INTRODUÇÃOApós mais de um século de erros e sucessos, a medicina chega a um ponto de questionamento quanto ao melhor encaminhamento para o tratamento dos tumores acometendo a laringe: cirurgias radicais sem preservação do órgão ou procedimentos com o mesmo potencial curativo, mas com a possibilidade de sua preservação.
Entre todos os carcinomas espinocelulares da cabeça e pescoço, o câncer laríngeo é, sem dúvida, aquele que apresenta os melhores resultados oncológicos, não importando a modalidade terapêutica empregada.
Ao atingir mais de 80% de sobrevida em cinco anos, marco alcançado nos anos 70, não tivemos muito sucesso na melhora desta estatística nos 30 anos que se seguiram. Este fato, associado à heterogenicidade de resposta individual, com alguns pacientes tendo resultados desanimadores enquanto a maioria evolui para a cura, nos leva a pensar que provavelmente o enfoque terapêutico atual tenha chegado a um ponto limite do ponto de vista oncológico.
Por outro lado, percebemos que há uma maior liberalidade quanto à indicação de tratamentos cada vez mais conservadores na lida com estes tumores.
Entendemos que a tendência atual de preservação de órgão através do uso de quimioterapia e radioterapia concomitantes seja um caminho promissor, mas também percebemos que a terapia ainda guarda lugar para cirurgias parciais mais ousadas em sua indicação.
No caso dos tumores de laringe, os T3 vêm sendo considerados o limite para a cirurgia conservadora, tendo em apenas alguns poucos Serviços chance de cirurgias parciais.
Na Santa Casa de São Paulo temos tido a oportunidade de lidar com pacientes em estádios avançados na laringe, mas que se apresentaram ao exame com a região cervical clinicamente N0. Este tipo de caso nos fez pensar na possibilidade de um enfoque mais conservador para tais pacientes. Este estudo pretende avaliar os resultados oncológicos e funcionais da cirurgia conservadora de laringe em pacientes T3 e T4 de laringe.
Figura 1. Distribuição dos tumores por localização do centro da lesão (visão coronal de hemilaringe direita).
Figura 2. Distribuição dos tumores por região de invasão por contigüidade (A - visão sagital; B - visão superior).
MATERIAL E MÉTODOForam avaliados 29 pacientes operados no período entre 1990 e 1997, acompanhados até o ano 2000, com idades variando de 16 a 82 anos (média de 65 anos). Havia três mulheres neste grupo e sua média de idade foi de 67 anos. A média de seguimento foi de 5,3 anos, sendo que seis (20,6%) deles foram seguidos por apenas três anos.
Entre os tumores, 17 estavam centrados na prega vocal; sete, no ventrículo laríngeo; quatro, na prega vestibular; e cinco, na prega ariepiglótica. Todos apresentavam fixação de prega vocal. Sete deles se estendiam para região infraglótica, dois para seio piriforme e um para região retrocricoariténóidea. A classificação dos tumores foi de 14 T3 e 15 T4. Todos foram considerados NO antes do ato cirúrgico; entretanto, três apresentaram linfonodos positivos na região pretraqueal durante a cirurgia e foram submetidos a esvaziamento radical modificado, tipo wide-field (linfadenectomia cervical bilateral em dois casos e unilateral em um caso, com preservação de veias jugulares e nervo espinal). Todos os pacientes foram submetidos à radioterapia de campos cervicais bilaterais (45 Gy) e 18 pacientes receberam radioterapia complementar na laringe remanescente, pois apresentavam pericondrio interno comprometido) (Figuras 1 e 2).
O tratamento cirúrgico estabelecido foi baseado no local do centro da lesão, tendo como preocupação a extirpação do tumor em bloco com margens; porém, sem nos ater aos limites tradicionais de invasão como conus elástico, comissura anterior e espaço pré-epiglótico. A laringe foi encarada como um órgão sem compartimentos (do ponto de vista de prognóstico oncológicos) e o tumor, ressecado - com isto em mente. O mesmo princípio tem sido empregado na ressecção endoscópica a laser por diversos autores europeus.
TABELA 1 - Distribuição do tipo de ressecção por lado.
TABELA 2 - Distribuição de pacientes quanto ao dia de retirada de cânula de traqueotomia.
TABELA 3 - Distribuição de pacientes quanto ao dia de introdução de dieta oral.
Os pacientes foram avaliados quanto aos aspectos de recuperação das suas atividades no período pós-operatório, satisfação quanto aos aspectos fonatórios e de deglutição e sobrevida livre de doença.
RESULTADOSAs cirurgias realizadas foram (Tabela 1):
Dez ressecções de prega vocal esquerda de sua comissura anterior até a aritenóide, inclusive, associada com ressecção de prega vestibular esquerda (parcial) e porção membranosa de prega vocal direita.
Cinco ressecções de prega vocal direita de sua comissura anterior até a aritenóide, inclusive, associada com ressecção de prega vestibular direita (parcial) e porção membranosa de prega vocal esquerda.
Sete ressecções de prega ariepiglótica direita incluindo aritenóide direita, prega vestibular direita, prega vocal direita e terço anterior de prega vocal esquerda.
Quatro ressecções de prega ariepiglótica esquerda incluindo aritenóide esquerda, prega vestibular esquerda, prega vocal esquerda e terço anterior de prega vocal direita.
