INTRODUÇÃOPoucos estudos avaliam individualmente os pacientes submetidos a esvaziamento bilateral, pois a maioria dos autores considera cada lado do pescoço separadamente, sendo registrados duas vezes os pacientes submetidos a esvaziamento bilateral. O tratamento eletivo do pescoço, realizado quando o risco de metástases ocultas supera a taxa de 20%, é uma conduta já estabelecida1,2. A justificativa para o tratamento eletivo reside no pior prognóstico relacionado ao desenvolvimento de uma metástase no pescoço não tratado, sendo que algumas recorrências cervicais são irressecáveis por ocasião do diagnóstico. O mesmo raciocínio se estende ao tratamento do lado contralateral do pescoço por ocasião do esvaziamento unilateral. A drenagem linfática e a distribuição das metástases dos tumores das vias aerodigestivas superiores estão bem estabelecidas, contudo a probabilidade de metástases ocultas bilaterais ou contralaterais para um determinado tumor ainda suscita dúvidas. A realização dos esvaziamentos modificados e seletivos, com menos complicações e seqüelas, permite ampliar a indicação eletiva do esvaziamento contralateral. O presente estudo avalia os resultados do tratamento das metástases cervicais em tempo único ou em dois tempos entre os pacientes que desenvolvem doença bilateral no pescoço.
MATERIAL E MÉTODOO estudo consistiu na revisão dos prontuários de 855 pacientes com carcinoma epidermóide de boca, orofaringe, hipofaringe e laringe submetidos à ressecção do tumor primário e esvaziamento cervical radical, incluindo os esvaziamentos cervicais modificados dos tipos I, II e III. Foram excluídos os pacientes com múltiplos tumores primários simultâneos ou aqueles nos quais a cirurgia inicial foi abortada por irressecabilidade. Entre os pacientes submetidos ao esvaziamento bilateral, foram incluídos 73 pacientes que apresentavam metástases bilaterais confirmadas histologicamente (ECB). Entre os pacientes submetidos ao esvaziamento unilateral, foram incluídos 23 casos com metástases confirmadas histologicamente, que posteriormente desenvolveram recidiva cervical no lado contralateral (EC+R). Todos os 96 pacientes foram tratados no Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia do Hospital Heliópolis, entre outubro de 1977 e dezembro de 1996. A radioterapia foi empregada no pós-operatório em 58 pacientes e no tratamento das recidivas em 12 casos adicionais. O seguimento médio foi de 21 meses, sendo que 79% dos pacientes foram acompanhados por mais de 12 meses. As características de cada grupo são mostradas na Tabela 1.
A evolução dos pacientes foi avaliada por meio da sobrevida livre de doença e do controle cervical, calculados pelo método atuarial de Kaplan-Meier. Os pacientes que desenvolveram recidiva foram considerados assintomáticos se resgatados com sucesso. As diferenças observadas foram avaliadas pelo teste log-rank.
RESULTADOSEntre os 23 pacientes submetidos ao esvaziamento unilateral, com metástase histológica (pN+) e que desenvolveram recidiva contralateral, 3 apresentavam recidiva também no sítio primário. Foram resgatados apenas 18 pacientes, 17 com cirurgia/radioterapia e 1 com radioterapia exclusiva, na dose de 58 Gy. Entre os 17 pacientes resgatados com cirurgia, ocorreram 3 óbitos relacionados ao procedimento de resgate. O controle da doença no pescoço em 2 anos foi alcançado em 46% dos pacientes.
Entre os 73 pacientes submetidos ao esvaziamento bilateral (pN2c), 12 casos cursaram com recidivas cervicais, das quais 2 estavam associadas à recidiva no sítio primário. Apenas 3 pacientes foram resgatados, 2 com cirurgia/radioterapia e 1 com radioterapia exclusiva (dose não relatada). Ocorreram 7 óbitos relacionados ao procedimento inicial. O controle da doença no pescoço em dois anos foi alcançado em 77% dos pacientes.
A sobrevida livre de doença foi semelhante entre os 2 grupos, apesar da diferença observada na taxa de controle cervical, demonstrado nos Gráficos 1 e 2, respectivamente.
