo método da injeção de ar (pelo fonema plosivo /p/). Durante as 45 sessões, P6 não conseguiu estabelecer as inferências causais necessárias, mantendo a significação do padrão automático da produção de voz laríngea e demonstrando uma incapacidade cognitiva de estabelecer nova significação do mecanismo de produção dae voz e assimilar a nova imagem corporal.

DISCUSSÃO

O fato de todos os pacientes conseguirem emitir o som esofágico até a nona sessão confirma a padronização de dez sessões, em média, para a emissão do som esofágico conforme descrito por nós anteriormente17. Contudo, a emissão de som revelou-se condição necessária mas não suficiente para o desenvolvimento da voz fluente.

Os três pacientes alfabetizados que atingiram a fluência antes de completar seis meses de terapia conseguiram compreender o processo e perceber as relações causais dentro do sistema de produção da voz. Estes pacientes conseguiram até a 92 sessão fazer e compreender o novo mecanismo de produção de voz, conforme preconizado por Piaget22. Esta relação da voz esofágica com a escolaridade já havia sido salientado anteriormente por nós anteriormente, tendo sido considerado um dos fatores determinantes da reabilitação vocal do laringectomizado com significância estatística (Nemr17). Como a alfabetização só é possível a partir da representação mental da palavra com implicação de que o indivíduo tenha percorrido etapas do desenvolvimento endógeno e exógeno, os pacientes alfabetizados mostraram ter percorrido este trajeto cognitivo.

A primeira abordagem terapêutica, que teve em sua base o estímulo verbal e o auxílio de imagens estáticas, com apresentação de aspectos anatômicos básicos antes e após a cirurgia, não forneceu subsídios suficientes para um sucesso no desenvolvimento da voz esofágica e os pacientes não conseguiram emissão sonora, caracterizando uma falha terapêutica.

No presente estudo o uso das imagens dinâmicas tornou possível que cinco pacientes desenvolvessem a cognição compreendendo as condições anatômicas modificadas pela cirurgia e os mecanismos de alimentação, respiração, fala e voz, antes e após a retirada da laringe. Esta abordagem mostrou-se bastante eficiente e fundamental para que o paciente adquirisse a conscientização, pré-requisito para a compreensão do novo mecanismo de voz.

Devemos ressaltar, contudo, a diferença observada entre os pacientes alfabetizados e os analfabetos: os três pacientes alfabetizados necessitaram de um tempo mais curto (menos de seis meses) para compreender e realizar os procedimentos propostos quando comparados com dois pacientes analfabetos, os quais levaram quase um ano para estabelecer as relações causais necessárias ao aprendizado.

A execução de exercícios em casa, realizados pelos pacientes com melhor aproveitamento (P1, P3 e P5) teve uma importância fundamental pois a repetição da ação auxilia a compreensão e possibilita a repetição desta ação em pensamento (compreensão com abstração da ação). Ao contrário, dois dos pacientes com maior dificuldade (P2 e P4) relataram que treinavam pouco ou nada em casa.

Paralelamente à questão da repetição dos exercícios fora das sessões está a necessidade observada nos pacientes analfabetos de repetição das informações durante as sessões. Os dois pacientes analfabetos solicitavam que as orientações e, muitas vezes, as figuras dinâmicas, fossem apresentadas repetidamente, quase sempre na mesma sessão. A necessidade de repetição das informações, tão claramente percebida nesses pacientes, parece reforçar a citação de Bertelli19: "Aprendera falar pelo esôfago trata-se de um hábito, um condicionamento".

Outro aspecto importante foi a lentidão com que os pacientes analfabetos assimilavam e acomodavam um novo conhecimento. Eles adaptavam-se ao novo conhecimento gradativamente com um tempo médio de oito sessões para cada novo avanço. Este avanço lento, mas gradual, é justificado em Piaget22 no processo da tomada de consciência e nos efeitos resultantes da conceituação sobre a ação.

As dificuldades apresentadas pelos pacientes analfabetos podem ser explicadas, com base na Epistemologia Genética de Jean Piaget, pelo empobrecimento do desenvolvimento cognitivo endógeno. Isto porque os indivíduos que não prosseguem com as representações do real além da linguagem falada e não são estimulados à representação escrita da palavra, não tem seus sistemas de significação enriquecidos. Estes mesmos pacientes, ao final do protocolo, apresentavam emissões de frases com fluência assistemática.

Esta dificuldade em incorporar uma nova significação da imagem corporal após a cirurgia e tomar consciência do novo mecanismo de voz, assimilando-o e acomodando-o, pode ser analogamente comparada à reeducação de uma criança, em que o trabalho deve ser iniciado primeiramente pelo concreto, a partir de objetos, brinquedos, etc. e depois pelas imagens. A abstração, a conceituação verbal e escrita são passos posteriores e que requerem mais preparo e desenvolvimento cognitivo. Similarmente, podemos afirmar que os pacientes laringectomizados necessitam ser estimulados pelas imagens (reforçando o aspecto concreto, palpável), para que sejam abertas possibilidades de uma nova significação da imagem corporal.

