INTRODUÇÃOA infecção crônica do ouvido é uma entidade nosológica que preocupa de há muito os profissionais da saúde.
Como toda doença, suas complicações e conseqüências têm gravidade proporcional à ignorância que se tem dela. A otite média crônica é causada pela negligência e falha no tratamento das infecção otológicas, antes de elas se cronificarem. Com a melhora da medicina preventiva nas escolas, a disseminação de creches bem estruturadas e o melhor acesso aos pediatras, esta patologia de ouvido será reconhecida precocemente e as otorréias crônicas contínuas ou intermitentes, levando por vezes à disacusias severas, tendem a desaparecer.
No Brasil da década de 90, o baixo padrão econômico do povo somado à indiferença das autoridades, traz essa população carente, com patologias crônicas de ouvido, em número cada vez maior aos grandes centros universitários e cada vez menor à clínica privada.
Miringoplastia é freqüentemente lembrada como uma "operação fácil". É o procedimento mais usado para iniciar o tratamento do cirurgião na reconstrução do ouvido médio. As expectativas de sucesso são altas e o fechamento precoce da perfuração é presumivelmente permanente (TOS, 1974 e PALVA, 1987), embora trabalhos sérios com controle pós-operatório mais longo mostrem que esta afirmação pode ser discutível (HALIK & SMYTH, 1987). Resultados a longo termo aceitáveis (90% ou mais de sucesso) são difíceis de obter mesmo na mão de cirurgiões mais experimentados.
O propósito de uma timpanoplastia é criar um ouvido médio funcionante e livre de infecção. Na clínica isto significa fechamento do "gap" condutivo e ouvido seco. Se a otorréia recidiva, a operação pode ser considerada falha. A ausência de qualquer melhora auditiva ou sua piora também pode ser considerada falha. O fechamento do "gap" condutivo é raramente obtido sistematicamente. Se as estruturas do ouvido médio estão intactas, as chances de reparo bem-sucedido estão em mais de 90%.
Os pacientes, desconfiados, com medo da competência técnica dos jovens cirurgiões otológicos em treinamento, trazem dentro de si uma dúvida que é de todos: há diferença entre ser operado num serviço universitário e numa clínica privada? Como esta resposta em toda sua amplitute exigiria exame amplo de diversos procedimentos cirúrgicos, pareceu-nos que a análise de resultados da miringoplastia poderia servir como um bom parâmetro de avaliação do aprendizado cirúrgico no serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, num sentido mais estrito.
MATERIAL E MÉTODOSEm uma pesquisa histórica (estudo de coorte), foram reunidos os prontuários dos pacientes submetidos a timpanoplastia no serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná, no período de 1972 a 1990. Foram protocolados 101 casos. Os demais casos foram excluídos, em sua maioria, por insuficiência de dados, mas também pelos seguintes critérios:
- TIPO DE TIMPANOPLASTIA
- TÉCNICA
- COMPLICAÇÕES CIRÚRGICAS TRANSOPERATÓRIAS
Somente foram levadas em conta as timpanoplastias tipo 1 de Wullstein ou miringoplastias, sem intervenções na cadeia ossicular ou mastóide, ou complicações transoperatórias alheias ao desempenho do cirurgião.
O acesso sempre retroauricular e a técnica ligamento-ligamento permitiram uniformizar os tempos operatórias e maior facilidade na descrição cirúrgica do prontuário. Não preenchendo estes critérios, o caso era excluído.
A técnica ligamento-ligamento (FLEURY, 1974) consiste em descolamento de retalho meatal único, anterior e posterior, incluindo todo o anel timpânico, excluindo somente os ligamentos maleolares. A seguir, descolamento do tímpano residual do cabo do martelo e colocação de enxerto autólogo amplo de fáscia temporal, sob o cabo do martelo. Fechamento por planos.
Embora esta intervenção comporte perfeitamente anestesia local (BALLANTYNE, 1978), elas foram todas realizadas sob anestesia geral, dada as necessidades de aprendizado.
O interesse maior é a qualidade do aprendizado em função dos resultados cirúrgicos apresentados, coletados nos seguintes dados:
CIRURGIÃO
Foram 2 os médicos responsáveis pela instrução cirúrgica otológica no serviço, com apenas quatro exceções nas 101 cirurgias realizadas, seguindo a mesma técnica padrão, com tempos operatórios uniformes.
AUXILIAR
Foram 20 os médicos residentes que passaram pelo aprendizado cirúrgico otológico, todos no segundo ano de residência. Iniciam somente observando o preceptor operar e no decorrer do ano vão tendo participação crescente, de modo que no fim do ano, podem estar operando sozinhos, ainda que sob supervisão.
O critério que norteou a participação em cada uma dessas etapas foi só a capacidade técnica de execução. O Preceptor retomou a direção do ato operatório sempre que sentiu dificuldade do residente em prosseguir.
A responsabilidade assumida variou com a habilidade individual a cada época do ano, que foi divido em quatro trimestres.
TRIMESTRE DA CIRURGIA
Foram comparados os resultados obtidos em cada trimestre, ressaltando-se, mais uma vez, que no primeiro trimestre as cirurgias são praticamente do preceptor e, no quarto trimestre, em grande parte, do residente.
