No tráto diario dos que lhe vão pedir lenitivo para seus males, vê-se o clinico, em determinadas ocasiões, diante de quadros morbidos totalmente desconhecidos, cuja solução terapêutica somente o tino profissional e o bom senso fazem encaminhar com acêrto. Semelhante situação foi a que experimentei, ao deparar, certa vez, um caso de apoplexia do véu do paladar, cuja narração se segue.
Benjamin S., branco, com 19 anos, solteiro, residente á Av. Cons. Nebias, 806, procurou meu serviço clinico, á tarde do dia 28. 10. 1930, queixando-se de que, duas horas antes, começára a sentir, na garganta, picadas localizadas á direita, como se aí houvésse um corpo estranho. Estando, na ocasião, a fazer bastante calor, ingeríra uma laranjada gelada, supondo que este refrigerante lhe trouxesse alivio áquela incomoda sensação. Sentíra-se incontinenti pior, tendo a impressão de que havia catárro preso á garganta e que se não eliminava com os esforços feitos. A. voz tornára-se nasalada. Não acusava dôr, a não ser muito ligeiramente, quando deglutia saliva, o que fazia com certa dificuldade. Gargarejára, logo que piorára, com Gorgesan (1 colher de chá em meio copo d'agua). Não obtivera melhoras. O paciente em apreço, quando criança, sofrêra crises frequentes de angina; entretanto, havia uns seis anos que não fôra mais acometido de qualquer afecção de garganta.
Inspeccionando a oro-faringe, notei para logo acentuado edema mole, translucido, de toda a metade direita do véu do paladar, abrangendo a uvula e a região amigdaliana, principalmente ao nível da dobra de His, achando-se os movimentos do véu completamente tolhidos naquelle segmento. Outrosim, destacava-se uma pequena hemorragía submucosa localizada na comissura dos dois pilares. As demais regiões da circunvizinhança apresentavam-se sem alteração. Apliquei-lhe, em seguida, demorado banho de vapor com o aparelho de José Lourenço. Prescrevi-lhe, para usar em casa, gargarejos com infusão de malva alternadamente com infusão de coca adrenalinada a 1 %, diluidos tais infusos em partes iguais de agua fervida quente. Ás 8 horas da noite, sentia-se o doente muito melhor, podendo tomar alimentos liquidos e solidos sem dificuldade. Voltou ao consultorio, no dia seguinte, pela manhã. Estava quasi bom: o edema da região amigdaliana desaparecêra por completo e o da uvula diminuíra a ponto de estar quasi desaparecido. O véu do paladar, em sua metade direita, mostrava-se apenas discretamente paresiado. O paciente acusava ainda ligeira sensação de grossura (sic) no fundo da boca. Repeti-lhe o curativo da véspera: banho de vapor. Á tarde desse dia, a regressão do edema era completa: não se percebia mais o menor indicio do mesmo. O véu movia-se livremente. O paciente considerava-se interiamente restabelecido, sem nada que o molestasse. Somente a equimose retro-aludida persistia discretamente. Fiz-lhe ainda, apesar do bem estar , outro banho de vapor. No dia imediato, sem sentir o mais leve incomodo na garganta e sem que se notasse qualquer anormalidade na mesma, para fóra da diminuta mancha equimótica a esvair-se, teve alta.
Não encontrando descrita, nos manuais da especialidade, nenhuma afecção a que podesse filiar o caso que acabo de narrar, comuniquei-o a meu coléga e amigo Mangabeira-Albernaz, de Campinas, o qual, trocando idéas a respeito comigo, prontamente o rotulou de "apoplexia do véu do paladar", confirmando-me não haver, de facto, nenhuma referencia a este fenomeno morbido nos compendios e tratados de oto-nino-laringología. Apenas lhe chegaram ao conhecimento alguns raros casos publicados em revistas francesas, e tivéra oportunidade de observar pessoalmente um doente acometido desta afecção, cuja historia clinica me oferecia e que segue transcrita.
