INTRODUÇÃOA atresia congênita de coanas (ACC) pode ser definida como a falha no desenvolvimento da comunicação entre a cavidade nasal e a rinofaringe6. Em geral, requer cuidados imediatos, por representar uma situação de risco de vida para a criança. Foi descrita pela primeira vez em 1755, por Johann Roderer, que, durante a avaliação clínica de um neonato, notou um quadro de obstrução nasal completa5. Emmert, pioneiro na cirurgia de correção dessa doença, relatou, em 1854, um caso tratado com sucesso através da introdução transnasal de um trocater curvo5.
Algumas teorias têm sido propostas para explicar a origem embriológica dessa entidade clínica. Dentre as mais aceitas, quatro se sobressaem: 1) persistência da membrana bucofaríngea; 2) falha no rompimento fisiológico da membrana buconasal de Hochstetter; 3) aderência anormal de tecido mesodérmico localizado na coana nasal; e 4) crescimento medial dos processos verticais e horizontais do osso palatino7, 8.
A incidência da ACC é de aproximadamente 1 em cada 5.000 a 8.000 nascidos vivos, sendo mais comum o acometimento unilateral; e, entre os pacientes do sexo feminino2, 5, 8, esta última característica numa razão de 2:1. As atresias se dividem em tipos ósseo (90%) e membranoso (10%); porém, a combinação desses dois tipos pode ocorrer e parece ser relativamente comum5, 8. Pode apresentar-se como malformação isolada ou, em 20% a 50% dos casos, fazer parte de um grupo de malformações, incluindo a síndrome denominada pelo acrônimo Charge (coloboma, malformação cardíaca, atresia coanal, retardo mental e de crescimento, anomalias genitais e auriculares ou surdez)14.
O diagnóstico da atresia bilateral de coanas em neonatos requer um alto grau de suspeita clínica, uma vez que os sintomas podem variar desde discreta angústia respiratória durante a amamentação até obstrução respiratória grave4. A atresia unilateral pode não ser detectada por anos, e se apresentar tardiamente com rinorréia e congestão nasal unilateral8. Apesar de alguns pacientes serem oligossintomáticos, o quadro clínico clássico da atresia bilateral de coanas em neonatos é a cianose cíclica, na qual o desconforto respiratório é aliviado apenas quando a criança chora, e decorre do fato de esta ser respiradora nasal exclusiva durante as primeiras três semanas de vida7.
A endoscopia nasal e a tomografia computadorizada de seios paranasais fornecem o diagnóstico preciso; entretanto, algumas manobras fáceis podem ser realizadas7, 8: 1) passagem de sonda pelas fossas nasais; 2) observação do movimento de uri pequeno feixe de algodão colocado frente às narinas durante a respiração com a boca ocluída; 3) observação da condensação do ar sobre um espelho colocado abaixo das narinas; e 4) instilação de azul de metileno nas fossas nasais. O raio X realizado após a injeção de contraste nas cavidades nasais pode mostrar a alteração anatômica, mas a tomografia computadorizada, por evidenciar o tipo e a localização precisa da atresia, além de descartar outras anomalias, tornou-se o atual exame de escolha2, 4, 5, 6, 8. A endoscopia também oferece a vantagem da certeza diagnóstica, mas em pacientes muito jovens, que representam a maioria na ACC bilateral, sua realização pode ser difícil tanto pelas dimensões da fossa nasal da criança quanto pelo desconforto causado.
O tratamento inicial é de extrema importância e visa a estabelecer uma via aérea oral através da sonda de McGovern ou da intubação orotraqueal. A resolução definitiva é obrigatória e, em geral, realizada em caráter de urgência, sendo somente alcançada com a cirurgia reparadora que, segundo Pirsig9, deve seguir as seguintes diretrizes: restabelecer o fluxo aéreo nasal, evitar lesões que possam comprometer o crescimento Harmônico da face, ser tecnicamente segura e necessitar de curto tempo de cirurgia, hospitalização e convalescência. As técnicas cirúrgicas disponíveis atualmente são: transnasal microscópica e endoscópica, transpalatal, transseptal e transantral8, 13.
Este trabalho tem como objetivo relatar o caso de uma paciente com 13 anos de idade, na qual se diagnosticou atresia bilateral de coanas, discutindo a investigação diagnóstica e as técnicas possíveis do tratamento cirúrgico. A importância desse relato reside no fato de a doença em questão ser raríssima em pacientes nessa faixa etária, uma vez que a criança, quando sobrevive, apresenta um quadro intenso de desconforto respiratório, facilmente percebido pela equipe médica neonatal, sendo a cirurgia realizada nas primeiras semanas de vida.