A avaliação do sucesso obtido foi feita segundo critérios audiológicos e de otoscopia (pega do enxerto) como se verá adiante.
AUDIOMETRIA
Foi realizada audiometria pré e pós operatória em um dos dois audiômetros do Serviço, sendo as mais antigas, por um mesmo otologista e as mais recentes, pela fonoaudióloga do Serviço.
CRITÉRIOS PARA AVALIAÇÃO DO RESULTADO AUDITIVO
a) ÓTIMO: "Gap" condutivo fechado (< 10 dBs) com via óssea preservada,
b) BOM: Melhora da média da via aérea (500-1000 e 2000 Hz), estando a via óssea preservada mas permanecendo "Gap" > 10 dBs.
c) REGULAR: Média da via aérea inalterada (+ 5 dBs).
d) PÉSSIMO: Piora na média da via aérea (> 10 dBs).
O critério do nível social da audição (cochicho (30 dBs), voz normal (40 dBs), voz alta (50 dBs) e grito (60 dBs) não foi utilizado por não fazer parte da rotina de nossa avaliação clínica.
COMPLICAÇÕES PÓS-OPERATÓRIAS
Por "complicações pós-operatórias", entenda-se a permanência ou não da perfuração, a pega do enxerto verificada otoscopicatnente pelo residente ou assistente mais acessível na ocasião da audiometria pós-operatória.
COMPARAÇÃO DE RESULTADOS
Em resumo, foram dois os critérios utilizados na comparação de resultados obtidos no primeiro e último trimestre.
a) Resultados audiométricos (diagrama esquemático 1) (HULLEY & CUMMINGS, 1988).
b) Pega do enxerto (diagrama esquemático 2) (HULLEY & CUMMINGS, 1988).
RESULTADOSForam operados no primeiro trimestre 13 (12,87%) e no quarto trimestre 22 (21,78%) dos 101 pacientes.
DIAGRAMA 1
DIAGRAMA 2
TABELA I - Distribuição da pega de enxerto e do resultado audiométrico por trimestre - 101 pacientes.
TABELA II - Teste z para diferença de proporções da pega de enxerto por trimestre.
TABELA III - Teste z para a diferença de proporções da pega de enxerto por trimestre.
Não é significativa a diferença de proporções de enxertos pegos entre os 12 (92,31 %) dos 13 pacientes operados no primeiro trimestre e os 18 (81,82%) dos 22 pacientes operados no quarto trimestre.
Não existe diferença significativa entre as proporções dos resultados audiométricos ótimo e bom apresentados pelos 7 (53,85%) dos 13 pacientes operados no primeiro trimestre e pelos 12 (54,55%) dos 22 operados no quarto trimestre.
CONCLUSÃONão há relação entre o sucesso cirúrgico (pega do enxerto e audiometria) e o trimestre da realização do ato operatório.
DISCUSSÃOHá diferença entre ser operado num serviço universitário e numa clínica privada ?
As tabelas I, II e III são a resposta para a pergunta inicial, motivo deste trabalho.
Assim, adaptem-se números obtidos na tabela I aos diagramas esquemáticos 1 e 2:
a) Diagrama esquemático 1 quanto aos resultados audiométricos.
Aplicado o teste z para diferença de proporções dos dois trimestres (tabela III), conclui-se não haver diferença significativa entre eles.
b) Diagrama esquemático 2 quanto a pega de enxerto.
Aplicado o teste z para diferença de proporções dos dois trimestres (tabela II), conclui-se não haver diferença significativa entre eles.
Embora a influência exata do residente no resultado cirúrgico, não importa qual período do ano, seja bastante discutível dentro dos critérios já expostos, é possível, a grosso modo, uma avaliação global da otocirurgia no Serviço Universitário estudado.
Os resultados deste trabalho, quanto a pega de enxerto, apesar da intervenção dos residentes, estão próximos aos da literatura, se for levado em conta que os autores relatam cirurgias executadas quase sempre por um mesmo cirurgião com pacientes de nível sócio-cultural melhor. No presente estudo, os dados englobam todas as intervenções com participação dos residentes, em pacientes carentes que, por causas várias, não fazem o pós-operatório ideal.
SMYTH (1976) - 95%
GLASSCOCK III (1982) - 93%
PALVA (1969) - 93%
VARTIAINEN & KARJALAINEN (1985) - 89%
GIBB & CHANG (1982) - 89%
SMYTH & HALIK (1986) - 89%
SHEEHY & ANDERSON (1980) - 88%
TOS (1980) - 88%
PRESENTE ESTUDO - 81,19%
Conclui-se que, no Serviço Universitário do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, a miringoplastia, tanto no início (1 trimestre) como no final (4 trimestre) do aprendizado, tem resultados compatíveis com os de serviços particulares e da literatura, não correndo, o paciente, nenhum risco adicional quando operado neste Hospital Universitário.
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Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Clínica Cirúrgica do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Parará para obtenção do Título de Mestre.
Endereço do Autor: R. Ébano Pereira, 11 - 1702 - CEP 80410 - Curitiba/PR.