ISSN 1806-9312  
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2742 - Vol. 67 / Edição 2 / Período: Março - Abril de 2001
Seção: Artigos Originais Páginas: 153 a 158
Traqueotomia na Infância.
Autor(es):
Márcio Nakanishi*,
Jair C. Montovani**,
Victor Nakajima***,
Carlos A. Macharelli****.

Palavras-chave: traqueotomia, infância, histórico, indicações, complicações

Keywords: tracheotomy, infant, history, indications, complications

Resumo: Introdução: O controle da via aérea para suprir a oxigenação e higiene da árvore traqueobrônquica ou para manter uma assistência ventilatória é a base de todo o tratamento da insuficiência respiratória. Esse controle é obtido principalmente pela intubação ou traqueotomia. Objetivo: O objetivo deste trabalho foi de discutir e analisar o histórico, as indicações, técnicas cirúrgicas e complicações das traqueotomias realizadas na infância. Forma de estudo: Avaliação retrospectiva de prontuario. Material e método: No período de 1975 a 1999, 73 crianças foram traqueotomizadas - e estudados: o sexo, cor, prematuridade, idade, peso, número de intubações prévias, duração da intubação, diagnóstico primário, indicação da traqueotomia, tipo de cirurgia, presença de intubação orotraqueal no momento da cirurgia, complicações, tempo de traqueotomia e decanulação. Resultados: Das 73 panças traqueotomizadas, 35 (47,9%) eram meninas; e 38 (52,1 %), meninos. Quanto à prematuridade, 58 (79,5%) nasceram a termo; e 15 ( 20,5%), a pré-termo. A média da idade foi de quatro anos e dois meses. O diagnóstico primário mais freqüente foi a doença pulmonar (32,9%) e a principal indicação foi de suporte ventilatório (40,3%). O pneumotórax (28,5%) e a hemorragia (28,5%) foram as principais complicações iniciais; e a estenose subglótica (71,4%), a complicação tardia mais encontrada. Conclusões: A traqueotõmia é um procedimento usual em UTTs pediátricas, associada a suporte ventilatório prolongado. Embora a morbidade ainda seja alta principalmente em recém-nascidos de baixo peso e lactentes, devido à técnica cirúrgica ou doença primária (broncopneumonias), a morbidade é declinante com o treinamento intensivo dos pais, equipe médica e de enfermagem, além da melhoria do material utilizado.

Abstract: Introduction: The airway control to supply oxigenation and hygiene of the traqueobronquical tree or support a ventilatory assistance is the basis of the treatment of respiratory failure. This control is getting by intubation or tracheotomy. Aim: The aim of this paper was discuss and analyze the history, the indications, surgical techniques and complications of the tracheotomies performed in children. Study design: retrospectial chart review. Material and method: From 1975 to 1999 were done 73 tracheotomies in children. We studied: sex, color, prematurity, age, weight, number of previous intubation, period of intubation, primary diagnostic, indication, type of the surgery, presence of orotracheal intubation during the surgery, complications, time of tracheotomy and decanulation. Results: Analyzing 73 children, 35 (47,9%) were girls and 38 (52,1%) boys. The great majority, 58 (79,5%) were born in term and 15 (20,5%) pre-term (< 37 weeks). The mean age was four years and two months. The most frequent primary diagnostic was the pulmonary disease (32,9%) and the main indication was ventilatory support / prolonged intubation (40,3%). The pneumotorax (28,5%) and hemorrhage (22,5%) were the principal initial complication and the subglotic stenosis (71,4%) the most frequent late complication. Conclusion: The tracheotomy is a usual procedure in pediatrics ICU associated to prolonged ventilatory support. Although the high morbidity in new birth with low weight and lactents due to surgical technique and primary disease (broncopneumonias) it is declining with intensive training of the parents, medical and nurse group, beyond the material improvement.

