INTRODUÇÃOA disfagia alta pode ser produzida por grande número de causas, tais como doenças do sistema nervoso central e periférico, miopatias, doenças sistêmicas diversas, drogas, causas locorregionais e estados emocionais, entre outras. O estudo da disfagia orofaríngea, de origem não neoplásica, requer seqüência ordenada de exames clínicos, para que forneça o maior número possível de informações. Este exame é prático: pode-se repeti-lo no todo ou em parte, quantas vezes se fizer necessário, à beira do leito, ele propicia enorme quantidade de dados que, juntamente com a anamnese dirigida, permitem elaborar hipótese diagnóstica. Esta, em muitos casos, pode levar a atitudes terapêuticas iniciais, dispensando exames mais agressivos (eletromanometria e deglutograma, entre outros), ou orientar claramente a direção para investigações armadas posteriores. O presente trabalho objetiva mostrar o roteiro de exame clínico utilizado no ambulatório de Distúrbios da Deglutição da Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina de Botucatu. Espera-se que ele seja útil para os profissionais interessados. Este roteiro foi inspirado, em grande parte, em publicações específicas',',', contendo também vários procedimentos que desenvolvemos há anos, para o estudo da disfagia15.
1. Anamnese
Começa se ouvindo as queixas e inquirindo sobre o tipo de alimento que provoca disfagia: líquido, pastoso, sólido. Onde ele parece parar? O paciente se engasga ou se afoga? O paciente apresenta tosse ao deglutir? A presença de tosse durante a deglutição indica falsa rota - isto quer dizer que o paciente não consegue proteger sua via respiratória. Ou a epiglote não fecha o adito laríngeo, ou a laringe não ascende, ou a glote não se fecha. A tosse após a deglutição indica que havia restos alimentares na oro ou na hipofaringe. Perda de peso indica redução silenciosa da alimentação habitual. O paciente muda hábitos e tipo de alimento, fugindo daqueles que provocam disfagia, engasgo, tosse e sensação de engasgo ou de afogar. Engasgo, tosse e estas sensações indicam falsa rota, com penetração do alimento na via respiratória alta e, talvez, aspiração broncopulmonar. Perda de peso, tosse, expectoração, infecções pulmonares repetidas podem falar a favor de disfagia, sem que haja a queixa clínica clássica de "alimento que pára na garganta". Em resumo, a disfagia pode manifestar-se por sinais e sintomas outros, que não os de parada de alimento em algum trecho da via digestiva. Em pacientes com alteração do nível da consciência e das condições intelectuais por doenças neurológicas, demência, senilidade e uso de drogas; entre outras, os sintomas podem ser como que indiretos. Não devem ser esquecidas, nesta anamnese, perguntas sobre doenças atuais, recentes ou passadas (gastrectomia no passado, por exemplo, pode levar à síndrome de PlummerVinson, que se acompanha de disfagia por estrutura nas proximidades do esfíncter faringoesofágico), uso de drogas, alteração mental (estresse, depressão, ansiedade), estado mental e intelectual do paciente. Interrogatório procurando evidências de refluxo gastroesofágico (tipo de dieta e hábitos alimentares) é importante, pois a disfagia pode ser secundária a quadro de hipertonia do esfíncter superior do esôfago, reativa ao mesmo refluxo.
2. Exame clínico ORL
a) Inicia-se pela inspeção do estado geral e da expressão facial. b) Depois, passa-se à cavidade oral: verifica-se o selo labial (competência para impedir escape de alimentos), examinando-se também o tônus do músculo bucinador e c) a mobilidade e força lingual, assim como d) o estado da gengiva, dentes, prótese; e) a mordida e os movimentos da mandíbula (abrir e fechar a boca: verificar a força e a rapidez do movimento); f) a presença de saliva (normal, boca seca?); g) a sensibilidade táctil da mucosa oral, h) a gustação (testar sabores doce, salgado, amargo e ácido). Nesta etapa pode-se fazer o teste com alimento pára observar como o paciente manipula oralmente o alimento'. De acordo os dados da anamnese, pode-se orienta-lo para colocar alimento líquido, pastoso ou sólido na boca. Verifica-se se há escape do líquido. No caso do pastoso e, principalmente, sólido, pede-se para o indivíduo prepara-lo para deglutir. Observam-se, nesta hora, a qualidade e competência do movimento dos lábios e mandíbula, à mastigação. Em seguida, manda-se que o paciente degluta uma vez e inspeciona-se a cavidade' oral, procurando ver se há propulsão do alimento, ou se todo, ou parte importante dele, permaneceu na boca (de um lado apenas, ou dos dois: paralisia uni ou bilateral da função motora bucal). Se houver indicação forte de que o paciente aspira, deve-se evitar este teste.
