IntroduçãoA rinoliquorréia (RLR) foi reconhecida como uma condição anormal pela primeira vez em 1782 por Willis.1 Quanto a sua classificação, pode ser dividida em dois grandes grupos: traumáticas e não-traumáticas. As traumáticas são subdivididas em acidental, iatrogênicas, agudas e tardias. As não-traumáticas se dividem em com ou sem hipertensão liquórica associada.2
A presença de uma fístula liquórica (FL) implica em um risco aumentado de meningite, que varia de 9 a 25%, mesmo nos casos em que a fístula tenha cessado espontaneamente.3,4 Devido a essas complicações serem extremamente graves e determinarem altos índices de morbimortalidade mesmo na atualidade, o tratamento da FL desperta preocupação e interesse dos otorrinolaringologistas e neurocirurgiões.
Com o desenvolvimento da cirurgia microendoscópica nasal, o tratamento da FL pelo otorrinolaringologista se tornou menos agressivo que a via extracraniana, sendo ao mesmo tempo eficaz.5-7 A abordagem endonasal aumentou a necessidade de métodos de imagem capazes de demonstrar com fidedignidade o local do escape liquórico, já que sua localização precisa torna essa cirurgia mais direcionada e conseqüentemente ainda mais eficaz, rápida e segura.
Uma série de métodos de imagem já foi utilizada no diagnóstico da RLR, desde até radiografias simples dos seios da face que apresentavam 25% de sensibilidade, cisternografias com radioisótopos com 50% de sensibilidade, politomografias com 53% de sensibilidade8, tomografias, cisternotomografias com metrizamida, com 87% de sensibilidade em pacientes com RLR ativa8 e ressonância nuclear magnética.9-12 Dos métodos citados, apenas os últimos três têm colaborado no topodiagnóstico da FL.5,9,10
Assim, apresentamos uma experiência de 46 casos de FL em que comparamos os resultados da tomografia simples, da cisternotomografia entre si, com os achados cirúrgicos.
Material e métodoDurante o período de janeiro de 1993 a abril de 1999, 46 pacientes, 23 homens e 23 mulheres, com suspeita de rinoliquorréia foram submetidos a tomografia computadorizada dos seios da face em incidência axial e coronal sem contraste. Destes pacientes, 38 também foram submetidos à cisternotomografia com injeção intratecal após punção lombar no nível de L3-L4 ou no nível de cisterna magna, de 10 cm3 de meio de contraste hidrossolúvel não-iônico Lopamidol. Para que o contraste atingisse as cisternas intracranianas, após a aplicação, os pacientes foram colocados em posição de prece maometana por alguns minutos. A seguir realizou-se TC no plano coronal, fazendo-se uma varredura por toda a região crivosa e teto dos seios etmóides e esfenóides. Em um dos pacientes foi realizada tomografia de ossos temporais devido a suspeita de otoliquorréia. A idade mínima foi de 4 anos, a máxima de 66 anos e a mediana, de 39 anos. Destes pacientes, 14 apresentaram meningite previamente ao tratamento (30,4%). O tempo de aparecimento dos sintomas até o tratamento variou de 10 dias a 17 anos.
Nos pacientes operados a partir de 1997, durante o procedimento cirúrgico, foi utilizado como corante intra-tecal a fluoresceína. Com exceção de 7 pacientes que usaram solução hiperdensa, todos os outros fizeram uso da solução hipodensa de fluoresceína que teve seu uso proposto inicialmente pelo autor e que auxilia a localização e a confirmação da eficácia do vedamento da fístula no transoperatório e permite que o paciente seja colocado em posição cirúrgica imediatamente após a injeção intratecal do corante, o que diminui o tempo cirúrgico.5
ResultadosDos 46 pacientes submetidos à tomografia não contrastada, 24 exames sugeriram o local da FL concordantemente com os achados cirúrgicos (52,17%); em 15 pacientes a TC foi inconclusiva (32,6%) e em 5 pacientes a localização da FL sugerida pela TC foi discordante do achado cirúrgico (10,8%). Em 2 pacientes em que a TC sugeriu o local de drenagem não se localizou FL durante a cirurgia (4,3%).
Dos 38 pacientes que foram submetidos à cisternotomografia, 27 tiveram evidenciada a fístula de forma concordante com a cirurgia (71,05%), 4 exames foram divergentes dos achados cirúrgicos (10,5%), 6 exames falharam em identificar o extravasamento do contraste para a cavidade nasossinusal (15,7%) e 1 exame evidenciou o contraste em etmóide anterior esquerdo, porém o local da fístula não foi encontrado durante a cirurgia (2,6%). Nos casos onde houve divergência entre a localização da FL pelos exames, CTG e ou pela TC, e o achado cirúrgico da fístula, esta se encontrava justamente no seio adjacente ao demonstrado pelo método de imagem em todos os casos.