INTRODUÇÃO

O controle das vias aéreas, para manter uma assistência ventilatória e facilitar a higiene da árvore traqueobrônquica, é a base de todo tratamento da insuficiência respiratória. O primeiro registro de uma ressuscitação artificial em crianças está descrito no Antigo Testamento, quando Elias, ao fazer respiração boca a boca, tentava fazer reviver uma criança que provavelmente estava sofrendo de choque séptico2. Um dos métodos para controle das vias respiratórias, a traqueotomia, é conhecida provavelmente há 3.500 anos. Ao longo de todo esse tempo, foi relatada como técnica salvadora e odiada por sua agressividade ao doente9.

Entre 1000 e 2000 AC, o livro sagrado de medicina hindu, Rig Veda, menciona-a. O papirus de Eber, datado de 1550 AC, descreve uma incisão semelhante à da traqueotomia em um homem com um tumor gorduroso no pescoço, sem lesar os vasos sangüíneos. O livro chinês, Huang Ti Nei Ching Sû Wen contém referências a essa cirurgia. Um dos procedimentos mais conhecidos na história mundial é o de Alexandre, O Grande (10 AC), quando faz uma incisão com sua espada na traquéia de um soldado por causa da obstrução do lúmen traqueal por um osso. Talvez a primeira traqueotomia, como a conhecemos hoje, tenha sido feita por Asclepíades de Bithynia (100 AC). Aretaeus (100 AC), em seu livro The Therapeutics in Acute Diseases, descreve a traqueotomia, mas não a emprega devido à sua agressividade. Coehus Auselilianus, no século V DC, a descreve como uma operação fantástica, fútil e irresponsável. Antyluss, de Roma (340 DC), e posteriormente Paulus Aegineta, no século VII, descrevem a traqueotomia, realizando a incisão no terceiro e quarto anéis traqueais cervicais. O obscurantismo da idade média, como fez com a literatura, apagou a ciência e pouco se falou de quaisquer cirurgias até o século 15. No século 16, com o despertar científico, Berviens, um médico de Florença, relata um caso de traqueotomia. Data dessa época o despertar das artes e das ciências: Guilielmo de Saliceto e Ambroise Paré, na França, fazem várias traqueotomias em pacientes com angina. Bolondi, em Bologna, fez uma traqueotomia permanente, devido à estenose traqueal pós-abscesso laríngeo. Serratorius, em 1590, coloca em um paciente uma cânula metálica de traqueotomia. Vesalius (1547) e Robert Hooke (1667) realizam experimentalmente traqueotomia em cães e colocam uma cânula na traquéia.

Entretanto, essa cirurgia permanece controversa. Fabricius d'Aquapendente, como impressão inicial, acha-a terrível e só anos mais tarde modifica seu conceito, passando a realizá-la. Descreve-a como terrível e posteriormente modifica sua opinião, passando a realizá-la. A sensação de dramaticidade dessa cirurgia, sendo ao mesmo tempo heróica e salvadora, fez com que vários artistas a registrassem. Flaubert, em seu livro Educação Sentimental, descreve uma traqueotomia em criança com difteria. Toulouse, em seu quadro Peão, retrata uma traqueotomia. A partir dessa data, parece não haver mais dúvida quanto às vantagens da traqueotomia como técnica cirúrgica que salva vidas - e relatos de casos com essa técnica se sucedem. Nicolas Habicot, em 1620, descreve quatro traqueotomias bem sucedidas - uma delas, realizada em um menino com 14 anos de idade. O garoto tinha engolido um pacote com moedas de ouro para evitar um possível roubo, sendo que o volume, ao se alojar no esôfago, obstruía a traquéia. Após a traqueotomia, Habicot empurrou o pacote com moedas para o estômago, sendo recuperadas por via retal. Caron (1766) realiza uma traqueotomia em um garoto com sete anos de idade, para remover um feijão. Ancheu (1782) e Chevalier (1814) realizaram traqueotomias em pacientes pediátricos22. George Martin (1770) descreve a cânula de traqueotomia dupla, detalhe que contribuiu para a melhoria e uso dessa técnica, bem como para diminuir as complicações.

