INTRODUÇÃOA anatomia do osso temporal é das mais complexas do organismo. O apropriado conhecimento da anatomia do osso temporal só pode ser obtido pela compreensão das inter-relações espaciais de todas as suas estruturas. Contudo, a natureza compacta do osso temporal impede a visualização direta destas estruturas. A simples descrição por palavras ou figuras em duas dimensões é de difícil compreensão. Seu conhecimento tridimensional exige muitas horas em laboratório de dissecção, tanto por parte dos estudantes quanto dos cirurgiões otológicos. A tomografia computadorizada ajudou muito nesse conhecimento anatômico, principalmente no planejamento cirúrgico, detalhando com precisão relações anatômicas que antes eram somente vistas no ato cirúrgico. Mesmo com o uso rotineiro da CT no préoperatório, o cirurgião precisa tentar formar a imagem 3D olhando vários cortes tomográficos para planejamento cirúrgico. A reconstrução tridimensional computadorizada tem sido utilizada por vários autores para o aperfeiçoamento do conhecimento do osso temporal. Alguns autores fazem essas reconstruções a partir de cortes histológicos, buscando alterações de normalidade. Moreano et cols.1 encontraram deiscência de canal carotídeo no osso temporal em 7,7% de 1.000 ossos estudados. Os mesmos autores, em outro estudo, encontraram deiscência de nervo facial em 56% e persistência da artéria estapediana em 0,489/0. Takahashi e Sando2 estudaram 20 ossos com deiscências de nervo facial, encontrando 70% destas na região da janela oval. Em estudo posterior, analisaram as distâncias relacionadas com a cirurgia de estapedectomia3. Nakashima et cols.1 estudaram os diâmetros do nervo facial, canal de Falópio, e o espaço entre o nervo e o canal nos diversos segmentos em sete ossos temporais normais, para correlacionar com a fisiopatologia da paralisia de Bell estudaram a relação espacial do nervo facial com o anel timpânico e forâmen estilomastóideo em várias idades, com a finalidade de alertar o cirurgião para as diferenças do nervo facial nas diversas faixas etárias. Gasser et Cols.6 estudaram o desenvolvimento do nervo facial em embriões humanos. Matthew e Linthicum analisaram o plexo vascular do dueto endolinfático contribuindo para o entendimento da fisiologia deste observando 61 duetos e sacos endolinfáticos em pacientes com doença de Ménière e controles, verificaram que em pacientes com hidrops o diâmetro destes é menor. reconstruíram o gânglio de Scarpa a partir de cortes histológicos em sete ouvidos de diferentes faixas etárias, confirmando que seu volume não varia mas sua forma varia, de acordo com a idade realizaram estudos com reconstrução 3D de superfície a partir de tomografia computadorizada em pacientes com doença de Ménière e pacientes controle observando que em pacientes com hidrops apresentavam abertura externa do aqueduto vestibular menor em relação aos pacientes normais.
O objetivo deste trabalho é apresentar estudo preliminar de reconstrução 3D do osso temporal, para o estudo de vias de acesso cirúrgico para neuroma do acústico.
MATERIAL E MÉTODOFoi utilizado o osso temporal esquerdo de cadáver sem alteração otoscópica, conservado em formol. A parte escamosa do mesmo foi fixada com cola de silicone em superfície plástica de 16 x 9 cm, a qual se ajusta de forma precisa a um recipiente, também plástico, medindo 16 x 9 x 10 cm. Este foi preenchido completamente com água, sendo a peça imersa na mesma. O resultado final é uma caixa preenchida de água, tendo em seu interior a peça, mantida imóvel pela sua parte escamosa, que se acha fixada à tampa do recipiente. Todo o conjunta foi fixado a um anteparo com ajuste preciso da posição no espaço, contendo as coordenadas numeradas nos eixos x e y (plano perpendicular à mesa do tomógrafo). O resultado final obtido permitiu que a posição da peça fosse mantida constante nas oportunidades em que foram efetuadas os exames.
Todos os exames foram realizados no mesmo tomógrafo, modelo CT-PACE plus (GE - USA), com espessura de 1mm, FOV de 9 cm, algoritmo de reconstrução de alta resolução espacial (bone), 120 Kv e 80 mA, com tempo de aquisição de cada imagem de 3 segundos. Os exames foram realizados em três etapas: antes de qualquer manipulação, após acesso retrolabiríntico e após acesso trans-labiríntico.
