INTRODUÇÃOOs corpos estranhos, especialmente em crianças, são importante motivo de consulta em Serviços de emergência, em Otorrinolaringologia. Para alguns autores, os corpos estranhos correspondem de 9 a 15% do total de consultas de urgência nos seus Serviços, sendo mais freqüentes na população infantil. A elevada prevalência talvez seja devida à curiosidade, inerente às crianças, com relação ao seu corpo,", ou à presença de doenças irritativas, como otites ou rinites, que induziriam à manipulação da região afetada na tentativa de aliviar os sintomas.
A presença de corpo estranho, ou a manipulação, para sua retirada, podem parecer ocorrências simples; no entanto, existe potencial para complicações. Como exemplos, podemos citar a perfuração septal, a deformidade nasal e a formação de sinéquias, após introdução de baterias alcalinas na fossa nasal a laceração do conduto auditivo externo e a perfuração timpânica, em alguns casos de corpos estranhos de ouvido.
Devido à freqüência e ao potencial para complicações, o presente estudo tem como objetivos: a) avaliar a distribuição dos casos de corpos estranhos de ouvido e nariz, em crianças, segundo o sexo, a faixa etária e a irmandade do paciente; b) analisar as características dos corpos estranhos (natureza, tempo de permanência e localização) e c) estudar as condições da retirada dos corpos estranhos (manipulação prévia, necessidade de anestesia geral para remoção e complicações associadas).
MATERIAL E MÉTODOS
Estudamos 88 pacientes, com idade de 0 a 12 anos, atendidos no Pronto Socorro de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com diagnóstico de corpo estranho em nariz e ouvido, no período de 20 de agosto a 6 de novembro de 1997.
O registro de cada caso consistiu no preenchimento de uma ficha contendo os seguintes dados: a) idade e sexo; b) tempo de história; c) referência, pelo próprio paciente, da introdução de corpo estranho/visualização da introdução de corpo estranho por um adulto; d) número de serviços onde foi atendido previamente; e) manipulação prévia; f) reincidência; g) retirada no Pronto Socorro ou em Centro Cirúrgico, sob anestesia geral; h) complicações; i) doenças associadas; j) natureza do corpo estranho. Em 55 pacientes também foi pesquisada: 1) a irmandade do paciente.
Os dados foram obtidos pelo médico responsável pelo atendimento, através de entrevista com o (s) acompanhante (s) da criança no momento da consulta.
RESULTADOSa) Distribuição, segundo sexo e idade
Dos 88 casos estudados, 47 (53,4%) foram do sexo masculino; e 41 (46,6%), do feminino. Encontramos corpo estranho em nariz em 48 casos (54,5%); e, em ouvido, em 40 casos (45,5%).
Observamos redução na incidência de corpos estranhos de nariz na razão inversa da idade. A maior incidência de corpo estranho em nariz, 29 casos (60,4%), ocorreu na faixa de 0 a 2 anos e, no ouvido, 16 casos (400), na faixa de 3 a 5 anos (Figura 1).
b)Tempo de história
Com relação ao tempo de história, verificamos 16 casos (40,0%) de corpos estranhos de ouvido cola menos de 24 horas de história e 15 casos (37,5%) com tempo ignorado (Figura 2). Nos casos de corpos estranhos de nariz, 21 casos (43,7%) tinham menos de 24 horas da introdução e, em 14 casos, (29,2%) o tempo era ignorado (Figura 3).
c) Referência pelo próprio paciente da introdução de corpo estranho e visualização da introdução de corpo estranho por adulto
Em nenhum caso de corpo estranho, de ouvido, um adulto presenciou sua colocação; e as crianças não contaram o acontecido em 19 casos (47,5%). Já nos casos de corpo estranho de nariz, 43 adultos (89,6%) não presenciaram a colocação do corpo estranho e 27 crianças (56,2%) não contaram ao adulto sobre o ocorrido. Dos pacientes que referiram a introdução do corpo estranho, 42 (59,5%) tinham menos de cinco anos de idade.
