INTRODUÇÃOApesar do desenvolvimento de diversos antimicrobianos eficazes contra os agentes etiológicos das infecções nasossinusais, a rinossinusite ainda é a principal causa de infecções orbitais7, 13, com elevada freqüência em nosso meio10, 16. Num período recente de 15 anos, verificamos que 128 pacientes necessitaram ser internados para tratamento das complicações orbitais na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo2.
Diversos estudos apontam que, antes da descoberta da penicilina, cerca de 1/5 das complicações orbitais resultava em amaurose irreversível, o que se reduziu pela metade nos dias atuais11. Entretanto, esse avanço não diminui a gravidade do problema. Se não diagnosticadas precocemente ou não tratadas de modo adequado, as complicações orbitais podem comprometer a visão do paciente irreversivelmente11. Portanto, o conhecimento das diferentes complicações orbitais das rinossinusites e de sua classificação é da maior importância para o otorrinolaringologista.
REVISÃO DE LITERATURANas rinossinusites etmoidais podem ocorrer: a) extensão direta, da infecção nasossinusal para a órbita através de deiscências naturais da lâmina papirácea e b) disseminação retrógrada de êmbolos sépticos para a rede venosa orbital (veias oftálmicas superior e inferior), cuja principal característica anatômica é a inexistência de válvulas5, 15.
Outra importante consideração anatômica diz respeito ao septo orbital, uma deflexão da periórbita, fina camada de tecido conjuntivo que reveste a cavidade orbital (Figura 1). Lateralmente, o septo forma o ligamento palpebral lateral e, medialmente, o ligamento palpebral medial, posterior ao saco lacrimal. Dessa maneira, o septo constitui uma barreira anatômica à propagação da infecção na direção posterior da órbita8. É em relação a esses parâmetros anatômicos que são classificadas as complicações orbitais.
As complicações orbitais das rinossinusites são genericamente divididas em pré e pós-reptais, de acordo com sua localização em relação ao septo orbital. Sua classificação segundo critérios anatômicos e clínicos foi introduzida em 1937 por Hubert6 e modificada em 1948 por Smith e Spencer14. Porém, a mais conhecida e utilizada das classificações é a de Chandler e colaboradores, publicada em 1970, e que consiste em adaptação das anteriores1. Esta subdivide as complicações orbitais em:
Grupo 1: Celulite periorbital.
Grupo 2: Celulite orbital.
Grupo 3: Abscesso subperiosteal.
Figura 1. Representação esquemática do repto orbital.
Grupo 4: Abscesso orbital.
Grupo 5: Trombose do seio cavernoso.
Mais tarde, Welsh e Welsh17, Schramm e colaboradores12, Moloney9 e Singh13 propuseram novas classificações para as complicações.
A tomografia computadorizada de alta resolução (TC) contribuiu de forma significativa para mostrar detalhes anatômicos e a extensão dos processos infecciosos dos seios paranasais. Com base nesse exame, em 1997 Mortimore9 propôs uma nova classificação das complicações orbitais das rinossinusites. Concluiu que a TC permite não apenas uma diferenciação clara entre complicações pré e pós-reptais, mas também entre os subgrupos de celulites e abscessos, o que nem sempre é possível somente pela avaliação clínica (exame da motilidade ocular e acuidade visual). Também subdividiu as complicações pós-septais em subperiosteais e intraconais, excluiu a trombose do seio cavernoso das complicações orbitais - por entender que esta é uma complicação intracraniana - e classificou a síndrome dó ápice orbital (acometimento do III, IV e VI e do ramo oftálmico do V nervos cranianos na fissura orbital superior e no canal óptico)3 à parte entre as celulites intraconais. Assim, ofereceu uma nova perspectiva para a avaliação das complicações orbitais, conforme descrevemos a seguir.
Grupo 1. Infecção pré-septal:
a) celulite,
b) abscesso palpebral.
Figura 2. Complicação orbital pré-septal das rinossinusites: celulite palpebral.
Figura 3. Complicação orbital pós-septal das rinossinusites: abscesso subperiosteal.
Grupo 2. Infecção pós-septal subperiosteal:
a) celulite,
b) abscesso subperiosteal.
Grupo 3. Infecção pós-septal intraconal:
a) celulite 1. difusa,
2. localizada.
c) abscesso.
