INTRODUÇÃOO linfoma de Burkitt é considerado um linfoma indiferenciado com origem nos linfócitos B, primeiramente descrito em 1958 por Denis P. Burkitt como uma neoplasia maligna acometendo a mandíbula de crianças africanas' z. Posteriormente, em 1965, O'Connor descreveu um linfoma que acometia crianças americanas com características histopatológicas idênticas às da doença africana.
Desde então, começaram a ser evidenciadas diferenças entre idade, regiões anatômicas acometidas e associação a vírus e parasitas, que eram observadas nas duas diferentes formas existentes: endêmica - que acometia as crianças africanas e não-endêmica - das populações não-africanas.
O objetivo deste relato de caso é chamar a atenção para a existência desta doença, favorecendo com isso a precocidade do diagnóstico.
APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICOCriança do sexo feminino, negra, com dois anos e seis meses de idade, consultou com história de abaulamento na região maxilar bilateral há 20 dias. Não apresentava dor, febre ou outros sintomas inflamatórios. À oroscopia, evidenciava-se um aumento de volume das arcadas dentárias superiores e inferiores bilateralmente, principalmente na região dos dentes molares. Na inspeção, observava-se discreta proptose do globo ocular esquerdo. A criança apresentava-se em bom estado geral, tendo sido internada para investigação e tratamento.
No segundo dia de internação, a paciente iniciou com dor local e odinofagia, sendo necessária alimentação com sonda nasoentérica.
O estudo tomográfico computadorizado de seios paranasais demonstrou uma massa homogênea, com densidade de partes moles, acometendo os seios paranasais e as fossas nasais bilateralmente e estendendo-se para a órbita esquerda e ramos mandibulares (Fotos 1 e 2). No estudo radiológico dos membros superiores e inferiores, foi verificada a presença de lesões osteolíticas e rarefações ósseas nas tnetáfises proximais. A ecografia abdominal total demonstrou lesões hiperecogênicas nos rins e na glândula suprarenal direita.
No sexto dia de internação, iniciou com dispnéia inspiratória severa e piora do estado geral, observando-se visivelmente um aumento da massa tumoral em seis dias, ocorrendo deslocamento e flutuação da arcada dentária. Nesta ocasião, realizou-se traqueostomia e biópsia da lesão através de incisão na fossa canina esquerda (Foto 3).
O estudo histopatológico evidenciou a presença de células linfóides com núcleos arredondados ou ovais, com cromatina mais adensada na periferia nuclear, com atividade mitótica acentuada e com distribuição monótona. Alguns macrófagos também foram observados. O diagnóstico foi sugestivo de linfoma não-Hodgkin indiferenciado, tipo Burkitt. A pesquisa de vírus Epstein-Barr foi positiva.
Foto 1. Tomografia computadorizada de seios paranasais, em corte coronal, demonstrando opacificação completa dos seios e fossas nasais, por lesão com densidade de partes moles, com invasão do assoalho da orbita esquerda.
Foto 2. Tomografia computadorizada dos seios paranasais, em corte axial, demonstrando deformidade por compressão tumoral no palato duro.
Iniciou-se tratamento quimioterápico em duas etapas, conforme protocolo alemão NHL-BFM 90i. Haveria, numa fase inicial, de sete dias, tratamento com preclnisona e ciclofosfamida e, numa fase secundária, acréscimo de quatro drogas anti-neoplasicas (isofosfamida, vincristina, metotrexate e Ara-C) associadas com dexametasona. Nesta fase inicial houve importante involução da lesão tumoral, com melhora do quadro geral, permitindo que a paciente voltasse com alimentação por via oral e iniciasse com a decanulização da traqueostomia. Entretanto, ao iniciar com a segunda fase quimioterapia, a paciente começou a apresentar múltiplos eritemas no corpo, que evoluiu para erupções e descamações da pele e mucosas, com sangramento local à manipulação. Em consultoria dermatologia, o quadro foi caracterizado com necrólise epidérmica tóxica (síndrome de Lyell).
Foto 3. Deslocamento causado no palato duro e dentes superiores, pelo tumor. Proptose esquerda evidente.