APRESENTAÇÃO DE CASO CLÍNICOA estudante do sexo feminino DVS, com 13 anos de idade, natural e procedente de Rondônia, procurou nosso Serviço com queixa de obstrução nasal è rinorréia bilateral desde o nascimento. Apresentava ainda respiração bucal e dificuldade respiratória principalmente durante a noite. Logo ao nascimento, necessitou de cuidados de terapia intensiva e ventilação mecânica por aproximadamente 15 dias. Há um ano, foi submetida à adenoidectomia. Em virtude desses problemas, seu rendimento escolar é baixo, mesmo tendo sido submetida a vários esquemas de tratamento clínico em outros Serviços.
A paciente não apresentava nenhum antecedente pessoal, familiar ou queixas relevantes além das citadas. Ao exame físico, a única alteração notada foi a presença de secreção amarelada e mucopurulenta em ambas as fossas nasais. A tomografia computadorizada de seios paranasais (Figura 1) evidenciou atresia óssea bilateral de coarias, espessamento da região posterior do vômer e velamento das fossas nasais em sua porção posterior, sugerindo retenção de secreção. A endoscopia nasal confirmou os achados da tomografia computadorizada.
Figura 1. Corte axial de tomografia computadorizada de seios paranasais evidenciando atresia óssea bilateral de coarias, espessamento posterior do vômer e velamento em fossas nasais, sugerindo acúmulo de secreção.
Tendo se confirmado o diagnóstico, foi realizada a correção cirúrgica por via endoscópica. A região da atresia foi perfurada ínfero-medialmente com pinça cortante, sendo a perfuração inicial ampliada com pinça de esfenóide tipo cogumelo. Em seguida, a área posterior do septo foi retirada com pinça back biter. Todo o ato cirúrgico ocorreu sem intercorrências e não foi colocado nenhum tipo de stent de sustentação na região.
A paciente evoluiu sem intercorrências no pós-operatório imediato, recebendo antibioticoterapia e lavagem nasal com solução salina fisiológica. Em sua última consulta (oito meses após a cirurgia), referiu melhora importante da obstrução nasal e da rinorréia. Repetimos a endoscopia, que apresentou mucosa nasal de bom aspecto, coarias pérvias e ausência de secreção.
DISCUSSÃOO relato deste caso é surpreendente pela idade da paciente na qual se diagnosticou a doença. São relativamente raras as descrições de pacientes com ACC bilateral, e mais" ainda quando diagnosticadas após a infância7. Josephson5, analisando 15 pacientes submetidos a cirurgia para correção de atresia de coarias, encontrou cinco casos nos quais a afecção era bilateral, sendo todos operados entre o segundo dia e o primeiro mês de vida. Lazar6, em um trabalho similar envolvendo 10 pacientes, notou que dois deles apresentavam bilateralidade, sendo um deles operado na quarta semana de vida, e o outro, aos sete anos de idade, porém, com três cirurgias semelhantes prévias. Todos os oito pacientes tratados por atresia bilateral descritos por Sadek11 se encontravam no período neonatal.
Apesar de a obstrução nasal resultarem desconforto respiratório grave e dificuldade para a amamentação, o choro pode aliviar a dispnéia e confundir o diagnóstico13. Porém, com a passagem rotineira de sondas pelas fossas nasais de recém-nascidos, o diagnóstico tem sido realizado com freqüência cada vez maior. Segundo Llorens7, esses pacientes podem se encaixar em três grupos clínicos distintos: no primeiro, o paciente apresenta o quadro de cianose cíclica clássica; no segundo grupo, a criança permanece eupnéica, mas pode apresentar os sintomas quando se alimenta ou está em determinada posição (geralmente presente nas atresias unilaterais); e no último, e mais raro dos grupos, a malformação passa despercebida pela infância, vindo a se manifestar na idade adulta, com obstrução nasal e rinorréia. Nossa paciente não se encaixa exatamente em nenhum desses grupos, visto que apresentou insuficiência respiratória grave nos primeiros dias de vida, necessitando inclusive de cuidados de terapia intensiva. Ainda durante a infância foi submetida à cirurgia de adenoidectomia, à semelhança de um paciente com 17 anos de idade com o mesmo diagnóstico relatado por Llorens7; entretanto, esse último foi submetido ao procedimento duas vezes. Esse fato ressalta a importância da suspeita clínica e dos exames complementares de endoscopia nasal e tomografia computadorizada na investigação da obstrução nasal crônica4, 5.
A tomografia computadorizada de seios paranasais da paciente relatada evidenciou alargamento posterior do vômer e ausência do espaço aéreo coanal, conforme já fora observado por Slovis12. O exame contribuiu também para a exclusão dos outros possíveis diagnósticos diferenciais de obstrução nasal: desvio septal, hipertrofia de conchas nasais, estenose de seio piriforme, meningocele, meningoencefalocele, tumores nasais e inflamação local3, 8. O padrão de aeração e o tamanho dos seios paranasais eram normais, confirmando um estudo de Behar1, que concluía que o desenvolvimento dos seios maxilares independia da aeração nasal posterior.