Tabela 1. Sítio primário e estadiamento dos pacientes em cada grupo
ND = não disponível
ECB = esvaziamento cervical bilateral
EC+R = esvaziamento cervical unilateral com recidiva contralateral
DISCUSSÃOA seleção dos pacientes, incluindo apenas aqueles com doença confirmada em ambos os lados do pescoço, teve por objetivo homogeneizar a amostra. Naturalmente, como esperado em um serviço com condutas padronizadas, os pacientes submetidos a tratamentos diferentes também apresentam características distintas. Estudos anteriores sobre os esvaziamentos bilaterais abordavam outro problema, o da morbi-mortalidade do procedimento, inerente à técnica de esvaziamento cervical empregada no passado. Razack et al.3 relataram resultados semelhantes entre os esvaziamentos bilaterais realizados em um ou dois tempos, com sobrevida a 5 anos de 12% e 16%, respectivamente. A recidiva cervical contralateral, porém, pode apresentar um significado diferente em comparação com a doença bilateral. A metástase parece apresentar um comportamento diverso na ausência do tumor primário que lhe deu origem. Um possível mecanismo envolvido é a produção de substâncias anti-angiogênicas na presença do tumor primário, que poderiam inibir o crescimento das metástases4. Uma maior incidência de metástases à distância também é relatada nestes pacientes5. A recidiva reflete não somente a existência de doença residual, mas também a sua capacidade proliferativa, uma vez que não pode ser descartada a presença de doença residual microscópica nos pacientes com doença controlada.
Embora o controle cervical tenha sido alcançado em maior número de pacientes submetidos ao esvaziamento bilateral, isto não repercutiu na sobrevida livre de doença. O controle regional pode ter implicações sobre a qualidade de vida, porém o esvaziamento bilateral (radical) está associado à elevada morbi-mortalidade, especialmente quando em continuidade com a ressecção do tumor primário em pacientes debilitados por doença em estádio avançado3,6. A deiscência da ferida operatória, com a exposição do feixe vásculo-nervoso bilateralmente, configura uma situação de elevado risco para estes pacientes.
Gráfico 1. Sobrevida livre de doença entre os pacientes com metástases cervicais bilaterais
Gráfico 2. Controle cervical nos pacientes com metástases cervicais bilaterais
Weber et al.7,8 analisaram uma série de pacientes submetidos ao esvaziamento unilateral para tumores supraglóticos, comparando-os a outra série de pacientes submetidos ao esvaziamento bilateral. A sobrevida global em 2 anos foi de 72% e 76% respectivamente. As recidivas cervicais diminuíram de 20% para 9%, mas os autores não consideraram a possibilidade de resgate destas recidivas. Estes resultados permitem a escolha de qualquer conduta, embora os autores concluam que o esvaziamento bilateral seja preferível8. Amar et al.9 relatam controle cervical em 65% das recidivas contralaterais (lado não operado). Atualmente, a menor agressividade no tratamento do pescoço é justificada pelos excelentes resultados obtidos no controle regional com o esvaziamento cervical. Os esvaziamentos seletivos começam a ser considerados até mesmo na presença clínica de metástases, sendo complementados com radioterapia pós-operatória10,11. O tratamento eletivo do pescoço contralateral, quando o acesso cirúrgico expõe ambos os lados do pescoço, pode ser considerado um procedimento de oportunidade, como nas laringectomias e faringo-laringectomias. Nos tumores de boca e orofaringe, o tratamento eletivo do pescoço no lado contralateral suscita dúvidas. Tanto a conduta expectante, desde que o seguimento do paciente seja adequado, como o esvaziamento cervical ou mesmo a radioterapia são condutas aceitas para o tratamento do pescoço contralateral, sendo escolhidas conforme a experiência de cada instituição12,13. Além do risco de metástases, a indicação do esvaziamento eletivo contralateral deve considerar os riscos e benefícios do procedimento. As peculiaridades da doença e do tratamento justificam que os pacientes candidatos ao tratamento bilateral do pescoço sejam estudados separadamente. A despeito do controle da doença cervical ser obtido na maioria dos pacientes, apenas um terço daqueles com metástases bilaterais apresentam doença controlada após 2 anos. O esvaziamento em tempo único apresentou melhor controle da doença no pescoço, mas não modificou a sobrevida livre de doença neste grupo de pacientes.
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1 Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia do Hospital Heliópolis.
2 Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço - UNIFESP.
Endereço para Correspondência: Prof. Dr. Abrão Rapoport - Rua Iramaia, nº 136 Jd. Europa 01450-020 São Paulo SP.
Artigo recebido em 06 de outubro de 2003. Artigo aceito em 15 de janeiro de 2004.