Orofaringe: Reflexo nauseoso (presente, ausente, exaltado, deprimido), movimento do palato mole (presente, ausente, vivo, lento, hemi-paralítico, com desvio da úvula) toque das paredes faríngeas e fonação do A: sinal da cortina?, sensibilidade táctil (importantíssimo). Presença de resíduo alimentar ou saliva na valécula?
Hipofaringe e laringe: Presença de restos alimentares e ou saliva nos seios piriformes (quando há paralisia de um lado, este seio fica mais amplo, aberto). Pode-se ver a rotação da laringe para o lado. Exame da laringe em repouso, vendo-se como é o movimento glótico na inspiração e na expiração. Depois, a verificação da emissão do I e do E. Observa-se o movimento das cordas vocais e das aritenóides na adução e na abdução. Detalhes de exame da laringe ficam para o exame nasofaringoscópico.
Nariz e nasofaringe: Presença de fatores obstrutivos que comprometem a respiração nasal (interferem com a sincronia respiração-deglutição)?
3. Exame videoendoscópico
Dispondo-se de câmera e vídeo, tem-se a grande vantagem, entre outras, de poder contar com a observação detalhada dos eventos, repetindo-se quantas vezes necessárias a gravação, o que o exame endoscópico simples não permite.
a) Região nasofaríngea: Verificar o esfincter velofaríngeo em repouso, na fonação de palavras como fita, papai pediu pipoca e na contagem de um a dez, entre outras. Vera função do esfíncter velofaríngeo no sopro. Deve haver movimento rápido, do palato mole e mesmo das outras paredes da nasofaringe (anel de Passavant). Testa-se a sensibilidade táctil, graças ao contato do aparelho com as paredes, reforçando-se o exame clínico prévio. Manda-se o paciente deglutir (deglutição seca). Deve-se observar, neste instante, súbito e rápido embasamento da visão do examinador, no indivíduo normal.
b) Região orofaríngea: Base da língua: Verificar a mobilidade da mesma na deglutição seca e na fonação do Ki Ki Ki e Ku Ku Ku, que permite ver o movimento vivo de oscilação da base da língua, notando-se o serpentear da superfície da mesma. Este movimento é importante, pois atua na propulsão do bolo alimentar. A observação da constrição da região, pedindo-se para o paciente emitir o fonema i persistente, pode mostrar-se útil. Procura-se ver presença de estale de saliva e de alimento nas valéculas.
c) Região da laringe e hipofaringe: Exame em repouso, verificando-se o movimento da glote à respiração. Verifica-se forma e posição da epiglote, aspecto e forma das aritenóides, mobilidade, cor e aspecto de sua mucosa. Presença de estase de saliva ou de alimento na faringe e/ou laringe. Na glote, ver a qualidade da adução e da abdução das cordas durante a fonação e a inspiração. Ver a simetria e a capacidade de sustentar uma fonação prolongada (III) e o movimento das aritenóides para frente e para a linha média neste momento. Testar a tosse: observar a tosse, ver se o fechamento glótico é adequado, rápido e produz um ruído normal. A tosse é investigada porque a presença e principalmente a qualidade da mesma indica a existência ou não deste mecanismo protetor das vias aéreas, em caso de aspiração. Se a tosse revelar-se insuficiente, aliás, pode-se ensinar técnicas que devolvem ao paciente a capacidade de tossir com eficácia. Ausência de tosse indica redução da sensibilidade táctil local, o que prenuncia risco de ocorrência de aspiração e complicações broncopulmonares.
O exame avaliando as competências sensitivas (tácteis) e motoras da boca (propulsão do bolo), da faringe (propulsão do bolo) e da laringe (fonação, reflexo da tosse, fechamento do esfíncter glótico e fechamento do vestíbulo laríngeo) e avaliando a deglutição seca, vai fornecer informações sobre como proceder na etapa seguinte: o exame endoscópico com deglutição de alimentos (deglutição assistida).
4. Deglutição assistida
É o exame da fase faríngea da deglutição, usando alimentos, uma vez que o exame da fase oral da deglutição com alimento já foi realizado. Pode-se, entretanto, fazê-lo neste momento, embora consideremos que, mesmo que se ganhe tempo, perde-se a qualidade da observação que se tem, quando se concentra a atenção em um único segmento.