No décimo quarto dia de internação a paciente foi a óbito por parada cardio-respiratória.
COMENTÁRIOSApesar elo linfoma de Burkitt ser uma doença pouco freqüente no nosso meio, a localização e o desenvolvimento rápido das lesões na arcada dentária associados com a idade do paciente foram característicos4-6. O acometimento simultâneo da mandíbula e da maxila bilateralmente é a apresentação mais comum na forma africana. Nesta forma, 50 a 70% dos casos são de localização mandibular, sendo a flutuação dos dentes o sinal mais precocemente observado nas crianças de 5 a 7 anos de idade a, analogamente à obstrução intestinal e/ou massa abdominal evidenciadas na forma americana, na qual a idade varia entre 8 e 15 anos4-1,.
O acometimento simultâneo dos rins e da glândula supra-renal direita estreitaram a proximidade diagnostica, devido à freqüência com que se observa o comprometimento de estruturas retroperitoneais, principalmente na forma não endêmica1.
Já a titulação- positiva para o vírus Epstein-Barr fortalece o diagnóstico, devido à sua identificação em mais de 90% dos casos cia forma endêmicas. Na Forma não-endêmica, entretanto, o vírus é identificado em menos de 30% dos pacientes (Tabela 1).
A confirmação diagnostica se deu com a análise histopatológica do material biopsiado. O linfoma de Burkitt consiste de células semelhantes aos tinfócitos, com 10 - 25 mm de diâmetro, em um estroma escasso. As células tumorais têm múltiplos pequenos núcleos e um alto índice mito tico. A ausência de variação na forma e tamanho cios núcleos leva a um aspecto monótono interrompido por macrófagos benignos teciduais com citoplasma pouco cromado. Esta aparência é comparada a de um céu estrelado (starry sky) na baixa magnificação. Os macrófagos apresentam atividade fagocitária, podendo ser vistos no seu citoplasma restos nucleares e hemácias. Em tumores com crescimento rápido podem ser vistos pontos de necrose focal.
Após a confirmação histopatológica cio linfoma de Burkitt, foi iniciado o tratamento poli-cluimioterápico. As lesões osteolíticas, tanto na mandíbula quanto em ossos dos membros, caracterizavam o estágio IV da doença. De acordo cota o estadiamento de Murphy, esse estágio também é designado àqueles pacientes com envolvimento do sistema nervoso central e da medula óssea, não evidenciados neste paciente (Tabela 2).
A necrólise epidérmica tóxica (síndrome de Lyell) é uma erupção bolhosa flácida severa da pele e membranas mucosas, que resulta em processo tóxico agudamente doloroso de eliminação de lâminas de pele, devido ao uso de alguma droga. Inicialmente descrita em 1956 e relacionada ao uso de fenilbutazona, atualmente relaciona-se também ao uso de sulfas, barbitúricos, agentes citostáticos ou radioterapia. Acredita-se que seja necessária a presença de um co-fator (talvez viril) para que a droga produza esta afecção".
CONCLUSÃODevido à relação inversamente proporcional entre o prognóstico e o tempo de evolução desta doença, torna-se fundamental que diante de um quadro sugestivo o diagnóstico de linfoma de Burkitt seja aventado.
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* Médico Otorrinolaringologista do Serviço ele Otorrinolaringologia do Complexo I Hospitalar Santa Casa ele Porto Alegre (CHSCPA).
** Otorrinolaringologista ex-Residente elo Serviço de Otorrinolaringologia do CHSCPA.
*** Médico Estagiário do Serviço de Otorrinolaringologia do CHSCPA.
Trabalho realizado no Complexo Hospitalar Santa Casa ele Porto Alegre - Hospital da Criança Santo Antônio.
Endereço para correspondência: Jaime Luís Freitas Arrarte - Rua Quintino Bocaiúva, 673 - Bairro Moinhos de Verto - 09440-051 Porto Alegre /RS. Telefone: (051) 330-2444 - Fax: (051) 330-6834 - E-mail: Arrarte@vovager.com.br. Artigo recebido em 16 ele fevereiro ele 1998. Artigo aceito em 18 de agosto de 1998.