As destruições produzidas pelas otites colesteatomatosas são bem conhecidas. Em função destas, por vezes a anatomia do ouvido médio e da mastoide está completamente alterada. Não raro são encontradas fístulas labirínticas, entretanto, a invasão do labirinto posterior e da cóclea não tem sido relatada com freqüência.
Observação
I.B.G., 23 anos, masculino, branco, natural do Paraná. História clínica iniciada há 6 meses com o aparecimento de paralisia facial esquerda. Antecedentes pessoais: desde infância tem episódios de otorréia fétida no ouvido esquerdo. Acha que nunca ouviu bem do lado esquerdo.
Exame Neuro Otorrinolaringológico
Paralisia Facial periférica esquerda com alteração dos feixes: motor, sensorial, sensitivo e parassimpático, denotando lesão na altura ou acima do gânglio gemiculado. Presença de nistagmo espontâneo, horizonto rotatório para a direita que se acentua na olhada lateral direita. Otoscopia esquerda: perfuração total da membrana timpânica, destruição da parede posterior do conduto auditivo externo (radical expontânea), presença de massa esbranquiçada com aspecto de lâminas epidérmicas preenchendo a cavidade. Função auditiva: Ouvido esquerdo: cofose.
Ouvido direito, boca e fossas nasais: normais.
Dois fatos principalmente chamaram nossa atenção: a presença de uma surdez total e a lesão do nervo facial localizada acima do gânglio geniculado.
Exames Complementares
Exame Eletromiográfico (Agulhas monopolares). Foram testados os músculos frontais e orbiculares da boca. A esquerda: ausência de potenciais de ação voluntários, ondas positivas em repouso e abundantes fibrilações. A direita: potenciais de ação com voltagem média de 1500 V e duração de 5/6 ms. Ausência de potenciais em repouso. Conclusão: denervação total dos músculos testados, no território do nervo facial do lado esquerdo.
Radiografia de Crânio: (incidências - Transorbitária, Towne, Chaussé III, Stenvers, Mayer e Schuller.
Ouvido esquerdo: distúrbio de pneumatização com desaparecimento de todo o sistema celular do rochedo e da mastóide; extensa destruição (imagem osteolítica) comprometendo a mastóide, o antro e toda a cavidade labiríntica; destruição da parede posterior do conduto auditivo externo; parede lateral do ático e cadeia ossicular. Erosão do bloco labiríntico até a porção fundica do conduto auditivo interno. Adelgaçamento do tegmen timpani.
Ouvido direito: normal.
Conclusão: Otopetromastoidite crônica, com aspecto radiológico sugerindo presença de colesteatoma gigante, lado esquerdo.
Evolução per operatória: Encontramos volumosa massa colesteatomatosa que após removida estabeleceu comunicação entre o fundo do meato acústico interno e o exterior. Necrose do nervo facial desde a emergência do conduto auditivo interno até o forámen estilomastoideu. A necessidade de abrir a duramater em campo infectado, para buscar a porção proximal do nervo facial, contra-indicou a enxertia.
Anatomia Patológica: Macroscopia: A peça consta de múltiplos fragmentos de material pastoso amarelado e tecidos avermelhados friáveis, medindo o conjunto cerca de 8 ml submetidos a vários cortes representativos. Microscopia: Os cortes mostram fragmentos de tecido conjuntivo fibroso, revestidos por um epitélio pavimentoso estratificado, sem atipias e com abundante queratinização. Neste tecido existem estruturas glanduliformes revestidas por uma ou mais camadas epiteliais cuboides ou com tendências a pavimentosas. O conjunto é sede de hemorragia recente, focos de calcificação e denso infiltrado inflamatório, predominantemente linfo plasmocitário. Acompanha ainda material em quantidade abundante de escamas córneas. Diagnóstico: Colesteatoma.
Evolução pós operatória: O paciente retornou com 30 dias de evolução para observação pós cirúrgica de rotina e a otoscopia revelou tecido de granulação em toda a cavidade. Noventa dias depois retornou com queixas de cefaléia fronto-parietal e vômitos incoercíveis em jato. O exame clínico sugeriu a presença de abcesso temporal. Os exames de liquor, encefalografia e arteriografia carotidiana reforçaram o diagnóstico clínico. Uma craniotomia temporal exploradora evidenciou cisto intradural e extracerebral na região correspondente ao ato cirúrgico anterior, o qual drenou cerca de 13 ml de líquido cítrico não infectado, rico em proteína. A mesma região apresentava-se com uma neo formação vascular abundante. Decorridos um ano e oito meses o paciente encontra-se bem necessitando dos cuidados próprios das cavidades radicais e de cirurgia reparadora da sequela facial.
