INTRODUÇÃOO ruído é, na maioria dos países, o agente nocivo mais prevalente nos ambientes de trabalho. Sua presença nas atividades laborais soma-se à sua intensa disseminação nos ambientes urbanos e sociais, especialmente nas atividades de lazer. Essa disseminação quase universal do ruído nos ambientes sociais e de trabalho ganha maior importância quando se considera que o dano auditivo dele decorrente é irreversível, e que a exposição produz outros distúrbios - orgânicos, fisiológicos e psicoemocionais - que resultam em evidente diminuição da qualidade de vida e de saúde dos trabalhadores1, 2, 3, 4, 5.
A perda auditiva decorre de lesão das células sensoriais do órgão de Corti no ouvido interno; é, em geral, bilateral; e tem evolução insidiosa, com perdas progressivas e irreversíveis, diretamente relacionadas com o tempo de exposição, com os níveis de pressão sonora e com a suscetibilidade individual. Essa perda manifesta-se, primeira e predominantemente, nas freqüências de 6.000, 4.000 e 3.000 Hertz e, com o agravamento da lesão, estende-se às freqüências de 8.000, 2.000, 1.000, 500 e 250 Hertz. Raramente o ruído leva à perda auditiva profunda, pois geralmente não ultrapassa os 75 decibéis nas freqüências altas e 40 decibéis nas baixas freqüências, atingindo seu nível máximo nos primeiros 10 a 15 anos de exposição. Além da perda auditiva, podem ocorrer zumbidos, plenitude auricular, tontura, dor de cabeça, distúrbios gástricos, alterações transitórias na pressão arterial, estresse e distúrbios da visão, da atenção, da memória, do sono e do humor6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14. Às manifestações biopsíquicas do desgaste diretamente produzido pela exposição ao ruído somam-se outros aspectos importantes relacionados à precariedade do suporte social e previdenciário e a ameaça constante de desemprego15. As estimativas do total de trabalhadores expostos a níveis de ruído capazes de produzir perdas auditivas somam milhões de trabalhadores em alguns países, sendo que no Brasil a situação não é diferente16, 17, 18, 20, 21.
Diante do exposto, o presente trabalho tem como objetivo principal determinar a prevalência de perda auditiva induzida pelo ruído (PAIR) entre trabalhadores de empresas industriais de nove diferentes ramos de atividade.
MATERIAL E MÉTODOO presente trabalho constitui-se em estudo de prevalência, realizado a partir de dados audiométricos referentes a 7.925 trabalhadores de 44 empresas industriais em atividade na Região Metropolitana de Salvador, Bahia. Foram incluídas empresas de nove ramos de atividade: químico/ petroquímico (11), têxtil (9), transportes (6), metalúrgico (4), bebidas (4), alimentos (3), mecânico (3), siderúrgico (2) e editorial/ gráfico (2). As empresas foram selecionadas a partir de indicação, solicitada aos sindicatos representativos dos trabalhadores de cada ramo de atividade, assim como de ciados obtidos em estudos de demanda no ambulatório do Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador (CESAT/ SUS), Todos os trabalhadores avaliados foram submetidos a pelo menos um exame audiométrico, obedecendo às especificações da legislação trabalhista em vigor, a NR-7 da Portaria N° 3.214/ 7822. Na audiometria tonal por via aérea, realizada em serviços próprios ou contratados, foram testadas as freqüências de 500, 1.000, 2.000, 3.000, 4.000, 6.000 e 8.000 Hertz, sendo que os exames foram realizados por profissionais habilitados (fonoaudiólogo ou médico), após repouso acústico de mais de 14 horas, e foram precedidos de otoscopia no momento do exame. A partir de informações fornecidas pelas empresas, foi constituído um banco de dados, utilizando o programa Epi-Inf23, com as seguintes variáveis: nome da empresa (código), número de matrícula do trabalhador, data de nascimento, data de admissão, sexo, setor de trabalho, função, limiares auditivos (em decibéis) para as freqüências de 250, 500, 1.000, 2.000, 3.000, 4.000, 6.000 e 8.000 Hertz em ouvido direito e ouvido esquerdo, e classificação da perda auditiva em cada ouvido, segundo o tipo e o grau de perda. As perdas auditivas foram classificadas segundo critérios diagnósticos de diferenciação entre perdas do tipo neurossensorial, condutiva e mista, amplamente estabelecidos pela clínica audiológica, e a perda auditiva induzida pelo ruído (PAIR) segundo critérios definidos pelo Comitê Nacional de Ruído e Conservação Auditiva, em 199424. Os limiares auditivos foram considerados normais até 25 decibéis (dB). Além do tipo de perda, os traçados audiométricos foram classificados em relação ao grau de perda e, para isso, adotou-se a classificação proposta por Merluzzi e colaboradores, em 198925. De acordo com essa classificação, o grau zero (audição normal) corresponde a traçados com limiares até 25 dB em qualquer freqüência, e assim sucessivamente:
Grau 1- perdas acima de 25 dB apenas nas freqüências de 4.000, 6.000 e 8.000 Hz.