Goodall22, ao revisar a literatura, encontra até 1825 apenas 28 relatos de traqueotomias em crianças. Nesse ano, Wetonneau publica a descrição de uma traqueotomia em menina com cinco anos de idade com difteria, procedimento que influenciou o curso histórico dessa cirurgia e da difteria. Trosseau (1833) relata ter salvado 50 de 200 crianças com difteria realizando a traqueotomia. Agora essa cirurgia passa a ser referência para a vida ou morte, ganhando popularidade, mas ao mesmo tempo tem altas taxas de morbidade e mortalidade.

Felizmente, em meados do século 20, as imunizações começaram a diminuir a incidência das doenças infecciosas respiratórias altas - entre elas, a difteria. Agora, as indicações de traqueotomias pediátricas começam a ser raras. Novos conceitos como a intubação para suporte ventilatório antes de se pensarem realizar a traqueotomia começam a surgir, para a realização dessa cirurgia.

O que se discute é quando e porquê fazê-la. Essa resposta não é fácil, pois a própria denominação da cirurgia, traqueostomia ou traqueotomia, é sujeita a controvérsias. Para Hotaling e colaboradores (1992)13, os termos traqueotomia e traqueostomia são usados indistintamente na literatura. Se nos ativerermos à etimologia das palavras, traqueotomia é derivada da palavra grega tome (cortar); e traqueotomia, de stomun (fazer uma abertura ou boca). A Organização Internacional de Termos Técnicos define o corte de um orifício na traquéia como traqueotomia; e traqueotomia, como a realização de um orifício real; e a cânula utilizada nesse orifício como cânula de traqueostomia. Em nosso Serviço, o termo que adotamos é traqueotomia. No entanto, cremos que o mais importante é saber indicá-la e realizá-la bem.

Atualmente, as principais indicações da traqueotomia podem ser resumidas em: obstrução de vias aéreas superiores, assistência ventilatória e higiene pulmonar. Apesar dessas indicações terem permanecido inalteradas nas últimas décadas, as suas incidências têm mudado e continuam em evolução1, 2, 6, 16. Nas décadas de 60 e 70, por exemplo, a obstrução infecciosa da via aérea superior era a principal indicação. Porém, a queda nas incidências de epiglotite e difteria pela vacinação fez com que diminuíssem também o número de traqueotomias realizadas em obstrução da via aérea superior22. No final dos anos 80 e início dos 90 a intubação traqueal prolongada, sem previsão de extubação, e as seqüelas da intubação (estenose laríngea), principalmente em prematuros e recém-nascidos de baixo peso, são agora as principais indicações da traqueotomia22. Outras causas, como as paralisias das cordas vocais, sejam de origem idiopática, ou secundária a traumas, ou as malformações do sistema nervoso central, como de Amold Chiari, as da face (Pierre Robin, Treacher Collins Franceschetti etc.) podem causar desconforto respiratório e mostrou ser necessária a intubação e/ou traqueotomia1, 16.

Mais recentemente, o aumento da sobrevida de crianças com problemas complexos, especialmente em pacientes transplantados e oncológicos, tem criado novas populações de pacientes que necessitam de traqueotomia22. Arcand e Line (1988) observaram uma diminuição no número de traqueotomias em prematuros (recém-nascidos, com menos de 30 semanas de gestação) e que necessitam de assistência ventilatória, e atribuíram esses achados aos anestesiologistas, neonatologistas e equipes de enfermagem, que têm se tornado mais habilidosos no manuseio de crianças intubadas, especialmente com distúrbios craniofaciais.

