Descrita em 1959(1), a otite externa maligna é por definição do conduto auditivo externo, geralmente causada pela Pseudomonas aeruginosa, que invade os tecidos periauriculares profundos e não responde aos tratamentos antibióticos orais e tópicos. Em 1968, Chandlerz 2 publica a primeira série de pacientes e usa pela primeira vez ò termo Otite Externa Maligna, para caracterizar essa patologia de caráter agressivo, que acomete principalmente os pacientes diabético. De elevada morbidade e mortalidade de 20% em adultos 3, sua patogênia é ainda hoje desconhecida.
São descritos em literatura 20 casos de crianças até a presente data, sendo que a idade do mais novo paciente é de dois meses 4. Ao contrário dos adultos, não é descrito comprometimento dos 6o, 9°, 10o e 12° pares cranianos em crianças, e há registro de apenas um óbito, em caso de anemia aplástica em estágio terminal, precedente à otite externa maligna5.
Apresentamos aqui ocaso de um recém-nascido de cinco dias, avaliando fatores causais comparando sua evolução com outros casos já publicados 4,6.
DESCRIÇÃO DE CASORN de cinco dias, masculino, nascido de operação cesariana, com 2.930g., foi trazido para atendimento médico por apresentar sangramento de ouvido direiro associado a paralisia facial no segundo dia de evolução.
Refere a mãe que ainda na maternidade notou que a criança apresentava umidade de conduto auditivo direito, sem sinais flogisticos associados, sendo submetida a "lavagem de ouvido" (SIC), no segundo dia de vida. No quarto dia de vida, já em casa, notou desvio de rima labial para o lado esquerdo e no dia seguinte, sangramento pelo conduto auditivo direito, apatia e inapetência.
Ao exame clinico de entrada, a criança apresentava-se apática, desidratada, com choro fraco. O exame otorrinolaringológico demonstrou paralisia facial completa à direita. Ao exame otológico observou-se intenso edema de conduto auditivo externo direito, comprometendo pavilhão, de aspecto hemorrágico, coberto por pele necrótica, drenando grande quantidade de secreção purulenta. A membrana timpânica, de dificil visualização, apresentava as mesmas características necróticas e hemorrágicas. Não havia na ocasião sinais flogísticos em região retroauricular sendo feito o diagnóstico de otite externa. Foi colhida cultura por ocasião do exame. A rinoscopia e orofarincoscopia revelaram-se normais.
EXAMES LABORATORIAISHematológico:
4.100.000 eritrócitos/mm3
14,0 g% de hemaglobina
42% de hematócritó
VCM 102, HCM34, CHCM 33
60.000 plaquetas
Série leticcocitária:
21.200 leucócitos
Contagem diferencial em %:
0 mielócitos
2 metamielócitos
29 bastonetes
34 segmentados
0 eosinófilos
0 basófilos
20 linfócitos
15 monócitos
Sorologia: VDRL, anti HTLVs, citomegalovirose e histoplasmose não reagentes.
Tomografia computadorizada (realizada no 112 dia de vida): conduto auditivo direito substituído por massa que apresenta densidade de partes moles. Velamento de mastóide e ouvido médio à direita, apresentando irregularidade dos contornos ósseos(fig.L)
Cultura da secreção de ouvido: Pseudomas aeruginosa.
Hemocultura- Pseudomonas aeruginosa.
Durante a internação a criança foi submetida repetidas vêzes à prova glicêmica por glicofita, sendo que em nenhuma eventualidade apresentou sinais de hiperglicemia.
A criança foi internada em UTI e recebeu além dos cuidados gerais, os antibióticos amicacina e oxacilina. Houve necrose da pele do conduto auditivo externo, que foi excluída em monobloco, com acúmulo de secreção seropurulenta de odor fétido e comprometimento da região mastóidea. Apesar dos cuidados intensivos e curativos diários, não apresentou melhora clínica, permanecendo a febre e mau estado geral. Após resultado da cultura de secreção do ouvido e hemocultura identificando o agente infeccioso, optou-se pela associação de amicacina e carbenicilina, a ser mantida por três semanas. Aos 19 dias de vida, como não apresentou melhora após sete dias do esquema antibiótico proposto e curativos realizados, o RN foi submetido a mastoidectomia. Após incisão retroauricular, foi feita a exposição da mastóide, que apresentava-se friável ao toque, com extensa necrose óssea. Iniciou-se bronqueamento procedendo-se esqueletização óssea. O conduto auditivo externo achava-se substituído por massa hiperplásica, polipóide e necrótica, que englobava os ossículos e o nervo facial, ocupando o ouvido médio em sua totalidade até a abertura timpânica da tuba auditiva, sem no entanto, comprometê-la. O osso timpânico apresentava-se completamente solto, sendo retirado durante o ato cirúrgico.
Foram retirados o martelo e a bigorna, procedendo-se a limpeza da caixa em sua totalidade, identificando-se o nervo facial que foi limpo em toda a sua extensão. Poupou-se o estribo, sendo que não foi aberta a janela oval. Feita ampla contra-abertura, sutura da incisão e curativo com gaze furacinada (fig.2). Todo o material retirado foi submetido a exame anatomo-patológico que resultou no diagnóstico de processo inflamatório crônico e agudo, supurado e inespecífico.