Grau 2 - inclui perdas em 3.000 Hz. Grau 3 - perdas já atingem 2.000 Hz. Grau 4 - inclui perdas em 1.000 Hz.
Grau 5 - atinge, além de todas as outras, a freqüência de 500 Hz. Neste estudo, foi decidido classificar cada ouvido em separado, independentemente do tipo ou grau de perda no outro ouvido, discriminando as perdas bilaterais de unilaterais. As variáveis função e setor de trabalho fora reclassificadas a fim de permitir termos de comparação utilizando como critério a posição de cada trabalhador e relação ao processo produtivo. Assim, todas as funções de acordo com os setores foram classificadas em algum desses seis grupos: produção, manutenção, serviços gerais, controle de qualidade, apoio à produção e ã manutenção, e administração. O tratamento das variáveis e os cruzamentos entre elas foram realizados através do pacote estatístico de análise de dados SPSS (Norusis, 1988)26.
RESULTADOS E DISCUSSÃOCom relação às características da população estudada, observou-se variada distribuição das pessoas por sexo, idade e tempo de trabalho nas empresas, particular a cada empresa e ramo de atividade. Pode se dizer que, em conjunto, essa população constituiu de trabalhadores jovens - com menos de 40 anos de idade, do sexo masculino e com tempo de trabalho na empresa entre cinco e dez anos. A média de idade em cada ramo foi: 32,8 anos no ramo de alimentos, 33,6 anos no de bebidas, 34,5 anos no têxtil, 35,8 anos no mecânico, 36,0 anos no metalúrgico, 36,1 anos no químico/ petroquímico, 37,4 anos no siderúrgico, 38,4 anos no transporte e 39,3 anos no editorial/ gráfico. A distribuição segundo o sexo, em cada ramo, mostrou que, nos ramos de alimentos, editorial/ gráfico e transporte, de 73,9% a 77,7% dos trabalhadores eram do sexo masculino; nos ramos mecânico, têxteis e químico/ petroquímico esses percentuais variaram de 83,7% a 89,8%; e, no de bebidas, metalúrgico e siderúrgico, os homens representavam mais de 90,0% da população de trabalhadores.
As médias de tempo de trabalho nas empresas foram: 4,1 anos no ramo de alimentos, 5,1 anos no têxtil, 5,9 anos no de bebidas, 6,3 anos no metalúrgico, 6,5 anos no mecânico, 8,8 anos no químico/ petroquímico, 9,4 anos no siderúrgico, 9,9 anos no editorial/gráfico e 10,0 anos no transporte.
Uma vez que não se dispõe de outros indicadores, é particularmente importante analisar os efeitos da idade e do tempo de trabalho como aproximação do tempo de exposição. A alta rotatividade, evidenciada pelas médias de tempo de trabalho menores que o tempo de operação das empresas, indica que o tempo de trabalho na empresa não corresponde satisfatoriamente ao tempo de exposição. Em alguns casos, a idade pareceu ser melhor indicador do tempo de exposição - ou do tempo na função - do que o tempo de trabalho. É necessário, portanto, pensar em formas de operacionalização de indicadores de tempo de exposição que possam ser utilizados, tanto para fins de vigilância à saúde quanto para estudos epidemiólógicos.
A comparação das prevalências de perda auditiva entre os ramos deve considerar, em primeiro lugar, as diferenças de percentuais de realização de audiometria entre as empresas em cada ramo.
É preciso cautela na análise da disparidade de resultados entre as empresas, que, antes de refletir situações diferenciadas de exposição a ruído, podem ser conseqüência de diferenças nos percentuais de realização de audiometria entre os expostos, em cada empresa e no total do ramo.
Na população estudada, a prevalência de perda auditiva foi de 45,9%, o que significa que 3.639 trabalhadores apresentaram tal alteração. Comparando os ramos entre si, observa-se que as maiores prevalências ocorreram entre os trabalhadores gráficos, de bebidas, em transportes, mecânicos e químicos/ petroquímicos, todos esses com mais de 50,0% dos trabalhadores acometidos (Tabela 1).
Em relação à perda auditiva do tipo induzida por ruído, somando as perdas bilaterais e unilaterais, observou-se prevalência de 35,7% de PAIR. Essas prevalências, para cada ramo, foram as seguintes: 58,7% no editorial/ gráfico, 51,7% no mecânico, 45,9 no de bebidas, 42,3% no químico/ petroquímico, 35,8% no metalúrgico, 33,5% no siderúrgico, 29,3% no de transportes, 28,0% no de alimentos e 23,4% no têxtil (Tabela 1).
Chamam a atenção as altas prevalências de PAIR unilateral - em 18% dos trabalhadores examinados, concentrando-se mais notadamente nos setores de bebidas e químico/ petroquímico (Tabela 1). Outra observação a ser feita diz respeito à ocorrência de diferenças importantes entre ouvido esquerdo e ouvido direito. Isso implica em reconsiderar o que vem sendo afirmado por muitos, de que a PAIR é quase sempre bilateral, tornando-se necessário um melhor esclarecimento desse fato, inclusive com estudos a respeito da execução das tarefas. KWITKO & PEZZI (1993) referem estudo de avaliação da audição realizado em 826 trabalhadores metalúrgicos, no qual observaram que 40,0% dos casos de PAIR eram unilaterais27.
