INTRODUÇÃOApesar dos inúmeros trabalhos realizados a respeito até o momento, ainda não se tem um perfil completo da fisiopatologia das amidalites de repetição e suas repercussões, tanto no sistema imunológico local quanto sistêmico.
São várias as hipóteses que tentam explicar o desencadeamento dos processos infecciosos de repetição: presença de microorganismos produtores de beta-lactamase impedindo a ação das penicilinas sobre as bactérias normalmente sensíveis; modificação da função das criptas amidalinas, seja por alteração da queratinização das mesmas ou por processo inflamatório causando dificuldade para a ação dos antibióticos; associação com processos alérgicos levando a edema do córion e alteração da fisiologia normal do tecido linfóide; presença de germes aeróbios e anaeróbios e imunossupressão local das amídalas secundaria à estimulação antigênica bacteriana constante.
Apesar da maioria dos trabalhos apontarem para as alterações imunológicas locais como causa das amidalites agudas de repetição, alguns autores chamam a atenção para a presença de imunodeficiência humoral nessas crianças; e, daí, recomendarem a dosagem de imunoglobulinas e subclasses de IgG antes da realização de amigdalectornia.
Frente a estas observações, O objetivo deste estudo foi o de avaliar a imunidade humoral de crianças portadoras de amidalite aguda de repetição com e sem hipertrofia amigdaliana por meio da dosagem sérica de imunoglobulinas A, M e G e subclasses de IgG (1, 2, 3 e 4).
MATERIAL E MÉTODOSessenta crianças acompanhadas no Ambulatório de OKL Pediátrica do Hospital São Paulo --UNIFESP, no período de junho de 1992 a fevereiro de 1995, foram divididas em três grupos, como se segue:
- Grupo I: 20 crianças (11 do sexo masculino e 9 do sexo feminino) com idade entre 2 e 10 anos, com quadro de amidalite aguda de repetição e hipertrofia amigdaliana.
- Grupo II: 20 crianças (11 do sexo masculino e 9 do sexo feminino) com idade entre 2 e 8 anos, com quadro de amidalite aguda de repetição sem hipertrofia amigdaliana.
- Grupo III: 20 crianças (11 do sexo feminino e 9 do sexo masculino) com idade entre 2 e 11 anos, cora hipertrofia de amídalas e sem amidalites de repetição.
Considerou-se como história clínica de amidalite aguda o relato de dor de garganta acompanhada por febre, queda dó estado geral, inapetência, aumento de linfonodos cervicais, podendo ainda ocorrer otalgia reflexa, cefaléia, dores musculares e que, ao exame deorofaringe, apresente hiperemia, edema e-exsudato purulento nas tonsilas palatinas. Quanto ã hipertrofia das amídalas, foram incluídos nos grupos I e 111 apenas crianças com grau IV de hipertrofia, de acordo com a classificação de Brodsky, 1989. Em relação ã freqüência das infecções, foi considerada como amidalite recorrente a ocorrência de cinco a sete episódios em um ano, ou quatro episódios em dois anos consecutivos ou ainda três episódios ao ano em três anos consecutivos2.
Todos os pacientes foram submetidos a dosagem sérica de IgA, IgM, IgG e subclasses ele IgG (IgGl, IgG2, IgG3 e IgG4), tomando-se O cuidado de estarem há pelo menos um mês isentos do uso de anti-histamínicos ou corticosterõides tópico ou sistêmico. Foram excluídos deste estudo pacientes cota outras doenças sistêmicas associadas ou diagnóstico prévio de imunossupressão.
Para a determinação das imunoglobulinas, foi utilizado método de imunodifusão radial segundo Mancini,1lerernans e Carbonara. Os resultados foram então comparados com o padrão de normalidade de crianças na mesma faixa etária obtido em nosso meio por Fujimura. Consideraram-se corno normais os valores entre os percentis 2,5 e 97,5. Para interpretação dos resultados, foi aplicada a analise de variância proposta por Kruskall-Wallis, sendo que se fixou em 5% o nível de significância.
RESULTADOSQuanto às características clínicas dos nossos pacientes, achamos importante salientar que a maioria das crianças encontrava-se na faixa etária de três a seis anos, sem predominância de sexo ou raça. A maioria das crianças (76%) apresentou mais de seis crises ao ano, com duração média de cinco a sete dias, com maior ocorrência no inverno, permanecendo dois a três dias com febre, dor severa, necessitando de afastamento de suas atividades por dois a cinco dias em média e diminuição do apetite pelo mesmo período.
Os resultados da dosagem sérica de imunoglobulinas mostrou (Tabela 1):
- IgA: observou-se valorbaixo de IgA em uma criança do Grupo 1 (amidalites de repetição com hipertrofia), sem diferença estatística entre os três grupos para a média dos valores de IgA (Gáfico 1);
- IgM: não foi observado valor abaixo elo normal em qualquer criança nos três grupos;
- IgG: não foi observado valor abaixo do normal em qualquer criança nos três grupos.
Subclasses de IgG:
- lgGI: valores dentro da normalidade. o IgG2: valores dentro da normalidade. o IgG3: valores dentro da normalidade.
- IgG4: obtiveram-se valores indetectaveis de IgG4 (< 4 mg/ ml) em cinco pacientes do Grupo 1, em seis pacientes do Grupo 11 e em quatro pacientes do Grupo 111.
