INTRODUÇÃO
A otite média crônica simples é uma entidade anátomo-clínica, caracterizada por uma inflamação crônica do revestimento mucoso da cavidade timpânica e células mastóideas, e freqüentemente da tuba auditiva.
Apresenta múltiplas causas, muitas vezes associadas entre si, dando um caráter multifatorial a esta patologia. Dentre as causas embriológicas, destacam-se uma deficiência na absorção da matriz de tecido mesenquimal, que preenche o ouvido médio no período fetal, ocasionando uma disfunção tubária por obstrução, prejudicando a ventilação normal desta cavidade. Podem existir ainda, variações anatômicas individuais, geneticamente condicionadas, que prejudicam o funcionamento tubário, tais como promontório proeminente, processo coclearifonne exuberante, entre outros. Deve-se considerar também, disfunções da tuba a nível de rinofaringe, sejam mecânicas ou funcionais, como hipertrofia adenoideana e processos alérgicos das vias aéreas superiores respectivamente.
As condições referidas acima, muitas vezes associadas a deficiências imunitárias locais, como déficit relativo de IgA, IgM e, principalmente, IgG, comuns na infância, predispõem a processos infecciosos frequentes. As otites médias agudas de repetição ou de má evolução, podem evoluir com ruptura da membrana timpânica, seja por necrose infecciosa, ou por isquemia causada pelo abaulamento. Os agentes normalmente envolvidos são o S.pneumoniae, H.influenza e S.aureus1, e na debelação do processo costuma ocorrer a cicatrização da membrana. Quando isto não ocorre, teremos como seqüela desse processo, uma perfuração timpânica permanente, caracterizando uma otite média crônica simples. Com a perda dessa barreira, e favorecido pelas alterações da mucosa, a caixa timpânica passa a ser sede de infecções constantes agora causadas por Raeruginosa, S.aereus e anaeróbicos 2,3,4, manifestando-se clinicamente por otorréia. Deve-se lembrar também das otites médias crônicas por perfurações traumáticas da membrana timpânica: acidentais, por corpo estranho, barotrauma e pós operatória (paracentese, tubo de ventilação).
As miringoplastias visam reconstituir a membrana timpânica, dando condições para que o ouvido médio e a tuba se restabeleçam, retornando a uma fisiologia normal. Existem controvérsias quanto a necessidade do uso de antibioticoterapia local ou sistêmica no pós-operatório de miringoplastias em ouvidos sem sinais clínicos de atividade infecciosa. O objetivo deste estudo é estabelecer a relação entre a pega de enxertos nessas intervenções, com uso de antibioticoterapia sistêmica no pós-operatório imediato, com a finalidade de se determinar a necessidade de seu uso de rotina em miringoplastias.
CASUÍSTICA E METODOLOGIA
Foram selecionados 74 pacientes consecutivos, nos quais houve a possibilidade de obter-se um acompanhamento ambulatorial pós operatório ideal, submetidos a miringoplastias na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, no período de 1990 a 1991.
A idade dos pacientes variaram de 11 a 48 anos com idade média de 24,8 anos, sendo 57,5% do sexo feminino.
Todos os pacientes eram portadores de otite média crônica simples, estando com o ouvido sem sinais de processo infeccioso, e sem granulações ou edema de mucosa, há pelo menos 90 dias antes da cirurgia.
A técnica cirúrgica empregada foi a miringoplastia via endaural ou retroauricular, nos casos de conduto auditivo estreito, com o uso de enxerto de fáscia temporal. Inicialmente eram reavivadas as bordas de perfuração timpânica, com retirada do anel fibroso. Era realizada a incisão da pele até periósteo da parede posterior do conduto, com descolamento sub-periostal até a cavidade timpânica, seguido do rebatimento anterior do retalho tímpano-meatal.
O enxerto era colocado sob o retalho, cobrindo toda a perfuração. A cavidade timpânica era então preenchida com esponja cirúrgica absorvível (Gelfoatn), sustentando o enxerto no reposicionamento do retalho tímpano-meatal. A mesma esponja é colocada no conduto auditivo, não sendo aspirada no pós operatório.
O ato cirúrgico foi realizado sob condições assépticas, sendo a cavidade timpânica e o conduto auditivo protegidos da penetração da solução antisséptica.
O uso da antibioticoterapia ou não foi aleatório, ficando a critério do cirurgião. Os antibióticos empregados foram ampicilina (50 mg/kg/dia) ou cefalotina (50 mg/kg/dia) durante dez dias.
Os pacientes foram avaliados em ambulatório após um período de 90 dias quanto a pega ou não do enxerto. Foram selecionados os últimos 37 casos operados com pega total de enxerto (Grupo A), e os últimos 37 casos de insucesso cirúrgico (Grupo B). Dentro desses grupos foi analisada a influência do uso da antibioticoterapia pós operatória.