d) Atendimentos prévios
Os pacientes foram atendidos previamente em outros serviços em 14 casos (35%) ele corpo estranho de ouvido (15% em um serviço, 12,5% em dois serviços e 7,5% em três serviços) e em 32 casos (66,6%) de corpo estranho de nariz (45,8% em um serviço, 8,3% em dois serviços e 12,5% em três ou mais serviços).
e) Manipulação prévia (Figura 4)
Tentativa de retirada, antes de procurar nosso Serviço, ocorreu em 24 casos de ouvido (60%) e em 25 de nariz (52,1%). Nos casos de ouvido, os principais responsáveis pelas tentativas frustradas foram: Pediatra (6 casos), Clínico Geral (6 casos) e pais das crianças (5 casos). Nos casos de nariz: Pediatra (11 casos), pais das crianças (7 casos) e otorrinolaringologista (5 casos). não manipulado não sabe cirurgião enfermeira clínico otorrino pais pediatra
f) Reincidência
A reincidência foi observada em nove casos de ouvido (22,5%) e em seis de nariz (12,5%). Uma paciente apresentou diagnóstico de corpo estranho pela quinta vez.
Figura 1. Corpos estranhos de nariz e ouvido. distribuição, segundo sexo e idade.
Figura 2. Corpos estranhos de nariz e ouvido. Tempo de história.
Figura 3. Corpos estranhos de nariz e ouvido. Tempo de história.
Figura 4. Corpos estranhos de nariz e ouvido. Manipulação anterior.
g) Local de remoção
A remoção do corpo estranho de ouvido ocorreu na sala de atendimento, em 37 casos (92,5%); e, em Centro Cirúrgico, sob anestesia geral, em três casos (7,5%). Todos os casos que necessitaram de retirada em Centro Cirúrgico haviam sido manipulados em outros Serviços e apresentavam complicações locais. Os corpos estranhos de nariz foram todos retirados na sala de atendimento.
h) Complicações
Cotas relação às complicações, encontramos laceração de conduto auditivo externo em oito casos (20%) e perfuração timpânica em um caso (2,5%). Não observamos complicações nos casos de corpo estranho de nariz.
i) Afecções associadas
Em dois casos (5%) de ouvido, encontrou-se otite média aguda associada; e, em três casos (6,3%) de nariz, encontrou-se rinite associada.
j) Natureza dos corpos estranhos
O feijão foi o corpo estranho de ouvido mais encontrado, 10 casos (23,2%), seguido pela bolinha em oito casos (18,6%). No nariz, a espuma, em 19 casos, foi a mais freqüente (38,0%), seguida pelas sementes em geral, inclusive feijão, eram 14 casos (28,0%). A discriminação dos diversos corpos estranhos encontrados é apresentada nas Figuras 5 e 6.
1) Irmandade
Em 55 casos (68,8%), observamos a irmandade do paciente. Em 22 casos (74,5%), os pacientes possuíam 44% irmãos. Destes, 23 (41,8%) eram mais velhos; oito (14,5%), mais novos; e, em 10 casos (18,2%), o paciente era o irmão do meio.
Figura 5. Corpos estranhos de nariz e ouvido. Natureza do corpo estranho.
Firuga 6. Corpos estranhos de nariz e ouvido. Natureza do corpo estranho.
DISCUSSÃOEm nosso trabalho, encontramos predomínio discreto de casos de corpos estranhos de ouvido e nariz em crianças do sexo masculino, em relação ao feminino, como em outros estudos2,4,8. A distribuição, por faixa etária, mostrou diminuição na incidência, conforme o aumento da idade, nos casos de corpos estranhos de nariz, como observado por Lopez-Amado e colaboradores (1993)2. Estes dados fazem nos considerar a hipótese de que as crianças introduzem corpos estranhos na tentativa de chamar a atenção dos pais para si; porém, com o crescimento e desenvolvimento cognitivo, deixariam de fazê-lo pelo medo de se sufocarem. Os casos de reincidência foram poucos, talvez estando associados a distúrbios psicológicos. Entretanto, para melhor esclarecimento, é necessária a realização de estudo diretamente relacionado a este aspecto.