Alvaro A., branco, português, casado, negociante, com 35 anos, residente em Campinas. Apresentou-se á consulta em 3 de Junho de 1927, queixando-se de dôr de garganta. Declarou que no dia anterior, á noite, sentia-se completamente bem, quando, após ter escarrado com certa violencia, teve a impressão de que algo se rompera na garganta, cuspindo em seguida um pouco de sangue. Daí em diante, toda vez que escarrava, sentia dôr.
Ao exame verificou-se logo uma verdadeira equimóse da metade esquerda do véu. Havia intensa hiperemía da ponta da uvula, com uma placa inflamatoria discreta. Pela laringoscopia nada se encontrou de anormal. A rinoscopía posterior revelou catarro amarélo espesso muito aderente á parede faringéa e á face posterior do véu.
Como tratamento, usou o paciente de uma pomada rinologica com mentól e resorcina e gargarejos com fenosalil e tanino, ficando curado em dois ou três dias, ao que depois informou.
Compulsando as revistas da especialidade de que disponho, apurei quasi duas duzias de casos, mundialmente publicados, sobre os quais tecerei comentarios, estabelecendo por fim comparações com o que me foi dado observar.
De etio-patogenía ainda obscura, a apoplexia do véu do paladar, que tambem recebeu as designações de "molestia de Bosviel", "edema apopletico do vestibulo faringêo" e "apoplexia da uvula", caracteriza-se clinicamente pelo aparecimento subito de uma sensação de obstaculo no fundo da boca, associada por vezes a fenomenos dolorosos espontaneos ou provocados pelos movimentos de deglutição, e em alguns casos acompanhada de embaraço á respiração. Sobrevinda ora durante o sono, ora, o que aliás é mais frequente, após um esforço relativamente violento da musculatura da oro-faringe, é produzida a afecção em apreço pela ruptura de um vaso sub-mucoso do véu do paladar, com a consequente formação de hematoma, de vulto proporcional ao calibre daquele, associado a um edema da região atingida, o qual tambem varia de dimensões e aspecto, segundo os casos. De evolução rapida, muitas vezes só é surpreendida pelo especialista, já em fase de acentuada regressão. Reabsorve-se espontaneamente, com frequencia, o sangue extravasado. Em certos individuos, porém, o hematoma se rompe e o sangue é eliminado sob a forma de escarros. Manifestam-se, em determinados casos, recidivas, condicionadas por alterações vasculares ou perturbações circulatorias preexistentes. Tem sido observada quasi sempre em pessoas que já passaram dos 35 anos, cujo aparelho circulatorio apresenta os estigmas de fragilidade, proprios da ação da idade. Entretanto, por duas vezes foi verificada em individuos de 28 anos, em pleno viço de saúde (observações de M. Yoel (16), e F. J. Collet, J. Charachon, R. Millet, (20). O prognostico é constantemente favoravel: cura rapida, em media, no prazo de 2 a 3 dias, sem tratamento especial.
O Prof. Escat compara a apoplexía do véu do paladar á hemorragia sub-mucosa da corda vocal, provocada durante a distensão violenta desta, em certas emergencias, como o canto (coup de fouet laringeo de Moure e Garel), e ao coup de fauet da perna, em consequencia da contração brusca dos musculos extensores do pé. O prof. Worms estabelece analogia entre o acidente morbido de que estou tratando, e a hemorragia sub-conjunctival espontanea. (apud M. Yoel).