RESULTADOS
Dos 74 pacientes estudados, 68 foram submetidos a miringoplastia por via endaural, enquanto 6 por via retroauricular.
No Grupo A, constituído pelos 37 indivíduos com pega total do enxerto, 28 pacientes (75,7%) foram submetidos a antibioticoterapia e 9 (24,3%) não fizeram uso de medicação. No Grupo B, constituído pelos 37 indivíduos que não obtiveram resultado cirúrgico esperado, 26 pacientes (70,3%) utilizaram antibiótico, enquanto 11 (29,7%) não fizeram uso de medicação.
No Grupo A, 4 pacientes foram submetidos a miringoplastia por via retro-auricular, sendo todos submetidos a antibioticoterapia. No Grupo B, em 2 pacientes foi utilizada a via retro-auricular, sendo também submetidos a antibioticoterapia.
Foi aplicado o teste estatístico de análise de variância para a avaliação dos resultados, não havendo diferenças significantes entre os grupos estudados (p menor ou igual a .005).
DISCUSSÃO
Como já nos referimos, os pacientes por nós estudados eram portadores de otite média crônica simples e foram submetidos a miringoplastia após pelo menos 90 dias sem sinais de infecção, sob técnica asséptica. No ato operatório foi utilizada esponja cirúrgica absorvível, que embebida em sangue e à temperatura de 37 graus centígrados, consiste em um meio de cultura em potencial, propício para a proliferação bacteriana.
A antibioticoterapia que empregamos no pós operatório visou cobrir os patógenosque poderiam colonizaressemeio de cultura, provindos de rinofaringe (S.pneumoniae, S.aureus, H.influenza, entre outros), ou da equipe cirúrgica (S.epidermides principalmente), que proliferando no ouvido recém operado poderiam prejudicar a integração do enxerto.
Entretanto, não está determinada a real influência da infecção na pega do enxerto. Se por um lado a infecção importante pode determinar necrose do enxerto, por outro, o processo inflamatório que uma infecção leve ocasiona, provoca vasodilatação, neo-vascularização, migração celular e exudato proteico, formando uma matriz que poderia colaborar no processo de epitelização do enxerto.
A importância do processo inflamatório no fechamento de perfurações timpânicas é salientada por Spandow em 19905. O autor estudou 62 perfurações traumáticas experimentais em ratos, comparando o efeito da hidrocortisona tópica no tempo de fechamento das perfurações. Concluiu que este era aumentado na vigência da corticoterapia, devido à diminuição do processo inflamatório da membrana, comprovado histologicamente.
Fry, em 19796, realizando estudo experimental em ratos, estudou 117 perfurações traumáticas de membrana timpânica, comparando o uso de antibiótico e corticóide tópicos com grupo de controle, e não encontrou diferença significativa no índice de fechamento das perfurações, assim como na taxa de infecções.
Considerando-se que a esponja cirúrgica absorvível não possui nenhum antibiótico ou antísséptíco em sua composição, poderíamos supor que, uma vez embebida em sangue e à temperatura corpórea, poderia constituir um meio de cultura em potencial, propiciando a instalação de processos infecciosos.
Light, em 19458, em trabalho experimental em 20 ratos submetidos a colocação de esponja cirúrgica no ouvido médio, verificou que a gelatina desaparecia em 3 a 5 semanas sem deixar reações locais.
Hellstrow, em 19839, estudando experimentalmente 40 ouvidos de ratos nos quais introduzia esponja cirúrgica no ouvido médio, observou a caixa timpânica após 2 ou 3 meses; não encontrando processo infeccioso em nenhum caso.
Esses autores sugerem, deste modo, que a presença de esponja cirúrgica absorvível na caixa timpânica não aumentam as complicações cirúrgicas.
CONCLUSÃO
Em nosso estudo não encontramos diferenças significativas na taxa de pega de enxerto entre os indivíduos submetidos ou não a antibioticoterapia sistêmica pós operatória. Esses resultados nos permitem concluir que o uso de antibiótico sistêmico não interfere no resultado cirúrgico final em miringoplastias.
BIBLIOGRAFIA
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*Residentes do hospital das Clinicas da FMUSP **Pós-Graduanda de Clínica Otorrinolaringológica da FMUSP ***Professor doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP ****Professor titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP *****Professor associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP
Trabalho realizado na Clinica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (LIM-32).
Fonte: CEDAO - Centro de Estudos e Desenvolvimento Avançado era Otorrinolaringologia. Endereço: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255, 6°-a., sala 6021 - São Paulo - SP.
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