Em lactentes e crianças maiores, doenças infecciosas como a amigdalite grave, abscesso periamigdaliano, abscesso retrofaríngeo, epiglotite e crupe é que mais comumente causam obstrução das vias aéreas18. No caso do crupe e da epiglotite, podem geralmente ser conduzidas com a intubação orotraqueal, enquanto que casos de papilomatose ou de estenose subglótica severa necessitam da traqueotomia. No corpo estranho laríngeo ou traqueal, o uso do broncoscópio pode ser útil para assegurar a via aérea. E na criança com obstrução nasal ou faríngea, a intubação oral ou nasal pode ser suficiente 22. Já as crianças que necessitam de suporte ventilatório mínimo, a pressão positiva contínua de via aérea (CPAP) pode ser uma alternativa à intubação ou traqueotomia.

Então, quando realizar a traqueotomia? A resposta não é fácil, pois, sabemos que prematuros e recém-nascidos podem tolerar o tubo endotraqueal por várias semanas ou meses, com alterações mínimas da mucosa e cartilagem laringotraqueal. O que podemos dizer é que a traqueotomia deve ser feita quando não há previsão para extubação é em casos com muita secreção das vias aéreas, para facilitar a higiene pulmonar e evitar uma possível rolha no lúmen da cânula, ou ainda em crianças com agitação psicomotora e história de extubações espontâneas. O dia exato dependerá da experiência da equi pe cirúrgica e clínica, com média variando entre sete a 15 dias de intubação.

Quanto a traqueotomia, ela deve ser feita em sala cirúrgica, com monitorização ventilatória, e se possível com assistência do anestesiologista. Em paciente com história de hipóxia crônica, a primeira ou segunda respiração do paciente podem ser seguidas, de apnéia, causada pela denervação fisiológica dos quimioreceptores periféricos provocada pelo aumento súbito da PO2 e queda do PCO2. Nesses, a hipóxia é responsável pela estimulação do centro respiratório, sendo necessário que o CO2 em excesso seja removido para permitir o retorno da sensibilidade dos quimio-receptores centrais.

As vantagens da traqueotomia em relação à intubação é que ela diminui o espaço morto e facilita a higiene das vias respiratórias. No entanto, ela não é isenta de complicações, que serão mais ou menos intensas dependendo da idade e do estado do paciente, da doença primária, das lesões inflamatórias da mucosa traqueal, da habilidade da equipe cirúrgica, do material da cânula, do tipo de cuff e do tipo de ventiladores (pressão ou volume).

Para Arjmand1, elas podem ser divididas em relação ao tempo, em imediatas, intermediárias e tardias. Já Koltai (1998)15 as divide em imediatas e tardias, apenas. As imediatas são: apnéia, hemorragia, lesão cirúrgica das estruturas adjacentes (esôfago, nervo laríngeo recorrente e cartilagem cricóide), pneumotórax e pneumomediastino. As intermediárias são: traqueítes, traqueobronquites, erosão traqueal, hemorragia, hipercapnia, atelectasia, decanulação do tubo de traqueotomia, obstrução da cânula de traqueotomia, enfisema subcutâneo, aspiração e abscesso pulmonar. As complicações tardias mais comuns são: estenose da laringe ou traquéia, persistência da fístula traqueocutânea, granuloma traqueal, traqueomalácia, fístula traqueoesofágica e dificuldade na decanulação.

Vivenciando esses problemas durante os últimos 25 anos, os autores do presente estudo tiveram por objetivo revisar a literatura e analisar os dados das crianças submetidas a traqueotomias em nosso serviço discutindo as indicações, complicações e técnicas cirúrgicas. E mostra a evolução dos conceitos relatados acima ao longo desses anos.