Maurice Yoel, de Atênas, publicando nos "Annales d'OtoLaryngologie", n.º 12, de Dezembro de 1934, sua segunda observação de apoplexia da uvula (a primeira veiu a lume nos "Archives Internationales de Laryngologie", n.º de Maio de 1928) dá conta de suas pesquisas bibliograficas sobre o assunto, apresentando os dados mais completos até o presente. Segundo apurou aquele especialista, deve-se a primeira descrição da afecção em jogo a Garin, cujo trabalho, subordinado á epígrafe "Apoplexie de la luette", foi estampado na "Gaz. des Hôpitaux de Paris", em 1853, XXVI, pag. 19. No ano imediato, Spengler, na Alemanha, dava á publicidade um novo caso, inserto na "Deutsche Klinik", Berlin 1854, VI p. 7. Muito tempo depois, novas comunicações foram feitas sobre a materia, por Le Jeune (3), de Boulogne-sur-Mer, em 1891, Ripault (4), em 1898 (citado por Velloso de Pinho (19) , e Fabre e Gibert (5), em 1910. Entretanto, como friza M. Yoel, estes estudos passaram despercebidos, e os autores que trataram do assunto mais recentemente, entre outros, Pierre de Troyes e Mayersohn, de Bucarest, atribuem a Bosviel a prioridade da descrição, exposta na comunicação por este apresentada á Sociedade de Oto-rino-laringologia de Paris, na sessão de 10 de Novembro de 1911, e publicada nos "Annales des Maladies de 1'Oreille", t. II, pag. 125, sob o titulo "Apoplexie d'un pilier amygdalien". E pelos observadores contemporaneos foi crismada a afecção, injustamente, de molestiá de Bosviel. Inventariando, pela ordem cronologica, os casos de que tenho conhecimento, posso dispô-los da seguinte forma: Garin (1853), Spengler (1854), Le Jeune (1891), Ripault (1898), Fabre e Gibert (1910), Bosviel (1911), Gilbert (1912), Escat (1923 - 2 casos), Engel (1923), Garel e Gignoux (1925) Mayersohn (1926, 1928 - 2 casos), M.Yoel 1928, 1934 - 2 casos), Pierre (1928), Borroni (1928), Predescu-Rion (1928), K. Bernfeld (1930), Velloso de Pinho (1933 - 3 casos) e Collet, Charachon e R. Millet (1934).
Como se acaba de vêr, as observações publicadas até a presente perfazem a soma de vinte e três, que, adicionadas ás duas que apresento, totalizam duas duzias e mais uma. Não é, por conseguinte, avultado o numero de casos devidamente estudados. Alguns autores, como Escat, capitulam a afecção de raridade clinica; outros porém, como Mayersohn, tomando em consideração o caráter fugaz dos sintomas incomodativos e a evolução efêmera e benigna da enfermidade, o que leva muitos pacientes a não procurarem o clinico, acreditam que ela seja mais frequente do que geralmente se pensa. De minha parte, balanceando o volumoso acervo de casos que constituem meu tirocinio de dez anos de clinica especializada, inclino-me a pensar que a razão está no meio termo: nem excecional, nem vulgar.
Encerrando meus comentarios, devo salientar a particularidade de ser meu observado o mais jovem de quantos tenho noticia e de não haver sofrido recidiva até a presente data, decorridos que são quasi cinco anos.
Julgo ser a minha publicação a primeira que se faz no Brasil sobre tal assunto, e aproveito o ensejo para chamar a atenção dos oto-rino-laringologistas brasileiros para a aludida afecção.