É importante ressaltar, ainda, que na grande maioria os casos de PAIR foram considerados como de grau 1 da Classificação de Merluzzi, que corresponde à fase inicial da doença, quando as perdas auditivas limitam-se às freqüências altas (de 4.000 a 8.000 Hertz), como pode ser evidenciado na Tabela 2. Com a evolução das lesões, após o aprofundamento nas freqüências altas, as perdas estendem-se progressivamente para as freqüências intermediárias (3.000 Hertz) e às baixas (2.000 a 500 Hertz).
A respeito da ocorrência de outros tipos de perda auditiva, ressalta-se, em alguns casos, as elevadas prevalências das perdas dos tipos condutiva e mista, especialmente nos setores de transportes e de bebidas (Tabela 2). Essas perdas podem ter alguma relação com as condições de trabalho, se bem avaliadas, e não devem ser menosprezadas. Esse fato é de extrema importância quando se considera a saúde do trabalhador de forma integral, do mesmo modo que suas condições de trabalho e a totalidade dos riscos a que estão expostos os trabalhadores. Alguns estudos indicam que até 60,0% de uma população trabalhadora- têm outros problemas otológicos que não surdez ocupacional (ROBINSON, 1973; DOBIE, 1985; AZEVEDO, Outro aspecto importante do desgaste à saúde, detectado neste estudo, diz respeito à distribuição das perdas auditivas entre as funções. As prevalências de perdas auditivas em trabalhadores em manutenção e em serviços de apoio à produção e a manutenção indicam que há certa população maior de trabalhadores expostos, além daqueles diretamente ligados à produção, inclusive com maior ocorrência de PAIR, em alguns casos (Tabela 3).
CONCLUSÃOA exposição ao ruído é o problema de saúde ocupacional mais prevalente nos ambientes industriais. Os efeitos dessa exposição no aparelho auditivo humano são bem conhecidos e decorrem de lesões das células sensoriais do órgão de Corti do ouvido interno.
Este estudo permitiu delinear quadro extremamente alarmante, dada a magnitude da prevalência de perda auditiva do tipo induzida por ruído (PAIR) - 35,7% do total de 7.925 trabalhadores -, ou seja, um em cada três trabalhadores desenvolveu algum grau ele perda em pelo menos um dos ouvidos. É importante ressaltar que a maioria dos casos ele perdas auditivas foram caracterizados como ele grau 1 da Classificação de Merluzzi, o que corresponde à fase inicial da evolução da doença. As maiores prevalências de PAIR foram encontradas entre os -trabalhadores ligados- à produção, à manutenção e os serviços de apoio à produção e a manutenção.
Os resultados do presente trabalho demonstram a importância ela implementação, por parte das empresas, de programas de conservação auditiva com o objetivo de prevenir a instalação ou evolução de perdas auditivas em trabalhadores expostos ao ruído presente nos locais ele trabalho. Esses programas devem contemplar pelo menos os seguintes aspectos básicos:
1. Programa de Controle Médico: monitoramento dos trabalhadores expostos ao ruído ambiental através de exames audiométricos realizados por ocasião do exame admissional, seis meses após a admissão e, posteriormente, a cada ano.
2. Programa de Avaliação Ambiental: medição periódica dos níveis de pressão sonora nos ambientes ele trabalho (decibelimetria), assim como monitoramento da exposição individual, buscando definir a dose de ruído recebida por cada um dos trabalhadores através da utilização de dosímetros.
3. Medidas de Proteção Coletiva: podem ser organizativas (exemplo: introdução de pausas durante o trabalho, reorganização do processo ele trabalho) ou ele controle ambiental (exemplo: manutenção preventiva e corretiva de máquinas e equipamentos ruidosos, reorganização do layout, isolamento e/ou enclausuramento de máquinas e equipamentos e tratamento acústico de paredes, entre outros).
4. Medida de Proteção Individual: LISO constante e obrigatório de protetores auriculares ( tipo concha ou ele inserção).
5. Programa Educativo: com o objetivo ele levar ao conhecimento, de trabalhadores e empregadores os riscos da exposição ao ruído e as medidas de proteção que podem ser adotadas, buscando o envolvimento daqueles e destes na implantação e na execução do programa ele conservação auditiva.
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* Médico do Trabalho e Mestre em Saúde Comunitária (UFBa - Universidade Federal da Bahia).
** Médico do Trabalho.
*** Mestre em Saúde Comunitária (UFBa - Universidade Federal da Bahia).
Delegacia Regional do Trabalho no Estado da Bahia (DRT/Ba) Endereço para correspondência: Carlos Roberto Miranda - Av. Magalhães Neto, 68 - apto 1001 - Pituba - Salvador/ BA - CEP 41820-020 - Telefone / Fax: (071) 353-1768.
Artigo recebido em 21 de agosto de 1997. Artigo aceito em 19 de novembro de 1997.