MATERIAL E MÉTODOS

No período de 1975 a 1999, 73 crianças foram traqueotomizadas - e foram estudadas as seguintes variáveis: sexo, cor (branca, parda ou negra), prematuridade, idade, peso, número de intubações prévias, duração da intubação, diagnóstico primário, indicação da traqueotomia, tipo de cirurgia (emergencial ou eletiva), presença de intubação orotraqueal no momento da cirurgia, complicações, tempo de traqueotomia e decanulação. Essas variáveis foram analisadas estatisticamente pelo programa EPI INFO, VERSÃO 68.

RESULTADOS

Durante esses 25 anos, 73 crianças foram traqueotomizadas pelo Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, envolvendo vários cirurgiões nos procedimentos cirúrgicos. Em relação ao sexo, 35 (47,9%) eram meninas; e 38 (52,1 %), meninos. Segundo a cor, a grande maioria era da cor branca - 61(83,6 %), dois (2,7%), da cor negra; e 10 (13,7%), da cor parda. Quanto à prematuridade, 58 (79,5%) nasceram a termo; e 15 (20,5%), a pré-termo (menos de 37 semanas). A idade no momento da traqueotomia variou de 15 dias a 18 anos, com uma média de quatro anos e dois meses (Tabela 1).

A duração da IOT variou de 0 a 96 dias, com média de 18 dias, e o número de intubações orotraqueais variou de 0 a 10, sendo a média de 1,8 intubações.

O diagnóstico primário das crianças traqueotomizadas pode ser observado na Tabela 2.

Após a observação dos dados da Tabela 2, as indicações para a realização da traqueotomia foram divididas em três grupos: higiene pulmonar, 16 (22,2%); obstrução de vias aéreas superiores, 27 (37,5%); e suporte ventilatório / intubação prolongada, 29 (40,3%).

Em 60 crianças (83,3%) a traqueotomia foi realizada como cirurgia eletiva; e 12 (16,7%), como cirurgia de emergência, em uma era indefinida. Durante a cirurgia, 59 (83,1%) das crianças estavam com intubação orotraqueal; e, em 12 (16,9%) das crianças, a cirurgia foi realizada com máscara de oxigênio e sob assistência do anestesiologista; e em duas crianças não obtivemos essa informação.

O tempo de permanência da traqueotomia variou de um dia a 7,8 anos, sendo a média de 15,2 meses, e nove (18,8%) pacientes ainda estão traqueotomizados. Em 11 crianças (22,9%), foi realizada laringotraqueoplastia, devido a estenose laringotraqueal.

Foram observadas sete complicações iniciais, sendo elas: dois pneumotórax, duas hemorragias, um pneumomediastino, uma atelectasia e um óbito. As complicações tardias descritas foram: 20 estenoses subglóticas, três decanulações acidentais, dois granulomas traqueais, duas fístulas traqueocutâneas e uma traqueomalácia.

Em duas crianças com fístula traqueocutânea foi necessário realizar um segundo procedimento cirúrgico, para se obter o fechamento da fístula.

DISCUSSÃO

Em nosso estudo, não observamos diferenças significativas quanto ao sexo, sendo que 35 crianças (47,9%) eram do sexo feminino; e 38 (52,1%), do sexo masculino. Diferentemente de nossos resultados, vários autores, como Line e colaboradores (88 masculino e 66 feminino)16, Carter e Benjamin (98 masculino e 66 feminino)3, Kenna e colaboradores19 (67 masculino e 57 feminino) e Palmer e colaboradores19 (174 masculino e 112 feminino) mostraram uma predominância do sexo masculino, mas não apresentaram dados que a justifiquem. A nosso ver, a proporção idêntica para masculino e feminino refletem, em nosso Serviço, a mesma proporção encontrada para crianças ao nascer, seja para os de baixo peso ou prematuros.



TABELA 1 - Distribuição segundo idade no momento da traqueotomia.



TABELA 2 - Distribuição segundo o diagnóstico primário.