A peça, ainda fixa no plástico, foi brocada simulando a cirurgia via retrolabiríntica, com conservação da cadeia ossicular e labirinto. Foi removido o osso sobre a dura-máter da fossa posterior desde a porção posterior do seio sigmóide até o conduto auditivo interno anteriormente. Com a peça neste estágio, foram realizados novos cortes tomográficos. Com o segundo exame concluído, foi realizada a labirintectomia para simulação da via translabiríntica e então realizado o exame tomográfico final. Os exames foram arquivados em discos ópticos para posterior análise.
Para reconstrução tridimensional foi utilizado o software do próprio aparelho de tomografia, o qual promove reconstruções baseadas num limite de unidades Hounsfield, ajustado para visualização de tecido ósseo no presente estudo. Para o cálculo do volume de osso retirado por cirurgia, as imagens foram transferidas para um microcomputador via uma câmera CCD (Sony - Tokio, Japão) conectada à uma placa digitalizadora de imagens (Oculux TCX - Coreco, Canadá). O cálculo preciso do volume de osso retirado foi conseguido com a ajuda de um software de análise de imagens (Bioscan Optimas - v.401 - Aldus Corp., EUA), o qual permite a integração da área de cada imagem, para gerar o volume a partir da espessura representada e do número de imagens.
Figura 1. Vista lateral: P = ponta da mastóide, t = osso timpânico, Z = arco zigomático, seta = espinha suprameatal.
Figura 2. Vista posterior: CAI = conduto auditivo interno, DE _ dueto endolinfático, SS = seio sigmóide, PB = pares bulbares.
RESULTADOSOs resultados obtidos com a reconstrução tridimensional proporcionaram a identificação dos principais pontos anatômicos utilizados como referência para o cirurgião durante brocagem do osso temporal. A capacidade de posicionar a imagem em qualquer ângulo de observação possibilitou a adequada correlação do exame com a posição encontrada pelo cirurgião, quando do posicionamento cirúrgico habitual. O campo cirúrgico de visão mostrado nos filmes da reconstrução tridimensional fornece a noção da relação única das estruturas do ouvido de cada paciente, o que é de grande utilidade para o ato cirúrgico.
As Figuras 1 e 2 correspondem à reconstrução de superfície antes do brqueamento: podemos notar precisamente os pontos de reparo na superfície do osso. As Figuras 3 e 4 mostram o acesso cirúrgico retrolabiríntico: podemos notar seus limites, como o bulbo da jugular, canal semicircular posterior e soalho da fossa média. Na visualização posterior (Figura 3) notamos o conduto auditivo interno aberto, sendo o fator limitante de sua abertura o canal semicircular posterior. As Figuras 4 e 5 nos permitem comparar o espaço que os acessos retro e translabiríntico oferecem.
O tempo médio para cada reconstrução foi de 140 segundos, aproximadamente 2 segundos por imagem do estudo, o que não inviabiliza esta técnica na rotina de exames, acrescentando somente um filme a mais na documentação do exame.
DISCUSSÃOreconstrução tridimensional tem várias aplicações para o conhecimento anatômico e planejamento cirúrgico. Através de cortes histológicos se tem a vantagem de precisão de medidas e possibilidade de análise de partes moles.A reconstrução tridimensional através da tomografia computadorizada tem a vantagem de poder ser realizada em pacientes, enquanto que a histológica tem sua utilização somente em cadáver.
Existem basicamente cinco vias de acesso para a exerese do neurinoma do acústico: subocciptal, fossa média, translabiríntica e retrolabiríntica. A via subocciptal é realizada somente por neurocirurgiões, não sendo objeto de estudo para o nosso trabalho. A via fossa média é indicada em raros casos e está praticamente abandonada, já que a via retrolabiríntica dá melhores resultados quanto à audição. A via translabiríntica foi primeiramente descrita por Panse em 1904"; porém, esta foi logo abandonada, por não haver material cirúrgico adequado para sua realização. Somente em 1962 é que House" retomou esta via, com baixos índices de mortalidade e morbidade. Esta via tem as vantagens de observação do nervo facial desde o início da cirurgia, apresentando portanto baixos índices de paralisia facial pósoperatória, e possibilidade de exerese de grandes tumores. A sua grande desvantagem é a não preservação da audição. Hitselberger & Pulec, em 1971", descreveram a via retrolabiríntica para neurectomia vestibular. Desde então, esta via também está sendo utilizada para a exerese do neurinoma do acústico, já que há possibilidade de preservação da audição.