O exame usando alimentos objetiva verificar que tipo de alimento (líquido, sólido, pastoso) está associado à disfagia de transferência. A dificuldade foi previamente sugerida pela anamnese e pelo exame a seco: parada do alimento, aspiração durante ou após a deglutição, engasgo e tosse, entre outros. Cabe agora observar isto ao vivo. já conhecemos as deficiências motoras e sensitivas que o paciente apresenta. Ao fazer o exame, portanto, já estamos alertados para o que pode ser encontrado e particularmente para o risco de haver aspiração do alimento testado. Caso haja evidências fortes, obtidas através da anamnese e do exame endoscópico a seco, de que o paciente está aspirando, deve se evitar fazer o teste. Alguns autores sugerem faze-lo com gelo moído, pois, caso seja aspirado, é derretido em seguida. Pacientes que estão aspirando são, em geral, indivíduos depletados fisicamente, muitos dos quais portadores de lesões ou seqüelas neurológicas.
O outro objetivo do teste é encontrar qual tipo de alimento (pastoso fino ou grosso, sólido, líquido fino ou espesso) e qual postura de cabeça favorecem a deglutição. Esta investigação sobre o melhor alimento e a melhor postura será melhor realizada caso a anamnese tenha colhido informações sobre o que e como o paciente deglute. Nesta etapa, o examinador já terá elaborado impressão diagnostica sobre os defeitos do segmento orofaríngeo da via digestiva (incluindo o esfincter faringoesofágico). Será estrutural ou funcional?
O exame é feito com o endoscópio localizado de forma tal que se possa ver a orofaringe. Observa-se, em primeiro lugar, o paciente com o alimento que lhe foi dado e que deve permanecer, inicialmente, na boca, isto é, ele recebe ordem para mastiga-lo, se for o caso e, mantê-lo na boca. Observa-se a presença de alimento na orofaringe (na base da língua). Alguns indivíduos podem ser incapazes de mantê-lo na boca, deixando-o escoar para a orofaringe e laringe. Em seguida, ordena-se a deglutição. Por um instante, nada poderá ser visto, tanto na faringe quanto na laringe, a imagem desaparece e só se vê um borrão luminoso. Em seguida, observa-se se o alimento foi transferido ou se, ao contrário, permaneceu na boca, ou na oro (valéculas, paredes), ou hipofaringe (seios piriformes, em particular). Pode acontecer que se observem restos, em maior ou menor quantidade, na oro ou hipofaringe, uni ou bilateralmente. Após esta primeira deglutição, é normal haver restos na oro ou hipofaringe; porém, após ordenar-se que o paciente degluta uma segunda vez, nada mais deve ser encontrado. Observa-se atentamente a laringe. Poderá já ter sido notado, no momento da deglutição, que o paciente tossiu ou engasgou. O exame de laringe pode mostrar na mesma alimento, que não foi expelido devido à tosse insuficiente ou ausente (não há o -reflexo tussígeno). Durante a deglutição, pode-se palpar a laringe para sentir, neste momento, seu movimento ascensional.
5. Exame clínico de elevação da laringe
Este exame é importante que seja executado logo no início da investigação, antes de se fazer qualquer teste com deglutição de alimentos. Ele fornece duas informações importantes:
1) Se a laringe ascende ou não adequadamente. Se não se eleva, isto significa que existe o risco de aspiração, já que os mecanismos de proteção da via respiratória, durante a deglutição, incluem, como já foi dito, o fechamento da glote e do adito laríngeo, a inversão da epiglote (fechando a entrada da laringe como uma tampa), e a ascensão do osso hióide e da laringe, os quais vão se posicionar, também, mais anteriormente, em relação à sua posição de repouso (movimentos, portanto, de elevação e de anteriorização do conjunto hióide-laringe). Nesta posição, mais anterior e elevada, a laringe fica protegida pela base da língua, no rápido momento da transferência do bolo da faringe para o esôfago.