Quanto à cor, encontramos 61 crianças brancas (83,6%), 10 (13,7%) da cor parda e duas (2,7%) da cor negra. No Brasil, é difícil saber se isso representa ou não uma predominância racial, pois não conhecemos a distribuição social da população atendida pelo nosso Serviço. Essa análise fica prejudicada, pois devemos observar que nosso Hospital é de referência, tendo crianças encaminhadas de outras Regiões, inclusive de outros Estados. Aparentemente, nossos dados assemelham-se aos da literatura, que mostra uma predominância da raça branca, equivalentes à distribuição racial de suas cidades ou países. Melhores conclusões a esse respeito serão feitas quando tivermos um melhor delineamento demográfico de nossa população e as doenças incidentes sobre ela.

Quanto à idade e a causa da traqueotomia observamos que 58 (79,5%) das nossas crianças nasceram a termo; e 15 (20,5%), a pré-termo, isto é, com idade gestacional menor que 37 semanas. Nessas últimas, a imaturidade neurológica e as doenças respiratórias pulmonares foram responsáveis: primeiro; pela intubação prolongada; e, segundo, pela traqueotomia. A idade das crianças traqueotomizadas variou de 15 dias a 18 anos, sendo que 35 crianças (48,6%) apresentavam menos que um ano de idade. Comparando com dados de outros autores, verificamos que, no trabalho de Carter e Benjamin3, as idades no momento da traqueotomia variaram de uma semana a 13 anos e 50% apresentavam menos de um ano de idade. Para Palmer e colaboradores19, as idades variaram de zero a 18 anos, e 31% das cirurgias foram realizadas em crianças menores que um ano; e 26%, entre 16 aos 18 anos. Todos esses autores, em resumo, mostraram que há queda na porcentagem de pacientes com maior idade e um aumento das traqueotomias realizadas em crianças mais jovens (menor que um. ano). Provavelmente, essa tendência pode ser explicada pelo aumento das crianças prematuras e lactentes colocadas em ventilação mecânica prolongada1, 2, 20 ,22

Quanto à indicação da traqueotomia, utilizamos os critérios adotados na literatura: obstrução das vias aéreas, assistência respiratória e higiene pulmonar22. Ao estudar essas indicações, observamos que não se modificaram ao longo dos últimos 25 anos, alterando, porém, a distribuição da incidência entre elas. Trabalho realizado por nós e por outros autores nas décadas de 70 e 80 apontavam a obstrução das vias aéreas superiores por infecção como a principal indicação das traqueotomias1, 2, 16, 20. Atualmente, observamos queda da indicação da traqueotomia por doença infecciosa obstrutiva da via aérea, sendo substituída pelas doenças pulmonares (suporte ventilatório/higiene pulmonar)19, doenças do SNC (23,3%); e, em crianças maiores ou adolescentes, pelo trauma. Quanto ao fator tempo de intubação para decidir quando fazer a traqueotomia, ele vem se modificando pelas razões expostas anteriormente. Entre 1975 e 1980, as crianças ficavam poucos dias intubadas, diferentemente do que ocorre nos dias atuais. Naqueles tempos, a falta de equipes médicas bem treinadas, inclusive de anestesiologistas, além do material de intubação precário, levavam a uma indicação precoce da traqueotómia. Nas décadas de 70 e 80, cinco a sete dias de intubação eram indicativo de traqueotomia e, atualmente, com as melhores condições de técnica, material do tubo e melhores ventiladores, além do treinamento da equipe médica, o paciente fica intubado semanas ou meses. Não sem razão, Line e colaboradores16 (1986) mostram a queda no número de traqueotomias apesar do aumento da população potencialmente candidata à traqueotomia. Entretanto, nos últimos anos há uma estabilização dessas tendências. Temos a impressão, confirmada por outros, de que isso se deve ao aumento na incidência das traqueotomias nas crianças menores de um ano, pelas razões citadas acima.