Nos casos de corpo estranho de ouvido, houve predomínio do feijão, enquanto que, nos casos de nariz, fragmentos de espuma tiveram destaque, fato não citado na literatura consultada. Esta preferência (38% dos casos) talvez se deva à presença comum da espuma nas residências, de modo geral, onde é utilizada para higiene pessoal e limpeza, além de ser encontrada em almofadas e travesseiros, estando facilmente ao alcance das crianças, aliada à sua consistência e textura. Não foi atendido qualquer caso de corpo estranho de faringe, em crianças, no período estudado. Explicação para este fato seria que estes pacientes, com corpos estranhos em via aerodigestiva, normalmente, são encaminhados diretamente aos médicos plantonistas de endoscopia, no Pronto Socorro de Pediatria, não passando pela avaliação do otorrinolaringologista.
Vimos que, na maior parte dos casos, o tempo de história ou era menor que 24 horas (42% dos casos), ou era ignorado (33% dos casos). Isto revela a possível noção dos leigos,- com relação ao caráter urgente da avaliação e remoção do corpo estranho. Talvez, por este fato, os pais tiveram destaque entre as tentativas de remoção (12,5%, nos casos de ouvido, e 14,5%, nos casos de nariz).
Observamos, ainda, que os adultos, na maioria dos - casos, não presenciam a colocação dos corpos estranhos (em qualquer caso de corpo estranho de ouvido e em 10,4% dos casos de corpo estranho de nariz) e que parcela importante dos pacientes (47,5%, nos casos de ouvido, e 56,2%, nos casos de nariz) não conta aos país sobre isto. Assim, devido ao atraso diagnóstico, estes casos podem manifestar-se por quadros de rinorréia fétida unilateral e cacosmia, nos casos de corpo estranho de nariz`', e de otalgia e hipoacusia, nos casos de ouvido; e, somente a partir deste momento, os pais procuram assistência médica. Tais dados reforçam a importância da prevenção, pois muitos casos passam despercebidos pelos pais, por certo tempo, levando a maior risco de complicações pela presença do corpo estranho por tempo prolongado e na sua retirada, nos casos de corpo estranho de ouvido, em geral tecnicamente mais difícil. Também, pela ausência de suspeita diagnóstica, os pacientes acabam passando por diversos serviços (35%, dos casos de corpo estranho de ouvido, e 66,6%, dos casos de corpo estranho de nariz, passaram em pelo menos por um Serviço, antes do nosso) e, em algumas vezes, recebendo tratamento inadequado até que o diagnóstico e tratamento adequado lhes fossem oferecidos.
Encontramos manipulação prévia, em outros serviços, na maioria dos casos (60% dos casos de corpo estranho de ouvido e 52,1% dos casos de corpo estranho de nariz), dados semelhantes ao do estudo de Bressler e Shelton (1993), em relação ao corpo estranho de ouvido, talvez com uso de material inadequado, por profissional não habilitado, e, não raro, por leigos. Devemos mencionar que o Hospital das Clínicas da FMUSP é o hospital terciário de referência da zona oeste da cidade de São Paulo e de diversas cidades da Grande São Paulo, fato que contribui para o elevado número de casos de corpos estranhos com manipulação anterior. Via de regra, as Unidades Básicas de Saúde dispõem apenas de pediatras e generalistas, que fazem a tentativa inicial de retirada do corpo estranho. Nos casos de insucesso, o paciente é, então, transferido_ para o nosso Serviço. Talvez isso possa justificar nossa elevada incidência, de vez que os 88 pacientes foram atendidos em 78 dias (média de 1,13 pacientes/dia).