DISCUSSÃO
Destruições produzidas por colesteatomas adquiridos primários ou secundários são de achado comum na cirurgia otológica. Estas situam-se ao nível do ouvido médio e da mastoide e por vezes o colesteatoma chega a erosar a parede do canal semicircular lateral, produzindo uma fístula labiríntica e também não raramente invade o sistema celular posterior da pirâmide petrosa sem contudo provocar lesão na cápsula ótica. A destruição da porção petrosa do temporal não é referida na literatura como conseqüente a colesteatomas adquiridos e sim a colesteatomas chamados congênitos ou epidermóides.1 Tais colesteatomas podem ter origem no ouvido médio, na apósfise mastóide ou na porção petrosa do temporal? Acredita-se serem eles formados a partir de restos embrionários de células epidérmicas. O cisto epidérmico desenvolve-se provocando erosão da estrutura óssea adjacente enquanto que no seu interior ocorre descamação de epitélio escamoso estratificado. Contrariamente ao colesteatoma adquirido que se infecta com facilidade, o congênito constitue-se em massa de epitélio escamoso queratinizado, seco e sem odor desde que não esteja em contato com o meio exterior. O aspecto histológico não diferencia o colesteatoma congênito do adquirido. Tenha o colesteatoma congênito origem na cavidade timpânica, na mastóide ou na porção petrosa; uma vez que a membrana timpânica e a parede posterior do conduto auditivo externo sejam por ele destruídas, torna-se difícil determinar seu local de origem. Em 1965 Derlacki relatou 6 casos de colesteatoma congênito de localização primária no ouvido médio e um caso de localização primária no antro. Na história do paciente em nenhum dos casos verificou-se passado de otorreia. Surpreendidos em fase inicial, seus casos apresentavam membrana timpânica íntegra. Nos casos em que o colesteatoma interrompeu a cadeia ossicular, se verificou uma disacusia de transmissão. O diagnóstico foi feito através de um achado ocasional na otoscopia ou durante uma timpanotomia exploradora que buscava solucionar a hipoacusia. O estudo radiológico mostrou ser elemento diagnóstico útil apenas no caso em que o colesteatoma era de origem antral. Em 1961 Cawthorne relatou 9 casos de colesteatoma congênito de origem primitiva na porção petrosa do temporal. Aqui também passado de otorréia não foi valorizado e em nenhum dos casos a membrana timpânica foi atingida pelo colesteatoma. O denominador comum destes casos e a paralisia facial presente em 8 dos 9 casos. Quando o labirinto está comprometido uma disacusia neurossensorial acompanha o quadro. Ao contrário do colesteatoma primitivo do ouvido médio o estudo radiológico é de grande importância sendo que 8 de seus casos foram diagnosticados através dele.
Nosso caso apresenta alguns aspectos curiosos, que não definem exatamente ser um colesteatoma adquirido ou congênito, nem de que parte do temporal se originou. O passado de otorréia, a destruição da membrana timpânica e o aspecto do comprometimento mastoideo são comuns ao colesteatoma adquirido. Por outro lado, a destruição de toda a porção petrosa do temporal e a paralisia facial são comuns nos casos de colesteatoma congênito de origem petrosa. Achamos que para definir o local primitivo o argumento mais forte é a destruição de todo o labirinto, o que sugere um colesteatoma congênito implantado inicialmente na porção petrosa do temporal e que no seu desenvolvimento produziu destruições de tal modo extensas que não se assemelham nem mesmo aos casos relatados por Cawthorne. Outro aspecto interessante é o da complicação que seguiu a cirurgia do colesteatoma. Tentamos explicar o aparecimento do cisto intradural como sendo proveniente de uma reação posterior que a duramater desenvolveu ao contacto da broca de diamante, uma vez que no ato operatório muitas vezes esta agrediu a dura que em virtude da erosão óssea encontrava-se bastante exposta.
RESUMO
Os autores relatam um raso de colesteatoma congênito gigante. Apresentam seus achados clínicos e cirúrgicos bem como a complicação pós operatória. Discutem a dificuldade em estabelecer a origem primitiva do colesteatoma e a possível causa da complicação pós-cirúrgica.
SUMARY
The authors are reporting on a case of a giant congenital cholesteatoma. They present their clinical and surgical findings and postoperational complication. They discuss the dificulties in establishing the origin of the cholesteatoma and the posible causes of post surgical complication.
Bibliografia
1. Cawthorne T., and Criffit, A.: Primary Cholesteatomata of the Temporal Bone. Arch. Otolaryng 73:252-261, 1961 2. Derlacki, E. L., and Clemis J. D.,: Congenital Cholesteatoma of the middle ear and mawtoid. Ano. Otol Rhin. & Laryng., 74:706, 1965 3. Conde Jahn, F. et al.: Large Otitic Cholesteatomas. Acta Atorhinolaryngol Iber Amer, 19: 430-441, 1968 4. Buckingham, R. A.: Etiology of a middle ear cholesteatoma study of pathogenesis. Ann. Otol. 77: 1054-1058, Dec. 1968 5. Schechter, G., A review of a cholesteatoma pathology. Laryngoscope, 79: 1907-1920, Nov. 1969.
* Assistente voluntário da Disciplina de ORL da U. F. do Paraná. ** Auxiliar de ensino da Disciplina de ORL da U. F. do Paraná. *** Auxiliar de ensino da Disciplina de Neurologia da U.F.P. Trabalho realizado no Serviço do Prof. Leonidas Mocellin.
|