As técnicas cirúrgicas aplicáveis na resolução da deformidade anatômica em questão são diversas e variam, desde o antigo procedimento de perfuração transnasal às cegas, com o auxílio de um trocater curvo, até a recentemente consagrada técnica endoscópicaa. Uma pesquisa realizada entre os membros da ASPO (American Society of Pediatric Otolaryngology), em março de 1999, demonstrou que as técnicas mais utilizadas eram, em ordem decrescente: transnasal endoscópica, transpalatal, perfuração com dilatador de Fearon, transnasal microscópico e transnasal com uso de laser. A perfuração feita às cegas tem sido abandonada, devido às altas taxas de recidiva e o risco de fístula liquórica e meningite por lesão da placa cribiforme8. O acesso transpalatal revolucionou a cirurgia para correção da ACC, por ter sido o primeiro a permitir exposição suficiente para a remoção segura da placa atrésica, parte posterior do vômer e porção lateral da parede nasal. Além disso, flaps mucosos poderiam ser levantados do local da atresia e recobrir as superfícies ósseas, reduzindo a necessidade do uso do stent e aumentando o índice de sucesso. Essa técnica oferece bons resultados pós-operatórios; entretanto, seu efeito sobre o crescimento do palato vem estimulando o uso da técnica endoscópica. O acesso transpalatal apresenta algumas desvantagens, como risco de desenvolver deformidades palatais (52%), mordidas cruzadas, estreitamento maxilar; fístula e disfunção muscular palatal, maior tempo cirúrgico e maior risco de sangramento5, 6, 8.
Nossa paciente foi tratada através da cirurgia endoscópica transnasal, apresentando resultado favorável até o momento (oito meses de seguimento); entretanto, esse período ainda é precoce, de acordo com Richardson10, que notou que a reestenose ocorre principalmente nos primeiros 12 meses pós-operatórios. Essa técnica é creditada a Stankiewiecz13 e se inicia com a colocação de vasoconstritores na fossa nasal, auxiliada com telescópios de 2,5-mm ou 4-mm de 0°; posteriormente, se procede à incisão da mucosa sobre a placa atrésica; e, em seguida, a obstrução óssea é removida a partir da sua região mais medial (por ter mais finai espessura). A parte posterior do vômer e a parede nasal lateral são também ressecadas, com o intuito de ampliar a neocoana e evitar a estenose. A correção pode ser feita com o uso de materiais de cirurgia endoscópica nasossinusal ou instrumentos elétricos, como o Shaver (lâminas cortantes ou brocas acopladas a um aspirador), não apresentando influência significativa no sucesso das cirurgias8. Realizamos a cirurgia com o material tradicional de cirurgia nasossinusal, sem maiores dificuldades. A cirurgia transnasal com telescópio apresenta bons resultados e pequeno risco de recidiva, principalmente quando realizada em crianças maiores de três anos6.
A colocação de stents (em geral tubos endotraqueais) no local da neocoana é comumente realizada, mas a literatura carece de trabalhos que determinem o tempo de duração, os tipos de material ideais e até mesmo a eficácia do uso desse artifício. De acordo com a pesquisa realizada pela ASPO, a maioria fazia uso dos stents (97%) e por um período médio de 7,9 semanas. Optou-se por não colocar nenhum tipo de stent em nossa paciente, pois a regra aplicada em nosso serviço é de se evitar o uso em pacientes acima de um ano de idade, uma vez que o próprio stent pode ser uma fonte de constante traumatismo e estímulo à reestenose. A lavagem nasal com solução salina isotônica e antibioticoterapia foram prescritas no pós-operatório imediato.
COMENTÁRIOS FINAISA atresia coanal bilateral é uma doença que coloca em risco a vida da criança, sendo na grande maioria dos casos corrigida nas primeiras semanas. Entretanto, em raros casos, ela pode ser encontrada durante a investigação de adultos com obstrução nasal e rinorréia bilateral.
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* Médico Residente da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Médico Pós-Graduando da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Professor Doutor da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho realizado na Divisão de Clínica otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - Serviço do Prof. Aroldo Miniti.
Trabalho apresentado como pôster no 35º Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, realizado no período de 17 a 20 de outubro de 2000 em Natal/ RN.
Endereço para correspondência: Daniel Chung - Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6° Andar - Sala 6021 - 05403-000 São Paulo/ SP.
Telefone: (0xx11) 3069-6288 - Fax: (0xx11) 270-0299.
Artigo recebido em 2 de fevereiro de 2001. Artigo aceito em 26 de fevereiro de 2001.