Poucos casos necessitaram de retirada sob anestesia geral em Centro Cirúrgico (7,5% dos casos de corpo estranho de ouvido), apesar de a maioria ter sido manipulada sem sucesso, em outros serviços. Isso mostra que o uso de material adequado e de técnica apropriada é importante no manejo dos corpos estranhos, pois 92,5% dos casos foram resolvidos na sala de atendimento, de modo semelhante ao relatado por Cohen e colaboradores (1993)' . Dos casos que necessitaram de retirada em Centro Cirúrgico, todos haviam sido manipulados anteriormente e apresentavam complicações locais, como relatado na literaturas. Este fato já era esperado, pois é sabido que tentativas de retirada podem lesar o conduto auditivo externo, levando a edema local e podem amedontrar o paciente, cuja colaboração se torna mais difícil, afetando o procedimento na sala de atendimento.
Ao contrário do que verificaram Ijaduola e colaboradores (1986)3 e Bressler e Shelton (1993)', nossas taxas de complicações foram menos significativas (20,0% de casos com laceração de conduto auditivo externo e 2,5% de casos com perfuração timpânica).
Notamos que nos 55 pacientes avaliados, quanto a irmandade, a maioria (74,5%) tem irmãos, sendo 41,8% mais velhos, 14,5% mais novos e, em 18,2% dos casos, o paciente era o irmão do meio. Com estes dados, imaginamos novamente se os pacientes introduziriam os corpos estranhos na tentativa de chamar a atenção dos pais para si ou se a irmandade é apenas coincidência, uma vez que as famílias brasileiras em geral, possuem mais de um filho. Também podemos indagar se os irmãos mais velhos induziriam os pacientes à introdução de corpos estranhos ou se eles mesmos o fariam, durante suas brincadeiras, como alguns relataram durante o atendimento. Talvez futuros estudos mais específicos possam esclarecer essas questões.
Encontramos afecções irritativas associadas em poucos casos (otite média aguda em 5% dos casos de corpo estranho de ouvido e rinite em 6,3% dos casos de nariz), ao contrário do que mostram outros estudos sobre o tema', fato que nos leva a questionar a associação da introdução de corpos estranhos e tentativa de alívio dos sintomas destas doenças.
Finalmente, entendemos que os corpos estranhos de ouvido e nariz, em crianças, são bastante freqüentes na prática diária do otorrinolaringologista, e alertamos para a importância de os pais e responsáveis serem esclarecidos sobre os riscos decorrentes da introdução e manipulação dos mesmos.
CONCLUSÕESA prevenção é o melhor enfoque nos casos de corpos estranhos, na área otorrinolaringológica. Não podemos confiar em que algum adulto sempre vá surpreender a criança introduzindo um corpo estranho, e tampouco que ela conte sobre seu ato. Portanto, deve-se orientar os pais sobre a importância de manter objetos de pequenas dimensões - mantimentos, produtos de limpeza e brinquedos com peças pequenas - longe do alcance das crianças.
2. O perfil deste grupo de pacientes apresentou idade menor que oito anos, de ambos os sexos, com irmãos, sem doença irritativa associada, e sem história prévia de introdução de corpo estranho.
3. O enfoque destes pacientes deve ser realizado por profissional habilitado, com material adequado disponível, minimizando, assim, a ocorrência de complicações.
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* Médicos Residentes da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
** Médica Pós-Graduanda cia Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
*** Médica Assistente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
**** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
Trabalho realizado pela Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP (Serviço do Professor Aroldo Miniti) e Laboratório de Investigação Médica (LIM) 32 cia FMUSP.
Endereço para correspondência: Cláudio Márcio Yudi Ikino - Divisão de Clínica Otorrinolaringológica - Hospital das Clínicas da FMUSP - Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 62 andar - sala 6021 - 05403-000 São Paulo /SP - Fax: (011) 280-0299. Artigo recebido em 13 de fevereiro de 1998. Artigo aceito em 8 de maio de 1998.