Grupo 1. Infecção pré-septal. Compreende 97% das complicações orbitais. Afeta primariamente crianças, nas quais o principal agente etiológico é o Haemophilus influenzae tipo b, sobretudo em menores de quatro anos8. Subdivide-se em:
a) celulite, a complicação orbital mais freqüente2, ocasionada pela obstrução da drenagem venosa palpebral. Nesses casos há edema palpebral sem qualquer limitação dos movimentos oculares, nem prejuízo da acuidade visual (Figura 2). Os principais sintomas são: dor local e dificuldade para abertura ocular, podendo ser acompanhados por febre, cefaléia e rinorréia purulenta. Ao exame físico, o edema palpebral com sinais inflamatórios (hiperemia e calor local) é o principal achado; e, muitas vezes, é possível observar-se secreção conjuntival e drenagem de secreção purulenta dos meatos através da endoscopia nasal.
b) abscesso palpebral. Em alguns pacientes pode haver formação de coleção purulenta na pálpebra superior, levando ao edema local acentuado, com maior probabilidade de ocorrência de febre e dor; porém, sem prejudicar a motilidade ocular.
Em raros casos pode haver fistulização com drenagem espontânea do material purulento.
Grupo 2. Infecção pós-septal subperiosteal. Subdividida em:
a) celulite. Compreende o acometimento difuso do conteúdo orbital pelo processo inflamatório, havendo edema da gordura orbital sem formação de abscesso. Caracteriza-se clinicamente pelos sintomas descritos anteriormente, além de sinais de hiperemia conjuntival, quemose (edema conjuntiva) resultante da estase venosa e linfática local) e proptose, podendo haver leve restrição do movimento ocular.
b) abscesso subperiosteal. Caracterizado pela coleção purulenta na parede medial da órbita entre a lâmina óssea e a periórbita (Figura 3). Causa deslocamento do globo ocular em sentido látero-inferior, com restrição do movimento ocular extrínseco, podendo acompanhar-se de redução da acuidade visual. Freqüentemente, o paciente queixa-se de intensa dor ocular, sobretudo durante a tentativas de movimentação do globo.
Grupo 3. Infecção pós-septal intraconal. O processo inflamatório dos tecidos adiposo e conjuntivo adjacentes ao nervo óptico compromete a acuidade visual.
a) celulite:
a. l. difusa. Edema da gordura intraconal (Figura 4). Resulta em proptose acentuada e oftalmoplegia, com redução da acuidade visual, que pode progredir para amaurose irreversível se não for instituído tratamento imediato.
Figura 4. Complicação orbital pós-septal das rinossinusites: celulite intraconal difusa.
a.2. localizada (síndrome do ápice orbital). Corresponde ao acometimento das estruturas vásculo-nervosas, que passam através da fissura orbital superior e do forame óptico (incluindo o III, IV e V nervos cranianos). O mecanismo exato da síndrome não é conhecido (invasão bacteriana direta a partir dos seios etmoidal posterior e esfenoidal, ou compressão do nervo óptico com trombose da artéria central da retina)4. A síndrome completa manifesta-se por amaurose, oftalmoplegia, dor ocular intensa e distúrbios sensitivos no território do nervo oftálmico, que podem variar de anestesia a nevralgia3. Ao exame físico, a motilidade ocular intrínseca usualmente é afetada (ausência do reflexo pupilar). O exame de fundo de olho usualmente revela edema papilar e congestão vascular da retina.
b) abscesso:
É a complicação orbital mais grave das rinossinusites, com progressão rápida para amaurose, se não há descompressão orbital imediata (Figura 5). A degeneração irreversível do nervo óptico e da retina ocorre quando a oclusão arterial dura mais de 90 minutos. Caracteriza-se por oftalmoplegia, ausência do reflexo pupilar (pupilas não fotorreagentes), amaurose, dor ocular, quemose e proptose acentuadas.
DISCUSSÃOÉ antiga a preocupação em classificar as complicações orbitais das rinossinusites. As primeiras classificações obedeciam a critérios eminentemente clínicos, de acordo com a motilidade ocular extrínseca e a acuidade visual. Com o surgimento da tomografia computadorizada de alta resolução dos seios paranasais, esse panorama sofreu uma grande mudança. Atualmente, a realização da tomografia é obrigatória nos casos de suspeita de complicações orbitais e intracranianas das rinossinusites, permitindo identificar coleções purulentas orbitais de qualquer volume com grande facilidade. Assim, a decisão quanto à abordagem terapêutica (tratamento clínico com antibióticos ou intervenção cirúrgica e antibioticoterapia) tem um subsídio valioso no exame de imagem.
Figura 5. Complicação orbital pós-septal das rinossinusitess abscesso intraconal.
