INTRODUÇÃOA anquilose da articulação têmporo-mandibular (A. T. M.) resulta em impossibilidade do paciente abrir a boca, em função da restrição à movimentação da articulação 1; a mesma representa pequena porcentagem das alterações estomatognáticas. Watanabe, no departamento de cirurgia oral do Hospital Universitário de Okayama, Japão, refere que somente 0,1 % dos pacientes atendidos durante um período de cinco anos apresentou tal afecção 2. Entretanto, pela dramaticidade clínica que representa, merece atenção especial dos especialistas dessa área.
A anquilose da A. T. M. tem sido classificada em dois grupos: anquilose intra - articular e anquilose extra - articular, ambas divididas em graus: parcial ou completa e unilateral ou bilateral 1. A anquilose intra - articular causa destruição progressiva do menisco, com achatamento da fossa mandibular, espessamento da cabeça do côndilo e estreitamento do espaço articular. A anquilose é basicamente fibrosa, embora a ossificação da cicatriz possa resultar em união ósseas. Por outro lado, a anquilose extra - articular resulta em imobilização da articulação têmporo-mandibular por fibrose ou ossificação, externa à própria articulação, como nos casos de infecção do osso circunjacente ou de destruição extensa dos tecidos da cápsula articular 3.
É afecção que pode ocorrer em qualquer idade, porém é mais freqüente em crianças com menos de 10 anos. As suas causas mais freqüentes são: lesões traumáticas (fraturas de côndilo e trauma durante o parto) e infecções nas vizinhanças da A. T. M. (otite média aguda (OMA) e mastoidite ), 4,5,6.
A otite média aguda é um processo inflamatório agudo do ouvido médio, que é desencadeado a partir de infecções das fossas nasais, das cavidades paranasais e da rinofaringe, propagadas por meio da tuba auditiva 7 Entre as causas infecciosas, a OMA tem um papel importante por ser a causa mais comum pela qual os pais levam os filhos, lactentes e pré - escolares, ao consultório 8,9.
A sintomatologia inclui otalgia, febre e irritabilidade. A membrana do tímpano torna-se abaulada, opaca e eritematosa e à otoscopia pneumática apresenta-se com mobilidade limitada ou ausente, tendo sinais de acúmulo de líquido no ouvido médio, podendo ainda ser visualizada com uma perfuração e secreção purulenta.
As principais complicações são otológicas - mastoidite, petrosite, paralisia facial e sintomas vestibulares e intracranianas - abscesso extradural, tromboflebite do seio lateral, abscesso subdural, abscesso encefálico e hidrocefalia otítica 10.
É nosso objetivo enfatizar aos profissionais da área médico - odontológica a possibilidade de uma dessas causas anteriormente citadas evoluir para a anquilose da A. T. M., uma vez que a doença, por ser de progressão inicialmente lenta, pode passar despercebida e fazer com que o paciente se adapte à situação e não se queixe da incapacidade de mobilidade mandibular.
Figura 1 - Velamento das células do antro da mastóide esquerda.
Figura 2 - Planigrafia de A. T. M., seta mostra maciço ósseo.
CASO CLÍNICOPaciente Q. C. S. O., 6 anos, foi encaminhada pelo Serviço de Pediatria Assistencial do Hospital Israelita Albert Einstem, para avaliação de limitação da abertura bucal. O relato médico em seu prontuário começa há dois anos, quando do seu primeiro atendimento em outro serviço com a seguinte história:
Q. D. - "ouvido esquerdo drenando há uma semana".
H. P. M. A.- Mãe informa que há mais ou menos trinta dias a criança apresentou febre alta, que melhorava com antipirético. Houve ainda o relato de convulsão febril.
No serviço médico onde foi medicada, e internada, apresentava aumento de volume na região pré - auricular esquerda, com ponto de flutuação palpável. Foi feita drenagem na região pré - auricular e na ocasião foi cogitada a possibilidade de parotidite.
Após 24 horas, o quadro piorou em intensidade, com dor, febre e edema em toda a hemiface esquerda. Houve drenagem espontânea pelo conduto auditivo esquerdo, com conseqüente diminuição do edema e regressão da febre.
Exame físico:
Criança em mal estado geral, pálida, desidratada em 1° grau, descorada +/4+, acianótica, anictérica, febril, eupneica. Exame neurológico: Kernig +, Lasègue +, Brudzinsky +.
Exame otorrinolaringológico:
- Orelha esquerda - membrana timpânica opaca, levemente abaulada, com vasos dilatados; descontinuidade óssea supra auricular; foi aspirada secreção purulenta fluida, oriunda da região atical e edema pré - auricular.
- Orelha direita - leve dilatação vascular sobre o cabo do martelo, membrana timpânica com transparência normal. Exames subsidiários:
1) Punção lombar - líquor purulento.
Resultado do exame de líquor:
Células: 4980 células/mm
Hemácias: 2490 hemácias/mm
Diferencial: 22% linfUitos
78% neutrófilos
Gram +, freqüentes cocos em cachos.
2) Foi realizada paracentese ampla em região ântero - inferior e aspirada secreção mucopurulenta.
3) Raios-X de mastóide - velamento das células do antro da mastóide esquerda - figura 1.
4) Diagnóstico - Osteomastoidite aguda e meningite bacteriana.
5) Conduta - Mastoidectomia de urgência.