INDICE BIBLIOGRÁFICO ORGANIZADO POR M. YOEL E AMPLIADO POR E. FALCÃO
1 - GARIN - "Apoplexie de la luette" (Gaz. dez Hôpitaux de Paris, 1853, XXVI, p. 19). 2 - SPENGLER - "Apoplexia uvulae" (Deutsche Klinik, Berlin 1854, VI p. 7). 3 - LE JEUNE - "Un cas d'hémorragie aigue (apoplexie) de la luette" (Gaz. des Hôpitaux de Paris, 1891, LXIV, p. 1300). 4 - RIPAUT - "Un cas d'hématome spontané de la luette" ("An. des Mal . de l'Oreille, du Nez, etc. 1898 e Rev. Heb. de Laryngol et de Rhinol, 1898). 5- FABRE e GIBERT - "Un nouveau cas d'apoplexie de la luette" (Centre méd. et pharm., Gannat, 1910-1911, XVI, p. 359). 6 - GILBERT. - "Apoplexia uvulae" (Journal de phys. méd. appl., mai 1912). 7 - BOSVIEL - "Apoplexie d'un pilier amygdalien" (Société d'otorhino-laryngologie de Paris, séance du 10 Nov. 1911 e An. des Mal. de 1'Oreille, t. II, p. 125). 8 - ESCAT - "Deux cas d'apoplexie du voile du palais" - Com. à la Soc. de Med. de Toulouse, 1923. Presse Médicale, 1923. Oto-rhino-laryngologie internationale, juin 1923.. - "Arch. Intern. de Lar. 1924, p. 1007). 9- R. ENGEL - "Un nouveau cas d'apoplexie du voile du palais" - Com. à la Soc. d'Otol. et de Rhinol. de Paris, 1923. Presse Médicale, 1923. - Oto-rhino-laryngologie internationale novembre 1923. - Arch. Intern. de Lar., 1924, p. 196). 10 - WORMS - Discussion à la Société de Laryngologie de Paris. Séance du 9 novembre 1923. 11- GAREL e GIGNOUX - "L'apoplexie du voile du palais", (Journal de Médicine de Lyon, 20 aout 1925 - Zentblt. f. Ohrenheilk. 8: 246, 1926. - An. des Maladies de l'Oreille, du Nez, etc. 1925, pg. 1287. 12 - L. MAYERSOHN - "Apoplexie du voile du palais" (Arch. Intern. de Laryngologie, Paris, 1926, pg. 447). 13 - L. MAYERSOHN - "Encore un cas d'affection de Bosviel" (Arch. Int. de Laryngologie, Paris, 1927, pg. 341). 14 - PIERRE (De Troyes) - "Un cas d'apoplexie du voile du palais" Com. à Ia Société de Laryngologie de Paris, séance du 6 juillet 1927 - An. des Maladies de 1'Oreille, du Nez, etc. 1928, pg. 68 - Arch. lntern. de Laryngologie, Paris, 1928, pg. 81). 15 - PRÉDESCU-RION - "Oedeme apoplectique du vestibule pharyngien" (Arch. lntern. de Laryngologie, Paris, 1928, pg. 225). 16 - M. YOEL (d'Athenes) - "Un cas d'apoplexie de la luette" (Arch. Intern. de Laryngologie, Paris, 1928, pg. 590). 17 - C. BORRONI - "Un caso di apoplessia dal velo palatino" - Bolet. degli Specialitá Med. chir. N.° 2, 1928, pg. 334 - Zentblt. für Ohrenheilkunde. 14, 612, 1930). 18 - K. BERNFELD (de Jérusalem) - "Les infliammations de Ia luette" - (Monatsschft. für Ohrenheilk. und Laryngo-Rhinologie, 1930). 19 - VELLOSO DE PINHO (de Portugal) - "Les apoplexies du voile du palais" (An. d'Oto-laryngologie, Paris, juin 1933). 20 - COLLET, CHARACHON et MILLET - "Apoplexia de Ia luette" Com. à Ia Société d'Oto-rhino-laryngologie de Lyon, séance du 8 janvier 1934 - An. d'Oto-laryngologie, Paria, mai 1934). 21 - M. YOEL (d'Athenes) - "Sur l'apoplexie de la luette" (An. d'Oto-laryngologie, Paris, décembre 1934).
ZUSAMMENFASSUNG
DR. EDGARD DE CERQUEIRA FALCÃO - "Apoplexia des Gaumensegels".
Nachdem der Verfasser über zwei Beobachtungen von Apoplexia des Gaumensegels berichtet, macht er einige Betrachtungen über dia klinischen Eigenschaften der Affektion und hebt die hauptsaechlichen Merkmale hervor. Darnach gibt er Aufschluss über dir Haeuftigkeit des Vorkommens derselben und ist es ihm gelungen, dreiundzwanzig in der Literatur veroeffentlichte Beobachtungen zu sammeln.
Er erklaert, dass die Krankheit im Jahre 1853 von Garin veroeffentlicht wurche und dass es auf diese Weise eine Ungerechtigkeit ist, der Affektion den Namen Bosviel Krankheit zu geben, wie es dia modernen Verfasser tun, denn die Beobachtung dieses Verfassers schon 1911 veroéffentlicht.
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