Após a cirurgia a criança apresentou melhora importante do estado geral, ocorrendo apenas um pico febril isolado no 3° dia pós-operatório. Houve normalização do quadro hematológico, que no 4° dia pós operatório apresentava os seguintes valôres:
Hematológico:
4.900.000 eritrócitos /mm3
13,9 g% de hemoglobina
42% de hematócrito
Série leucocitária:
15.100 leucócitos
Contagem diferencial em %:
0 mielócitos
0 metamielócitos
1 bastonete
21 segmentados
9 eosinótilos
0 basófilos
68 linfócitos
1 monócito
Hemocultura: negativa
Recebeu alta da UTI no 5° dia pós-operatório, passando para a enfermaria em bom estado geral. O curativo furacinado da cavidade foi trocado no 2° dia e retirado no 4° dia, sendo feita aspiração e lavagem diária com amicacina durante a 1ª semana, quando houve melhora do quadro supurativo. Houve estenose cicatricial com boa epitelização, persistindo porém, umidade proveniente do orifício tubário, de aspecto catarral. Na ocasião foi colhida nova cultura da secreção, que resultou negativa. A alta hospitalar aconteceu no 17° dia pós operatório, quando terminado o esquema antibiótico proposto. A criança apresentava bom estado geral, cavidade cirúrgica sem sinais infecciosos com persistência da paralisia facial. Já no primeiro retorno ambulatorial, três semanas após a cirurgia, o ouvido acometido encontrava-se sêco e com bom aspecto. Persistiu a paralisia facial (fig.3) e o estudo dos potenciais evocados do tronco cerebral apresentou-se normal.
Imunoeletroforese de proteínas (realizada no 3° mês de vida):
Proteínas totais - 5,8g/dl
Imunoglobulinas policlonais - Arcos de precipitação normais.
FIGURA 1 - Tomografia computadorizada com 11 dias de vida, mostrando comprometimento do ouvido externo e médio à direita.
FIGURA 2 - Aspecto da cavidade cirúrgica no terceiro dia pós-operatório.
DISCUSSÃONo período neonatal, há uma suscetibilidade maior a infecções causadas por tiram negativos, condição essa atribuída à deficiência de IgM, que não atravessa a barreira placentária e é mais afetiva que a IgG herdada da mãe, na opsonização dessas bactérias7. Como não há síntese de imunoglobulinas nessa época, a condição de imunossupressão própria do recém-nascido, fornece neste caso, o substrato necessário ao desenvolvimento de otite externa maligna.
A bactéria Pseudomonas aeruginosa é considerada saprófta comum em meios hospitalares, capaz de desenvolver-se até em água destilada 8. Segundo RUBIN, a incidência de otite externa maligna em adultos submetidos a irrigação do conduto auditivo externo é significativamente maior que nos demais pacientes9. O traumatismo do conduto causado pela irrigação, associado a condições favoráveis à penetração do agente agressor, seriam fatores fundamentais no desenvolvimento da otite externa maligna. Neste caso, acreditamos que a manipulação do conduto auditivo da criança, associada à deficiência imunológica apresentada, tenha sido o fator desencadeaste da infecção apresentada.
A tomografia computadorizada, embora sem função diagnóstica, foi importante na documentação da extensão da doença, demonstrando erosão e velamento da mastóide ipsilateral.
O quadro descrito pode ser errôneamente confundido com una otite média, levando ao comprometimento do nervo facial e necrose de membrana timpânica. Devemos considerar que apenas 10% das otites médias associadas paralisia facial são causadas pela Pseudomonas aeruginosa enquanto na otite externa maligna, tal bactéria aparece em quase 100% dos casos, A paralisia facial na otite externa maligna é permanente e completa enquanto na otite média é transitória e parcial 6,11. Como descrito por COSER12, a necrose decorrente do processo infeccioso provocou exclusão de todo o conduto auditivo sem monobloco e apenas tardiamente deu-se o comprometimento da região mastóidea.
FIGURA 3 - Criança com um mês, apresentando paralisia facial direita.
O tratamento utilizado, associou 1 aminoglicosídeo e uma penicilina anti- Pseudomonas, conforme preconizado em literatura1,13. Desafortunadamente, o uso do ciprofloxacin, que vem apresentando bons resultados no tratamento da otite externa maligna em adultos, é desaconselhado em crianças por ser potencialmente lesivo às articulações em desenvolvimento14.
Em relação aos adultos e crianças maiores, o recém-nascido apresenta rápida deterioração do quadro clínico, evoluindo para o óbito em questão de horas, assim como notável resposta ao tratamento adequado das doenças que apresenta7, o que pudemos neste caso. A limpeza cirúrgica foi fator determinante na resolução do caso, em desacordo com RUBIN, que preconiza apenas o debridamento local com retirada do material necrosado, conduta por nós utilizada inicialmente 6. Como descrito por SOBIE, a paralisia facial foi definitiva e completa, não regredido após a mastoidectomia e descompressão do VII par 15 . O autor, atribui o fato à lesão do nervo em estágios iniciais da doença, favorecida pelas condições anatômicas e maior suscetibilidade em crianças.
Em quatro meses do seguimento, a criança não apresentou quaisquer outras infecções de gravidade ou recurrência do progresso otológico, levando-nos a concluir pela não existência de imunodefciência, a não ser por ocasião do nascimento, devido à sua própria condição de recém-nascido.
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14. SCHLUTER, G.: Ciprofloxacin: review of potential toxicological effects. Am. J., Med. 82(suppl. 4A):91-93, 1987.
15. SOBIE, S.; BRODSKY, L.; STANIEVICH, J.F.: Necrotizing extemal otitis in children: report of two cases and review of the literature. Laryngoscope,97:598-601, 1987.
* Médico Assistente da Disciplina de ORL do HCFMUSP
** Professor Associado da Disciplina de ORL do HCFMUSP
*** Médico Assistente da ORL do Hospital Universitário da USP
**** Professor Titular da Disciplina de ORL do HCFMUSP
Trabalho realizado na Clínica ORL do Hospital das Clínicas da FMUSP e Hospital Universitário da USP.
Endereço dos autores: R Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 sala 6021, São Paulo, SP Brasil CEP: 05403