Nossos dados reforçam essa opinião. A duração da intubação antes de realizar a traqueotomia foi em média de 18,3 dias. As crianças que necessitaram de ventilação prolongada foram inicialmente intubadas por via orotraqueal. O tempo para se indicar a realização da traqueotomia nesse grupo de pacientes depende de vários fatores - entre eles, principalmente, a idade, pois prematuros geralmente toleram o tubo endotraqueal por vários meses, com edema e inflamação laríngea mínima. Em crianças com maior idade e adolescentes a cartilagem laríngea se torna mais rígida, e essa falta de complacência resulta na necessidade de se realizar a traqueotomia após duas ou três semanas de intubação orotraqueal22.

Porém, a intubação em crianças não é desprovida de riscos. Gaudet e colaboradores10 relatam que a idade do paciente, independentemente de suas condições clínicas (intubação prévia, necessidade de ventilação mecânica), podem estar relacionada com altas taxas de complicações. A incidência de morte após traqueotomia é de 3%; e de complicações, de 22% - sendo maiores quanto menor a idade da criança. Kenna e colaboradores" acrescentam que o peso, no momento da traqueotomia, parece ser um fator significante, sendo sinônimo, quase sempre, de prematuridade e da doença de base. Kenna e colaboradores14 encontraram 48% de complicações nas crianças a termo; e 65% nas crianças a pré-termo. Nossos dados mostram 36% de complicações em crianças de termo, e 31% em pré-termos. É um número alto, e acreditamos que pode ser diminuído por melhores cuidados com o paciente intubado, evitando-se principalmente as extubações espontâneas. Esse dado é constantemente citado na literatura, mas pouco quantificado.

Tivemos 57 (78,1%) crianças que tiveram menos de duas intubações, previamente a realização da traqueotomia, sendo que a média encontrada foi de 1,8 intubações por paciente. Também o número alto de pacientes que evoluíram com estenose laringotraqueal (15%) pode ser explicado pelo número de intubações prévias, levando a dificuldades na extubação e conseqüente traqueotomia12. Essa diferença pode ser explicada por recebermos crianças já intubadas por outros Serviços e pela particularidade da alta rotatividade das equipes intensivistas, por sermos um Hospital Escola.

Para prematuros, Benjamin e Carter3 acreditam que o uso dos diâmetros reduzidos de tubos nasotraqueais de polyvinylchoride, de 2,5 mm ou até mesmo de 2,0 mm, é o fator mais importante na prevenção da estenose subglótica pós-EOT.

Outras complicações como granulações do estoma, paralisia de corda vocal ou dificuldades para decanulação, exceto nos casos de estenose laringotraqueal, foram pouco observadas por nós. A morte foi observada em uma criança que estava traqueotomizada e internada para revisão de laringotraqueoplastia. Ela faleceu no período da madrugada e encontrada pela manhã. Esse período é crítico em cuidados médicos e de enfermagem, devido ao cansaço da equipe de saúde e o pequeno número de profissionais trabalhando nesse período, o que diminui a vigilância sobre o paciente.

CONCLUSÕES

Podemos afirmar que a traqueotomia é ainda, nos dias atuais, um procedimento usual em UTIs pediátricas, associada a suporte ventilatório prolongado. Embora a morbidade ainda seja alta, principalmente em recém-nascidos de baixo peso e lactentes. A melhoria da técnica cirúrgica e dos cuidados operatórios fazem com que seja um procedimento seguro para auxiliar a assistência respiratória.

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* Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
** Professor Livre-Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
*** Professor Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
**** Professor Assistente do Departamento de Saúde Publica, da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.

Trabalho realizado pela Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu-
Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço - UNESP- São Paulo.
Trabalho apresentado no 35° Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia. Recebendo Menção Honrosa.
Endereço para correspondência: Prof. Dr. Jair Cortez Montovani - Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP - 18618-000 Botucatu /SP - Brasil - Telefax: (0xx14) 6802-6256.
Artigo recebido em 15 de agosto de 2000. Artigo aceito em 20 de outubro de 2000.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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