Duas ressecções de prega ariepiglótica direita incluindo aritenóide direita, prega vestibular direita, prega vocal direita e terço anterior de prega vocal esquerda, com ressecção parcial de borda superolateral direita de cricóide
Uma ressecção de prega ariepiglótica esquerda incluindo aritenóide esquerda, prega vestibular esquerda, prega vocal esquerda e terço anterior de prega vocal direita, com ressecção parcial de borda superolateral esquerda de cricóide.
Todas as ressecções incluíram a exerese da lâmina da cartilagem tireóidea do lado do tumor.
As reconstruções foram sempre baseadas na utilização do músculo esterno-hióideo do lado ipsilateral e da mucosa supraglótica remanescente, para forrar o defeito laríngeo e do músculo esterno-hióideo contralateral à lesão, para reconstrução da porção anterior da glote.
Quanto à recuperação pós-operatória, observamos (Tabelas 2 a 10).
DISCUSSÃOApós a análise de 10 anos de experiência com a ressecção parcial em tumores avançados dos três segmentos laríngeos, pudemos observar que tivemos um excelente período pós-operatório, tendo uma média de dias canulados de cerca de 5,7, assim como uma média com sonda de 5,7 dias, sendo que apenas um paciente permaneceu definitivamente com sonda - para alimentação - e cânula, e outro permaneceu com cânula.
TABELA 4 - Distribuição de pacientes quanto à satisfação e as condições fonatórias.
TABELA 5 - Distribuição de pacientes quanto às condições respiratórias.
TABELA 6 - Distribuição de pacientes quanto às condições de deglutição.
TABELA 7 - Distribuição de pacientes quanto à recidiva local.
TABELA 8 - Distribuição de pacientes quanto à recidiva cervical
Nota: * pescoço previamente esvaziado.
TABELA 9 - Distribuição de pacientes quanto à cirurgia de resgate.
Nota: * 2 pacientes com tumores estadiados como T4 e 1 como T3; ** 2 pacientes considerados como T3 na primeira cirurgia; *** paciente T3 e NO na primeira cirurgia.
TABELA 10 - Distribuição de pacientes quanto ao controle tumoral pós-resgate.
Nota: * 1 paciente T3 após laringectomia total e 1 paciente T3 após esvaziamento cervical radical.
A opinião dos pacientes quanto às suas condições fonatórias e respiratórias no pós-operatório foram favoráveis em 89% dos casos e as condições de deglutição foram consideradas favoráveis em quase 97% dos casos.
Cerca de 83% dos pacientes atingiram três anos livres da doença e cerca de 62% alcançaram os cinco anos livres da doença.
Estes achados são bastante semelhantes aos alcançados em cirurgias conservadoras de laringe para tumores iniciais Tl e T21, 2, 4, 9, 19, 20, 22.
A cirurgia de resgate foi realizada em cinco oportunidades e em duas delas foi possível fazer uma nova ressecção parcial; os dois casos apresentam-se sem recidiva até o momento (13 meses e 21 meses após a segunda ressecção), fato já descrito por outros autores11, 12, 22.
Entendemos que a cura para casos avançados de carcinomas espinocelulares de laringe seja bastante mais difícil que para os tumores iniciais, e acreditamos que os anos que passamos indicando cirurgias que não preservavam o órgão tenham sido de grande aprendizado para a cirurgia de cabeça e pescoço, mas os anos mostraram que pouco se avançou na sobrevida em cinco anos, não importando a terapia instituída4, ,8, 10 ,11, 13, 14, 15, 17. Por outro lado, observamos que a cirurgia para tumores iniciais foi pouco a pouco sendo reduzida em sua agressividade. O advento do laser favoreceu uma maior liberalidade para a ressecção de tumores cada vez maiores, e isto vem nos dando subsídios para que mais e mais cirurgias parciais com preservação do órgão sejam realizadas4, 5, 8. Este nosso estudo retrospectivo mostra que há possibilidade de se oferecer controle tumoral com preservação do órgão sem prejuízo da sobrevida.
Esta casuística se refere ao tratamento associado de cirurgia com radioterapia complementar para o sítio tumoral e exclusiva para campos cervicais, mas o estudo contínuo de modalidades terapêuticas combinadas como a quimioradioterapia concomitante pré ou pós-cirúrgica parcial pode nos dar resultados ainda mais gratificantes14, 18.
CONCLUSÕES- O estadiamento tumoral não é necessariamente limitante da cirurgia conservadora da laringe.
- A associação de cirurgia conservadora e radioterapia pósoperatória não prejudica a sobrevida a três ou cinco anos.
- As condições pós-operatórias de fonação, respiração e deglutição são satisfatórias em mais de 89% dos casos.
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* Professor Adjunto e Chefe do Setor de Laringologia do Departamento de ORL da Santa Casa de São Paulo.
** Professor Instrutor do Departamento de ORL da Santa Casa de São Paulo.
*** Professor Instrutor do Departamento de ORL da Santa Casa de São Paulo.
**** Preceptor de Ensino do Departamento de CRI, do HSPE-SP.
***** Residente de ORL da Santa Casa de São Paulo.
Endereço para correspondência: Rua Polônia 442 - 01447-000, São Paulo /SP.
Artigo recebido em 9 de novembro de 2000. Artigo aceito em 8 de fevereiro de 2001.