DISCUSSÃOMesmo após o desenvolvimento dos antibióticos, que possibilitou um melhor controle dos quadros agudos de amidalite e diminuição do número de complicações (abscessos e septicemias, entre outras), a tonsilectomia ainda se mantinha como urna das cirurgias mais realizadas em todo o mundo, já que pouca função se atribuía às amídalas. Com o desenvolvimento da imunologia e confirmado o importante papel desse órgão linfóide no processo de captação e apresentação de antígenos, produção de imunoglobulinas e formação de células de memória de defesa, surge a dúvida sobre o efeito da amigdalectomia
na imunidade dos indivíduos, principalmente entre as idades de dois a dez anos, período em que as amígdalas são imunologicamente mais ativas. Nesta época surgem as primeiras citações sobre os achados de deficiência humoral nos indivíduos com amidalite aguda de repetição".
Ao analisar nossos resultados quanto às dosagens séricos de imunoglobulinas e subclasses de IgG, obtivemos apenas uma criança com quadro de amidalites de repetição e hipertrofia amigdaliana (Grupo I), que apresentou diminuição dos níveis séricos de IgA, sem outras infecções associadas. A deficiência de IgA tem sido descrita, tanto em indivíduos assintomáticos quanto em associação com outras manifestações clínicas, como causa ele maior susceptibilidade a infecções dos tratos respiratório, geniturinário e gastrointestinal, doenças auto-imunes, quadros graves ele atopia e tumores linfoproliferativos'. Pode também aparecer associada a deficiências de subclasses de IgG, principalmente IgG2 e IgG4`-9. A diminuição do nível sérico de IgA não implica necessariamente em presença de deficiência de IgA, uma vez que para se firmar diagnóstico nesse sentido há a necessidade de dosar-se a IgA salivar e, muitas vezes, dependendo ela idade do paciente, ele deverá ser submetido, à reelosagem, por ser possível tratar-se de urna imaturidade do sistema imunológico. Pensamos, no entanto, que, se na população brasileira normal pode haver 1:965 indivíduos com diminuição de nível sérico de IgA, o encontro de um paciente com diminuição desta imunoglobulína em uni grupo de 40 pacientes com infecções de repetição pode ter algum significado.
Os níveis séricos de IgM e IgG apresentaram-se dentro elos limites de normalidade e, em alguns casos, até aumentados, o que é compatível cola a maioria dos trabalhos em crianças com amidalites agudas de repetição e também em outras infecções recorrentes de vias aéreas superiores, como conseqüência da estimulação constante do sistema imune.
As subclasses de IgG encontram-se normalmente distribuídas no soro na seguinte proporção: 58 a 71,5% de IgGI; 19 a 31% ele IgG2; 5 a 8,4% de IgG3; e 0,7 a 5% de IgG4. Estas podem estar alteradas de maneira isolada ou em combinação, e o nível sérico normal de IgG total pode não refletir eventuais diminuições nas concentrações séricos das suas subclasses. A composição dos anticorpos para diferentes antígenos varia muito entre as quatro subclasses. Anticorpos para antígenos protéicos são freqüentemente das subclasses IgGI e IgG3, incluindo proteínas bacterianas, virais principalmente e autcílogas. Para antígenos polissacarides, entre eles os germes capsulados, tendem a ser da subclasse IgG2, podendo, em crianças, também serem encontrados da subclasse IgG 119. Quanto ã IgG4, apesar ele constituir menos de 5% da concentração de IgG total, sua atividade como anticorpo pode chegar a 50 %, principalmente para. antígenos indutores de IgE, sendo que possui resposta a estímulos prolongados.
Em nosso estudo não obtivermos qualquer valor alterado de IgG I, IgG2 e IgG3. Quanto à dosagem de IgG4, atribuímos os valores indetectaveis obtidos nos três grupos estudados a uma menor sensibilidade da técnica de imunodifusão radial, por nós utilizada, quando comparada à técnica de ELISA, principalmente no que se refere aos valores dosados em crianças. No paciente que neste estudo apresentou diminuição do nível sérico de IgA, obteve-se nível de IgG4 normal.
Nossos achados não permitiram uma correlação direta entre amidalite aguda recorrente e/ou hipertrofia amigdaliana, mas achamos necessário o prosseguimento de nossa linha de pesquisa, aumentando a casuística e realizando também a dosagem ele IgA salivar, para melhor avaliação da imunodeficiência hurnoral em pacientes com amidalite aguda ele repetição.
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* Doutora em Medicina pela EPM-UNIFESP.
** Pós-Graduandado Departarnentode Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana-EM-UNIFESP.
*** Professor Livre-Docente e Chefe da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica da UMA UNIFESP.
**** Professor Livre - Docente e Chefe da Disciplina de Alergia, Imunologia e Reumatologia do Departamento de Pediatria da EM-1 UNIFESP.
Instituição: Disciplina de ORL Pediátrica do Departamento ele Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana -EPM-L1NIF1:SP. Endereço para correspondência: Rua dos Otonis, 684 - Vila Clementino - 04025-001 São Paulo /SP. Telefone: (011) 576
Artigo recebido em 7 de julho de 1998. Artigo aceito em 13 de outubro ele 1998.