Embora a classificação de Chandler ainda seja muito utilizada na prática clínica, parece-nos que o esquema proposto por Mortimore é o que melhor traduz a riqueza de detalhes observada através da tomografia. Fica, portanto, para os otorrinolaringologistas, a sugestão para que, futuramente, a classificação de Mortimore seja empregada no dia-a-dia e, sobretudo, na elaboração de trabalhos científicos.
COMENTÁRIOS FINAISA tomografia computadorizada de alta resolução dos seios paranasais permitiu grande avanço no estudo anatômico das complicações das rinossinusites. Portanto, a classificação de Mortimore para as complicações orbitais das rinossinusites parece-nos a mais adequada e completa, ao levarem consideração os parâmetros anatômicos vistos á tomografia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. CHANDLER, J. R.; LANGENBRUNNER, D. J.; STEVENS, E. R. - The pathogenesis of orbital complications in acute sinusitis. Laryngoscope, 80: 1414-1428, 4970.
2. D'ANTONIO, W. E. P. A.; IKINO, C. M. Y.; CORTINA, R. A. C.; VOEGELS, R. L.; BUTUGAN, O. - Complicações orbitárias em pacientes com sinusite aguda. Anais do I Congresso Triológico de Otorrinolaringologia, São Paulo, 1999.
3. EL-SAYED, Y.; AL-MUHAIMED, H. - Acute visual loss in association with sinusitis. J. Laryngol. Otol., 107: 840-842, 1993.
4. GALATI, L. T.; BAREDES, S.; MAURIELLO, J.; FROHMAN, L. - Visual loss reversed after treatment of acute bacterial sinusitis. Laryngoscope, 106: 148-151, 1996.
5. GIANNONI, C. M.; STEWART, M. G.; ALFORD, E. L. Intracranial complications of sinusitis. Laryngoscope, 107: 863-867, 1997.
6. HUBERT, L. - Orbital infections due to nasal sinusitis. N. Y. State J. Med., 37: 1559-1564, 1937.
7. MANN, W.; AMEDEE, R. G.; MAURER, J. - Orbital complications of pediatric sinusitis: treatment of periorbital abscess. Am. J. Rhinol., 11: 149-153, 1997.
8. MOLONEY, J. R.; BADHAM, N. J.; McRAE, A. - The acute orbit: preseptal (periorbital) cellulitis, subperiosteal abscess and orbital cellulitis due to sinusitis. J. Laryngol. Otol., 101 (supl. 12): 118, 1987.
9. MORTIMORE, S.; WORMALD, P. J. - The Groote Schuur hospital classification of the orbital complications of sinusitis. J. Laryngol. Otol., 111: 719-723, 1997.
10. OGNIBENE, R. Z.; VOEGELS, R. L.; BENSADON, R. L.; BUTUGAN, O. - Complications of sinusitis. Rhinology, 8: 175-179, 1994.
11. PATT, B. S.; MANNING, S. C. - Blindness resulting from orbital complications of sinusitis. Otolaryngol. Head Neck Surg., 104: 789-795, 1991.
12. SCHRAMM JR., V. L.; CURTIN, H. D.; KENNERDELL, J. S. Evaluation of orbital cellulitis and results of treatment. Laryngoscope, 92: 732-738, 1982.
13. SINGH, B. - The management of sinogenic orbital complications. J. Laryngol. Otol., 109: 300-303, 1995.
14. SMITH, A. T.; SPENCER, J. T. - Orbital complication resulting from lesions of the sinuses. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol., 57- 5, 1948.
15. STANKIEWICZ, J. A.; NEWELL, D. J.; PARK, A. H. Complications of inflammatory diseases of the sinuses. Otolaryngol. Clin. North Am., 26(4): 639-655, 1993.
16. VOEGELS, R. L.; BENSADON, R. L.; OGNIBENE, R. Z.; BUTUGAN, O. - Complicações periorbitárias das sinusites. Rev. Bras. Otorrinolaringol, 60: 149-152, 1994.
17. WELSH, L. W.; WELSH, J. J. - Orbital complications of sinus disease. Laryngoscope, 84: 848-856, 1974.
* Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Doutoranda do Curso de Pós-Graduação da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Prof. Dr. Ossamu Butugan - Hospital das Clínicas da FMUSP - Divisão de Clínica Otorrinolaringológica.
Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - Sala 6167, 6o Andar - 05403-010 São Paulo/ SP - Fax: (0xx11) 3088-0299; Artigo recebido em 4 de fevereiro de 2001. Artigo aceito em 19 de março de 2001.