I - IntroduçãoAs complicações intracranianas otogênicas são afecções de incidência relativamente baixa, porém, o risco de vida a que está exposto o paciente exige do otorrinolaringologista atenção minuciosa. Embora a antibioticoterapia tenha diminuído a incidência dessas complicações, por outro lado, o diagnóstico pode ser dificultado pelo mascaramento de dados clínicos e laboratoriais devido ao uso inadequado dos próprios antibióticos. Além disso, a menor incidência resulta em menor experiência clínica, fator que obsta a atenção para o diagnóstico. Nosso trabalho tem por objetivo verificar o estado atual dessas complicações em nosso meio.
II - Material e MétodosFizemos o estudo de 29 pacientes internados na Clínica O.R.L., portadores de complicações intracranianas otogênicas, no período de 1966-1973. Foram estudados a incidência (idade, sexo e raça), duração da otorréia, antecedentes, estado de consciência, bem como a freqüência de otites crônicas e complicações. O ouvido afetado, o lado das lesões auriculares e o tipo de otite e de complicação são revisados, bem como a conduta adotada.
1. Tipos de complicações intracranianas - Tipos variados de complicações intracranianas otogênicas foram encontrados (tabelas I e II). Dentre a ocorrência total de 29 casos, 22 pacientes foram acometidos de complicação sob forma isolada, onde registramos dez casos de meningite. Sete pacientes apresentaram complicação sob formas associadas. Os tipos de otite encontrados foram: otite média crônica colesteatomatosa 25 casos; não colesteatomatosa, quatro casos.
TABELA I - Formas de complicações não associadas.
TABELA II - Formas de complicações associadas.
2. Distribuição do número de pacientes quanto ao sexo e raça - Os pacientes estão assim distribuídos: 19 pacientes do sexo masculino e dez do feminino. Quanto à raça, 24 pacientes da branca; quatro da negra é um da amarela (tabela III).
TABELA III - Distribuição total do número de pacientes quanto ao sexo e raça
3. Distribuição etária - Quanto à distribuição etária, tivemos predomínio de complicações na faixa de 11-20 anos, em seguida sete casos na primeira década de vida. A menor incidência ocorreu entre 41-50 anos e acima dessa fase não houve complicações (tabela IV).
TABELA IV - Distribuição etária.
4. Aspectos clínicos:
a - Nível de consciência - No instante da admissão, ao exame clínico, encontramos 20 pacientes conscientes, sete com nível de consciência diminuído e dois inconscientes. Alguns pacientes internados contatuando satisfatoriamente tiveram piora inesperada, evoluindo mal. Por outro lado, alguns doentes admitidos em mal estado geral, um deles em coma, evoluíram de maneira satisfatória.
b - Otorréia - Todos os casos caracterizaram-se por otorréia de evolução crônica. Na faixa etária de 0-10 anos, o início da otorréia predominou nos primeiros meses de vida (tabela V). Sete pacientes acometidos de complicação no período de 11-20 anos relatavam otorréia desde os primeiros anos de vida. Os demais, não menos que cinco anos desde o primeiro surto (tabela VI). Quatro pacientes atingidos pela complicação após os 20 anos relatavam início da otorréia nos primeiros anos de vida. Quatro doentes, início superior a dez anos. Apenas um paciente teve complicação precedida de otorréia com início inferior a um ano (tabela VII).
c - Cronicidade das lesões - Conforme podemos observar nas tabelas referentes ao início da otorréia, todos os pacientes eram portadores de otite crônica, não tivemos casos com história de otite aguda. A maioria dos pacientes não apresentava sintomatologia de otomastoidite aguda com exteriorização do processo inflamatório, ou seja, dor, abscesso superiostal, flutuação, etc. Tivemos apenas cinco casos de otornastoidites agudas bem evidentes. Dois pacientes apresentavam fístula retroauricular.