Figura 3. Vista posterior, acesso retrolabiríntico: cai = conduto auditivo interno, asterisco = projeção do canal semicircular posterior.
Atualmente, com o advento da ressonância magnética, temos a possibilidade de diagnosticar tumores intracanaliculares de até 2 mm, sendo a sensibilidade/especificidade deste método ao redor de 98/99% (REF). Nestes casos, a audição e discriminação vocal estão muitas vezes preservadas, sendo a via retrolabiríntico uma excelente opção. A cirurgia para neurinoma do acústico requer um conhecimento anatômico preciso por parte do cirurgião. A escolha da via cirúrgica requer, além de outros fatores, a viabilidade anatômica daquele paciente, principalmente em se tratando do acesso retrolabiríntico. Neste acesso, a exerese do tumor se dá em espaço entre a duramáter da fossa posterior e seio sigmóide, canal semicircular posterior, duramáter da fossa média e bulbo da jugular. A angulação necessária à visualização do conduto auditivo interno e, portanto, ao tumor depende basicamente do espaço entre o canal semicircular posterior e o seio sigmóide. Em estudo anterior de 115 casos de cirurgia de neuroma do acústico, encontramos dificuldades geri-operatórias em 37 casos (32,17%), sendo que foi observado bulbo jugular protuso em quatro (10,81%), e seio sigmóide protuso em 28 (75,67%)1'. Por estes índices, vemos que o seio sigmóide é fator limitante para a exposição do ângulo ponto cerebelar. Logicamente é realizado o broqueamento de todo o osso sobre o seio sigmóide e duramáter anterior e posterior a este, o que permite o afastamento da fossa posterior para obtenção da angulação. Mas, mesmo assim, em alguns casos, esta angulação não é suficiente para visualização do fundo do conduto auditivo interno. O grande problema é falarmos ao paciente que sua audição ode ser preservada, e que somente durante a cirurgia poderemos ter certeza quanto a isso. A reconstrução 3D do osso temporal poderá no futuro simular esta cirurgia; assim sendo, o cirurgião já vai conhecer de antemão as dificuldades que irá encontrar no intra-operatório daquele paciente. Através da continuação deste estudo, estaremos abrindo, una nova perspectiva no planejamento cirúrgico. Ë possível realizar previamente a cirurgia no computador, já sentindo as dificuldades que serão encontradas. E, no futuro, fazer o treinamento de alunos através deste processo. Este dado pode refletir-se numa previsão do tempo cirúrgico, o qual pode ser mais preciso se associarmos o cálculo ao grau de dificuldade de acesso mostrado nas imagens de reconstrução tridimensional. Esta análise, o impacto das imagens tridimensionais no tempo cirúrgico, é objeto de um estudo em andamento realizado por este grupo.
Figura 4. Posicionamento cirúrgico, via retrolabiríntico: A = acesso, M = ponta da mastóide, z = arco zigomático, t = osso timpânico, c = conduto auditivo externo, p = canal semicircular posterior, f = soalho da fossa média, i = bulbo da jugular, asterisco = canal de Falópio, seta = bigorna.
Figura 5. Posicionamento cirúrgico, via translabiríntica:
A= acesso, M = ponta da mastóide, z = arco zigomático, t = osso timpânico, c = conduto auditivo externo, f = soalho da fossa média, j = bulbo da jugular, asterisco = canal de Falópio.
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* Doutora em Otorrinolaringologia pela FMUSP, Médica Assistente da Disciplina de Clínica ORL do HC da FMUSP.
** Médico Preceptor da Disciplina de Radiologia da FMUSP.
*** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
*** Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
Trabalho realizado nas Disciplinas de Otorrinolaringologia e Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, e LIM - 32. Endereço para correspondência: Priscila Bogar, Rua Gaivota, 916 - apto 73 - São Paulo /SP - CEP: 04522-032 - Telefone e Fax (011) 448-6151, e-mail: pl@ogargibm.net.
Artigo recebido em 13 de maio de 1997. Artigo aceito em 22 de julho de 1997.