O terceiro paciente analfabeto (P6), que não conseguiu estabelecer as inferências causais necessárias, manteve a significação do padrão automático da produção de voz laríngea, demonstrando uma incapacidade cognitiva de estabelecer nova significação do mecanismo de produção de voz. Este paciente mostrou-se confuso até o final do protocolo (era o único paciente que vinha acompanhado, porque, segundo o acompanhante, não sabia andar de ônibus sozinho). Associado a isso possuía uma história de vida que pode explicar, parcialmente, essa incapacidade - nunca trabalhou, não se casou e nem estudou. Percebe-se que, mesmo que o paciente tivesse todo seu aspecto endógeno em condições, o componente exógeno foi limitado, não permitindo o desenvolvimento suficiente das estruturas mentais23. Ao longo do protocolo, este paciente não apresentou como os outros dois analfabetos a mesma evolução, lenta, porém gradativa, sendo observada uma clara limitação nas situações de compreensão das figuras dinâmicas durante o aprendizado. Continuou, até o final, emitindo o som esofágico unicamente por um método (injeção de ar por fonemas plosivos). Vale ressaltar que este paciente detinha as melhores condições orgânicas proporcionadas por uma laringectomia total simples sem radioterapia. Retomando neste momento a colocação feita por Mahieu16, parece que este paciente, apesar da motivação presente e de "querer" desenvolver a voz, não está apto, já que lhe falta cognição para compreender todo o processo. Ele conseguiu realizar a ação, mas não conseguiu incorporar esta ação como um conhecimento adquirido e automatizado. A inferência causal necessária não se estabeleceu e o paciente permaneceu com a causalidade anterior, tendo afirmado na penúltima sessão: "Se as pessoas falam sem buraco no pescoço e eu tenho o buraco, então eu não posso falar".

Devemos retomar, neste momento uma questão importante: o estudo das condições cognitivas do indivíduo pode explicar grande parte dos fracassos terapêuticos, sem excluir a participação dos aspectos fisiológicos e anatômicos, psicológicos e sociais. Isto porque há que se considerar que problemas' relacionados aos aspectos fisiológicos e anatômicos, quando presentes, podem explicar o fracasso terapêutico de maneira inequívoca ou mesmo inviabilizar qualquer tentativa de reabilitação pela voz esofágica, como a presença de alterações no esfíncter esofágico ou no segmento faringo-esofágico que, por si só impossibilitam a introdução de ar no esôfago ou o seu retorno como voz. Por outro lado, alterações de ordem psicológica, emocional e/ ou social podem contribuir para a não reabilitação, mas não explicam o fenômeno; apenas interpretam um dado momento vivido pelo paciente.

Novos estudos devem ser feitos para que esta questão cognitiva possa ser melhor analisada, possibilitando, talvez, a partir de um minimental, estabelecer previamente à cirurgia um prognóstico da reabilitação vocal, auxiliando equipe e paciente quanto às melhores opções. Respeitar os princípios bioéticos, buscando novos caminhos que garantam beneficência, não maleficência, autonomia e justiça é o sentido pleno da reabilitação vocal do laringectomizado.

CONCLUSÕES

Pelos resultados obtidos neste estudo, é possível concluir que:

1. A abordagem terapêutica fundamentada em imagens, proporcionando o estabelecimento de uma nova significação corporal dos pacientes laringectomizados totais, foi eficiente para cinco dos seis pacientes estudados;

2. Todos os indivíduos conseguiram emissão de som esofágico em até nove sessões;

3. A emissão do som esofágico mostrou ser condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento "da voz esofágica fluente;

4. A alfabetização mostrou ter grande importância na reabilitação vocal do laringectomizado.

AGRADECIMENTOS

Nossos agradecimentos aos Professores Doutores Abrão Rapoport, Josias de Andrade Sobrinho e Odilon Vitor Porto Denardin pela ajuda na realização desse trabalho.

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1 Fonoaudióloga Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, docente do Curso de Pós Graduação em Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis - HOSPHEL.
2 Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Serviço de Fonoaudiologia e Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia do Hospital Heliópolis - HOSPHEL - São Paulo - SP - Brasil
Endereço para correspondência: Katia Nemr Rua Cincinato Braga, 463 ap. 82 São Paulo SP - 01333-011
Tel. 9996.7233-E-mail: knemr@uol.com.br
Artigo recebido em 12 de março de 2002. Artigo aceito em 10 de setembro de 2002.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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