6) Tratamento clínico - Cefalosporina de 3° geração + oxacilina.
7) Complicação - Pneumonia à direita.
Após 31 dias de internação, a paciente teve alta em bom estado geral, porém com paraparesia crural espástica e incontinência urinária como seqüelas da meningite.
8) Exame buco - maxilo - facial - na ocasião do nosso primeiro atendimento, revelou:
8.1) Inspeção - assimetría facial com laterognatismo esquerdo e limitação da abertura bucal (+- 5mm) - ver figura 4a.
8.2) Palpação - presença de movimento em A. T. M. direita e ausência em A. T. M. esquerda.
8.3) Exames complementares:
Radiografia panorâmica de mandíbula - presença de grande massa óssea em A. T. M. esquerda - figura 3a. Planigrafia de A. T. M. - ausência do espaço intraarticular esquerdo em decorrência da presença de formação óssea compacta entre côndilo e cavidade glenóide esquerda - figura 2.
8.4) Tratamento - o tratamento proposto foi osteotomia com artroplastia e interposição de silicone.
A paciente foi submetida a anestesia geral, sendo a intubação auxiliada por fibroscopia óptica.
Foi realizada a incisão em região do ângulo mandibular, proposta por Risdon, com o descolamento do músculo masseter e exposição da região da A. T. M.; liberada a arrtculaçã9 anquilosada com remoção do côndilo e do tecido ósseo neo - formado; feito à seguir o preparo do neocôndilo ao ramo ascendente da mandíbula, interpondo-se uma cápsula de silicone envolvendo este neocôndilo.
Após verificar a abertura bucal, considerada satisfatória, procedeu-se à fixação do silicone no neocôndilo com fio de aço aciflex 00 - figura 3b.
Fisioterapia intensa foi realizada no período pós-operatório. A paciente, após acompanhamento por oito meses, apresenta abertura bucal de 35 mm, sem complicações locais.
Figura 3a - Radiografia panorâmica pré - operatória, seta mostra maciço ósseo.
Figura 3b - Radiografia panorâmica pós-operatória, seta mostra fio de aço mantendo bloco de silicone.
Figura 4a - Pré - operatório - Latcrognatismo E c limitação da abertura bucal.
Figura 4b - Pós-operatório.
COMENTÁRIOSApesar da alta incidência de OMA na infância, suas complicações são infreqüentes graças à antibioticoterapias 5,6
O tratamento da anquilose da A. T. M. é cirúrgico e a nossa preferência é pelo acesso de Risdon, no qual, uma vez liberado o músculo masseter, expõe-se com facilidade a região da A. T. M.'. A técnica empregada é a realização da osteotomia do maciço ósseo, objetivando a liberação da mandíbula.
Há diversas opiniões sobre a melhor conduta após a osteotomia, variando desde a colocação da fáscia do músculo temporal, cartilagem, silicone, dura-máter conservada, enxerto costo - condral com fáscía de músculo temporal e uso de articulação artificial 6,11,12. A interposição de material autógeno, homógeno ou aloplástico visa o impedimento da recidiva da anquilose. Há autores que acreditam que, com o uso de enxerto costo - condral, implantar - se à também o centro de crescimento, dando uma maior harmonia à mandíbula 13. Os argumentos contrários ao uso do silicone se prendem especialmente ao fato de ser material aloplástico.
Nós partimos do princípio de que a mandíbula cresce como um todo; logo, se operarmos precocemente, a ação da musculatura e a correta oclusão dentária poderão estabilizar a assimetria facial, não havendo necessidade de nos preocuparmos coma necessidade de implante de centro de crescimento.
Assim, nossa preferência, nos casos de anquilose unilateral, fecção mais freqüente e de tratamento mais simples, é pelo uso de m bloco de silicone, o qual tem a vantagem de ser um método bastante simples. Porém, o sucesso do tratamento só ocorrerá se associado à rigorosa fisioterapia diária, tendo como objetivo a movimentação da região e a acomodação da musculatura da mastigação.
Assim, enfatizamos que a anquilose da A. T. M. deve ser lembrada sempre que estivermos diante de traumatismos ou infecções próximas a essa região, pois o diagnóstico correto poderá
evitar que ela ocorra ou permitir que o tratamento cirúrgico seja realizado tão cedo quanto possível, diminuindo as seqüelas.
AGRADECIMENTOSÀ Pediatria Assistencial do Hospital lsraelita Albert Einstein e à Dra. Maria Emília Cardoso Gadelha.
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* Cirurgião-dentista, médico, cirurgião buco-maxilo-facial do Hospital Israelita Albert Einstein, professor assistente de cirurgia buco-maxilo-facial da Faculdade de Odontologia de Santo Amaro, pós-graduando nível mestrado do setor de cirurgia de cabeça e pescoço do departamento de Otorrinolaringologia da Escola Paulista de Medicina, São Paulo, Brasil.
** Cirurgião-dentista, médico. chefe de grupo do setor de cirurgia buco-maxilofacial do Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, Brasil.
Trabalho realizado no Hospital Israelita Albert Einstein, Av. Albert Einstein, 627 - Morumbi.
Endereço do Autor - Hospital Israelita Albert Einstein - Av. Albert Einstein, 627, sala 355 - Morumbi - CEP 05652-100.
Artigo recebido em 30 de dezembro de 1993.
Artigo aceito em 30 de março de 1994.