d - O ouvido afetado e o lado das lesões - O ouvido direito originou 15 complicações. O ouvido esquerdo, 14. Dentre os 29 pacientes, 20 complicações ocorreram em portadores de otite crônica unilateral. Nove ocorreram em portadores de otite crônica bilateral.
e - Antecedentes:
a - patológicos - cinco pacientes tiveram meningite prévia, respectivamente 30 dias, 35 dias, dois meses (dois casos) e três meses antes do aparecimento da complicação. Este último paciente apresentou três surtos de meningite no período de um ano. Dois pacientes foram operados em fase de agudização com sintomas de irritação meníngea. Os três restantes apresentaram as complicações associadas seguintes: tromboflebite do seio lateral, tromboflebite do seio lateral + abscesso extradural, abscesso temporal.
b - cirúrgicos - cinco pacientes foram submetidos à cirurgia de ouvido previamente, tendo apenas um se submetido à cirurgia radical. Assim, quatro pacientes operados há três, quatro, cinco e dez anos evoluíram respectivamente com meningite (dois), abscesso temporal e abscesso extradural. Um paciente, submetido à mastoidectomia radical havia três anos, apresentou recidiva de colesteatoma e subseqüente abscesso cerebral. Este paciente, embora não apresentasse parede óssea posterior, tinha a pele do conduto auditivo contínua ao ouvido médio, tornando o conduto estenosado.
TABELA V - Início da otorréia na faixa etária de 0-10 anos.
TABELA VI - Início da otorréia na faixa etária de 11-20 anos.
TABELA VII - Início da otorréia na faixa etária acima de 20 anos.
5. Diagnóstico - Frente a um paciente com otite e suspeita de complicação intracraniana, compete ao otorrinolaringologista a grande responsabilidade de esclarecer o problema o mais precocemente possível. De regra, após a anamnese e exame O.R.L. solicitamos os exames neurológico e oftalmológico. Fundamentados em trabalho de equipe, valemo-nos dos seguintes exames complementares de grande importância para elucidar o diagnóstico: radiografia simples (crânio e osso temporal), fundo de olho, liquor, cultura, eletroencefalograma, carotidoangiografia, ventriculografia e mapeamento cerebral.
6. Tratamento - Diante de um caso de complicação intracraniana otogênica, o tratamento deverá ser iniciado precocemente por meios clínicos e cirúrgicos. Realizamos cultura de material obtido do ouvido e do liquor, o que procuramos fazer antes de se introduzir a antibioticoterapia. A conduta, tanto clínica quanto cirúrgica, de preferência foi discutida com o neurologista mediante o estudo adequado de cada caso. Ao otologista coube a responsabilidade de remover o foco otogênico de forma mais ampla possível, sendo a mastoidectomia radical o método usado nesses casos e exploramos os limites da cavidade operada de maneira criteriosa. Se a afecção central foi primitivamente removida pelo neurocirurgião, em seguida, logo que o paciente apresentou condições, fizemos a remoção do foco otogênico. Em determinados casos, o paciente foi submetido ao tratamento neurocirúrgico imediatamente após a remoção do foco otogênico, sob a ação da mesma anestesia; em outros casos, alguns dias após a nossa intervenção.
III - ResultadosDentre 29 pacientes estudados, 25 tornaram-se livres da complicação e do foco otogênico. Quatro pacientes faleceram no pós-operatório. Destes, dois foram previamente operados do foco otogênico, sendo o abscesso cerebelar a complicação achada na necrópsia em ambos os casos. Os dois restantes foram operados da complicação intracraniana previamente, tendo apresentado abscesso cerebral complicado com meningite e osteomielite, respectivamente. Portanto, os resultados encontrados em 25 ou 86,2% dos pacientes foram satisfatórios.