Nos 38 pacientes que se submeteram aos dois métodos de diagnóstico, houve 24 diagnósticos concordantes, 9 casos em que a TC foi inconclusiva e a CTC foi conclusiva, 4 casos em que ambos os métodos foram inconclusivos, 2 casos em que a TC foi conclusiva e a CTC foi inconclusiva e um caso onde a localização sugerida pelos exames foi discordante, sendo que o achado cirúrgico confirmou que a CTC demonstrou corretamente o local da FL. (Tabela 1)
Tabela 1. Comparativo dos achados radiológicos com achado cirúrgico nos 38 pacientes que foram investigados com os dois métodos propedêuticos.
Figura 1. Cisternotomografia apresentando trauma nasal com fístula liquórica no etmóide posterior esquerdo (célula de Onodi) drenando para o seio esfenoidal.
Figura 2. Cisternotomografia apresentando meningoencefalocele de lâmina crivosa esquerda.
Figura 3. Cisternotomografia apresentando meningocele frontal direita.
DiscussãoAcreditamos que a abordagem propedêutica deva seguir uma seqüência. A princípio utilizamos exames para confirmar a RLR: a mensuração da glicose na secreção nasal é um método fácil e não-invasivo que utilizamos de rotina, sempre que possível, na qual valores acima de 30 mg/dl confirmam o diagnóstico de FL em pacientes com glicemia normal.13,14 Apesar de não estar disponível em nosso meio, é válido citar a pesquisa de b2 transferrina na rinorréia - essa proteína é específica do líquor e da perilinfa, é o padrão de referência no diagnóstico FL, e sua pesquisa é facilitada por ser necessária uma quantidade mínima de secreção para o diagnóstico.15,16
A técnica radiológica ideal para a localização acurada da fístula liquórica no pré-operatório é controversa. As maiores dificuldades diagnósticas encontram-se no subgrupo de pacientes que apresentam RLR intermitente ou inativa.10
O papel da cisternotomografia com contraste hidrossolúvel não-iônico (metrizamida) na rinoliquorréia foi estabelecido primeiramente por Drayer.17 Subseqüentemente, este método se mostrou eficiente em várias publicações.18-20 Atualmente é considerado o método de escolha no topodiagnóstico da FL. Em nossa experiência, o método foi útil em identificar a RLR em 84,15% dos exames, sendo que em 71,05% dos casos o local preciso da FL foi identificado e em 10,5% a FL estava adjacente à localização sugerida pelo CTG, facilitando ainda, assim, determinação do local da fístula durante o ato cirúrgico. Os achados obtidos nesse trabalho são concordantes com os trabalhos de Mc Cormack21, Lantz22 e Colquhoun.23
A detecção do contraste na imagem radiológica das cavidades nasais e paranasais é um dado extremamente específico para RLR. Schaefer et al.24 sugeriram que se tenha uma TC não-contrastada realizada imediatamente antes da realização da CTG, com a finalidade de se obter uma imagem de referência e evitar que algum artefato interfira no julgamento do exame.
Segundo Manefelde19, pode-se identificar o defeito ósseo na TC em 82% dos pacientes operados com FL; no entanto os números são discordantes em muitos outros trabalhos.
A glicose presente na RLR causa um edema da mucosa dos seios paranasais que pode ser documentado radiologicamente.5 No entanto esse dado carece de especificidade. Segundo Loyd et al.25, o achado do defeito ósseo e do aumento de partes moles ao seu redor é um dado altamente sensível para o diagnóstico de FL.
Em 1991, Wakhloo et al.12 sugeriram o uso da Ressonância Magnética associado à cisternotomografia; é necessário evidenciar que a RM permite a individualização do cérebro dos tecidos adjacentes, permitindo a demonstração de herniação do parênquima cerebral para o espaço extradural.9,10,26 Mais recentemente tem-se proposto o uso da RM cisternográfica, ponderada em T2, que dispensa o uso de contraste. Em nossa casuística usamos a RM apenas nos casos onde havia suspeita de meningoencefalocele ou de tumor intracraniano.
ConclusãoA cisternotomografia com meio de contraste não-iônico hidrossolúvel Lopamidol® foi um método topodiagnóstico útil, com índices de detecção e localização similares aos descritos previamente na literatura para a CTG com metrizamida. A tomografia não-contrastada é útil como um método auxiliar da CTG, não devendo ser usada como método único no diagnóstico imaginológico da fístula liquórica.
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1 Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da U.F.M.G.
2 Professora Adjunta do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da U.F.M.G.
3 Professor Assistente do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da U.F.M.G.
4 Médico otorrinolaringologista, Doutorando-U.F.M.G.
5 Médico residente do serviço de otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da UFMG.
6 Médica residente do serviço de otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da UFMG.
Instituição: Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia da UFMG.
Endereço para Correspondência: Av. Pasteur, 88 Sta. Efigênia Belo Horizonte MG 30150-290.
Tel (0xx31) 3222-2891
Artigo recebido em 28 de fevereiro de 2002. Artigo aceito em 05 de maio de 2002.