2) Se está havendo adequada abertura da luz do esfíncter faringoesofágico. Precisa ser lembrado que mesmo que a faringe esteja com a propulsão normal e que o músculo cricofaríngeo (principal componente do esfíncter) esteja relaxando normalmente e em sincronia com a contração faríngea, a ausência de anteriorização é elevação da laringe não permite abrir a luz na região esfincteriana. Como se sabe, a laringe, no repouso, está posteriorizada, pressionando a região esfincteriana contra a coluna cervical (C5 e C6), fazendo a luz da passagem esfinctérica ser virtual. Quando há a elevação-anteriorização, a luz aparece, caso haja concomitante relaxamento esfinctérico. Por que -não ocorre a elevação? Em alguns indivíduos, a musculatura estriada supra-hióidea, responsável por este movimento, pode estar deficitária, por alguma doença neuromuscular, miopatia, talvez por -degeneração neurogênica senil. Como se faz a inspeção: deita-se o indivíduo sem travesseiro, fazem-se marcas com caneta, separadas de 1 cm entre si, a partir do pomo de adão, usado como ponto zero, em direção ao hióide. Colocam-se os dois dedos, usados para palpação, um deles sobre o pomo, e pede-se para o paciente deglutir. O movimento da laringe pode ser sentido, visto e medido (Figura). Grosseiramente, a eminência laríngea se desloca ao longo dos dois dedos, os quais medem, aproximadamente, de 2 a 2,50 cm, em adultos normais. No adulto do sexo masculino (tanto idoso quanto jovem), o deslocamento varia de 1,80 a 2,50 cm, predominando deslocamentos acima de 2,00 em (média de 2,14 em). Pode-se, com maior experiência, examinar o paciente sentado, com a cabeça em posição média, ficando-se por trás dele. Dispensam-se as marcas de tinta. A laringe pode apresentar as seguintes alterações de seu movimento: não elevar-se (ascensão zero), ou elevar-se algo como 0,50 cm. Pode, também, deslocar-se para um lado ou para a frente ou, ainda, rebaixar-se ou elevar-se várias vezes por cerca de 1 cm (indicando tentativas de deglutições mal sucedidas).
Figura. Medida e palpação dos movimentos da laringe durante a deglutição. Dois dedos de adulto, do sexo masculino, medem cerca de 2,00 cm, quando juntos, e podem ser usados para realizar a medida da elevação.
6. Qualidade de voz e da fala
A qualidade da freqüência, intensidade e timbre do som é auferida, assim como o sistema articulatório das palavras. A presença destas alterações, associadas à disfagia, indica quadro neurológico (AVC, doenças neuromusculares, miopatias) como responsável.
CONSIDERAÇÃO GERAL SOBRE OS EXAMESAssim como na avaliação dos distúrbios de comunicação, e na avaliação dos distúrbios do sono, a endoscopia é exame que permite inspecionar tanto a anatomia quanto as funções fisiológicas da laringe e faringe, durante a deglutição e fora dela. É o melhor recurso existente. Ela permite examinar pessoas inclusive acamadas, que podem estar impossibilitadas de realizar diferentes exames (radiografias, contrastadas e eletromanometria, entre outros). Embora número apreciável de indivíduos com queixas disfágicas esteja em faixas etárias abaixo de 65 anos, percentual também significativo de portadores de disfagia está na faixa etária acima de 70 anos. Aliás, o número de idosos no Brasil é estatisticamente elevado e a deglutição normal no idoso é, por si, quantitativamente distinta quanto aos aspectos funcionais de seus mecanismos. O conhecimento da semiologia específica relativa à deglutição orofaríngea aos poucos vai se impondo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. GROHER, M. E. - Dysphagia, Diagnosis and management. 2.ed., Boston, Butter Worth-Heinemann, 1992, p.143-162.
2. PERLMAN, L. A.; DELMEU-SCHULZE, K. - Deglutition and its disorders. 1.ed., San Diego, Singular Publishing Group, 1997, p.125-126.
3. SAINT-GUILY, J. L.; CHAUSSADE, S. - Troubles de la deglutition de l'adult. 1.ed., Paris, CCA Wagman, 1994, p. 717.
4. BRETAN, O.; HENRY, M. A. C. A. - Manipulando a disfagia de origem faringoesofágica. Rev. Bras. Otorrinolaringologia, 62 (3): 196-205, 1996.
5. BRETAN, O.; HENRY, M.A.C.A. Laryngeal mobility and dysphagia. Arq. Gastroenterol., 34 (3): 77-81, 1997.
* Professor Assistente Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
** Auxiliar de Ensino da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
Endereço para correspondência: Onivaldo Bretan - Departamento de OFT/ORL/CCP - Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP. Distrito de Rubião júnior, s/n° - 18618-000 Botucatu /SP - Telefone: (014) 21-2121 - ramal 2256 - Fax: (014) 822-0421. Artigo recebido em 2 de fevereiro de 1998. Artigo aceito em 8 de maio de 1998.