IV - DiscussãoOs processos infecciosos agudos ou crônicos do ouvido médio podem apresentar várias complicações. Grande parte dos autores assinala as otites crônicas como o mais, freqüente fator otogênico causador de complicação intracraniana. Brydoy e Ellekjaerl, estudando 22 pacientes portadores de complicações intracranianas, registraram 81 % de otites agudas. Os mesmos autores acham difícil explicar tal diferença discordante da literatura. Acreditam, porém, que existem atualmente poucos casos avançados de colesteatoma entre a população da cidade de Oslo como resultado do diagnóstico precoce e erradicação desta doença. Miniti e cols.8 a, em trabalho realizado nesta clínica, relatam a grande incidência da colesteatomas como causa de complicação intracraniana, em nosso meio. Assinalam ainda a ocorrência de 30 casos de complicações no período de 1959-1965. Em nossa casuística, 25 pacientes eram portadores de colesteatoma. Nossos resultados diferem daqueles obtidos por Brydoy e Ellekjaer, pois a totalidade das complicações por nós estudadas foi causada por otites crônicas, ou seja, 100%, evidenciando assim a alta importância dessas afecções crônicas como causa daquelas alterações centrais, em nosso meio. Nossos achados estão de acordo com a literatura e assemelham-se aos verificados por Wolfowitzls e Juselius e Kaltiokalliog. É proporcionalmente menor o número de complicações intracranianas nos últimos oito anos (29 casos) em relação ao número de casos encontrado por Minitti e cols., em menor período, ou seja, 30 casos em seis anos. Confrontando a percentagem de óbitos relatada por Minitti e cols., oito óbitos ou 26,6% e a registrada por nós, quatro óbitos ou 13,8%, verificamos proporcionalmente menor número de óbitos. É dificultoso encontrar explicação aceitável que justifique a proporcional redução de complicações, contudo, o melhor conhecimento e aplicação dos antibióticos mediante o diagnóstico mais preciso são fatores a serem considerados. Contrariamente devemos reprovar o uso dos antibióticos antes que essas afecções sejam bem esclarecidas. Em tais circunstâncias, é do conhecimento de todos a influência prejudicial dos anti-infecciosos sobre o quadro clínico, dificultando o diagnóstico que no caso é imprescindível para a cura. Não devemos esquecer, ainda, que a menor incidência de qualquer doença conseqüentemente concorre para o menor conhecimento da mesma e este fato implicaria negativamente no diagnóstico. Seja como for, proporcionalmente registrou-se número inferior de complicações e óbitos.
V - Conclusões1. Diante da suspeita de complicação intracraniana a máxima atenção deve ser dirigida ao paciente no sentido de realizar o diagnóstico e terapêutica precoces;
2. A conduta diagnóstica e terapêutica deve sempre que possível ser realizada em estudo com o neurologista e oftalmologista;
3. A antibioticoterapia deve ser evitada antes de se complementar os exames, para impedir a modificação do quadro clínico e laboratorial;
4. O número de complicações intracranianas nos últimos oito anos (29 casos) foi proporcionalmente menor em relação aos seis anos precedentes (30 casos);
5. O número de óbitos nos últimos oito anos (quatro casos) foi proporcionalmente menor em relação aos seis anos precedentes (oito casos);
6. A faixa etária entre 11-20 anos foi a mais atingida pelas complicações intracranianas;
7. As otites crônicas foram responsáveis por todas as complicações intracranianas e a forma colesteatomatosa contribuiu com 86,2%.
VI - ResumoO autor apresenta 29 casos de complicações intracranianas das otites crônicas. São reportados dados referentes a incidência aspectos clínicos e condutas diagnóstica e terapêutica, bem como os resultados obtidos na Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da F.M.U.S.P.
VII - SummaryThe author presents the study of 29 cases of intracranial complications caused by chronic otitis cared for at the Clinica O.R.L. of the H.C. of the F.M.U.S.P. He analyzes and discurses the material under the points of view concerned to incidence, clinical as pects and diagnostic and therapeutical procedures, as well the results obtained.
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* Trabalho realizado na Clínica O.R.L. do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Médico-Assistente.