INTRODUÇÃOO querubismo é uma heredopatia pouco freqüente, condicionada por gene autossômico dominante, com penetrância incompleta e expressividade variada. Clinicamente se caracteriza por hipertrofia da mandíbula, pelo volume das bochechas e, por vezes, pela hipertrofia dos maxilares, com tendência a elevar os olhos para cima ("o olhar para o céu", como se lê na descrição original de Jones em 1933'). Tal aparência fez com que os pacientes portadores desta afecção fossem comparados com os querubins renascentistas e/ ou barrocos. Trata-se de uma displasia óssea descrita em 1914 por Frangenhein como uma "hiperostose difusa dos maxilares de origem familiar", porém coube ao canadense Jones sua denominação e introdução desta afecção como entidade clínica distinta'.
Portadores do Querubismo podem apresentar, além do problema estético e suas repercussões psicológicas, dificuldade para respirar, para deglutir e para a fonação. Alterações visuais podem surgir nos casos mais avançados.
O aspecto radiológico mostra, como sinal clássico, lesões multilobuladas bilaterais que se expandem para as maxilas e ramos mandibulares, preservando os côndilos.
Não há tratamento específico para o Querubismo. A conduta é expectante, já que há tendência de se estabilizar na puberdade e regredir na vida adulta.
O tratamento cirúrgico é indicado como intuito de propiciar uma melhora funcional e minimizar as deformidades estéticas.
Acompanhamos, recentemente, uma criança do sexo masculino com quadro de Querubismo severo, cujos dois outros irmãos tinham sido operados por nós há quatro anos. Julgamos interessante a divulgação do estudo realizado comeste paciente, incluindo seus aspectos genéticos, pela forma peculiar como esta doença se desenvolve.
CASO CLÍNICOE.F.S., 3 anos, natural de São Paulo, capital. Q.D.: deformidade no rosto há um ano e meio. H.P.M.A.: refere a mãe que desde os dezoito meses de idade começou a notar deformidade na mandíbula de caráter progressivo, que depois estendeu-se para a região de maxilares e céu da boca (SIC). Concomitantemente, dificuldade respiratória e de alimentação, pois não conseguia mastigar.
Há uma semana purgação no ouvido direito.
A.F. - mãe quando jovem tinha proeminência nas bochechas (SIC).Refere também ter irmão e uma irmã com a doença, assim como dois outros filhos com quadro semelhante ao do paciente, porém menos intenso.
Exame Físico Objetivo:
Deformidade facial de maxilares e de mandíbula às custas de abaulamento difuso e de consistência firme, com desvio do olhar para cima (figs. 1 e 2).
Nariz : afastamento dos ossos próprios com selamento do dorso. Secreção mucóide em ambas as fossas nasais.
Boca: sempre aberta, com palato ogival, tendo abaulamento firme junto ao rebordo alveolar superior, incluindo a região gengivo - labial bilateralmente. Protrusão dos dentes superiores com amolecimento de alguns, inclusive na arcada inferior.
Ouvido : direito, com perfuração central e com secreção purulenta no meato acústico externo.
Exames Subsidiários
O estudo radiográfico panorâmico da mandíbula mostrou extensas lesões osteolíticas em forma de "bolhas de sabão", ocupando todo o tecido ósseo, porém respeitando os côndilos (fig. 3).
A tomografia computadorizada revelou também lesões osteolíticas de aspecto esponjoso que ocupavam ambos os maxilares e empurravam as órbitas para cima, protraindo ligeiramente os olhos para cima. Na mandíbula também observam-se lesões radiotransparentes com desarranjo na distribuição dos dentes (fig. 4 e 5).
Com a hipótese clínica de Querubismo e em função das dificuldades vitais que a criança estava apresentando, foi indicada a cirurgia, programada em dois tempos: inicialmente o tempo maxilar e, em seguida, o mandibular. O objetivo principal em estadiar a cirurgia seria poupar o paciente quanto à perda sangüínea.
1°tempo : abordagem através de incisão no sulco gengivo - labial bilateralmente e ressecção da massa tumoral em fragmentos. Havia abaulamento das regiões sublabiais com destruição da parede ântero -inferior dos seios maxilares.
A remoção do tumor foi parcial, com o intuito de reduzir o abaulamento da face, descomprimir as fossas nasais e reduzir a deformidade do palato.
2' tempo : coube à curetagem da mandíbula, com sua modelagem.
O exame histológico evidenciou proliferação conjuntiva em feixes irregulares e entrelaçados, com reação giganto - celular, em certos campos preponderante. Este aspecto não é conclusivo de Querubismo, pois pode ser observado também nos casos de displasia fibrosa, granuloma reparador de células gigantes ou mesmo tumor de células gigantes (fig. 6 e 7).
FIGURA 1 - Deformidade facial em mandíbula e maxilas, projetando o olhar para cima.
FIGURA 2 - Semelhança com os querubins, com impossibilidade de fechar a boca devido ao abaulamento em palato.
FIGURA 3 - Radiografia panorâmica de mandíbula, apresentando lesões em " Bolhas - de - sabão " .
FIGURA 4 - Corte tomográfico axial, mostrando lesão radiotransparente em maxilas.
DISCUSSÃOO quadro clínico deste paciente nos fez pensar de imediato em Querubismo, dada a sua semelhança com os querubins representados na Arte Renascentista e/ou Barroca.
A acompanhante referia que outros dois irmãos apresentavam doença semelhante, o que caracterizava uma afecção de ocorrência familiar (III-4 e III-5 na fig. 13)
O paciente em estudo apresentou deformidades mais severas que os outros familiares e poderia ser enquadrado na "fase 3" da classificação de Fordyce e Wedgwood (1976)² , que avalia em fases a intensidade do crescimento:
Fase 1: envolvimento dos dois ramos mandibulares.
Fase 2. envolvimento dos dois ramos mandibulares e da tuberosidade do maxilar.
Fase 3: envolvimento de toda a maxila e da mandíbula, exceto o processo aoronóide e os côndilos.
Bertelli (1975)³ , no seu trabalho, modifica a classificação de Fordyce e Wedgwood e inclui a fase 0 ou grau zero, que constitui aquele grupo de indivíduos que apresentam sinais indiretos de portadores da moléstia, pelos antecedentes, pela radiologia e pela determinação do ângulo mandibular. São os portadores genéticos sem moléstia evidente, como podemos demonstrar no caso da mãe do paciente. Essa refere ter tido proeminência das bochechas no passado e o estudo radiográfico atual mostra o ângulo mandibular mais aberto (fig. 8), além de pequenas alterações de condensação óssea, porém com contornos faciais socialmente aceitáveis.
Em geral, as classificações de Querubismo são baseadas nas alterações do esqueleto facial, porém há possibilidade desta afecção atingir ossos longos, linfadenopatias, alterações neurológicas e hipertrofia da gengiva.
As alterações estruturais no paciente surgiram aos dezoito meses devida e rapidamente evoluíram, levando a uma aparência estética de " anjo " com protrusão das maxilas e ligeira rotação do olhar para cima. Acompanhando estas deformidades, a criança tinha dificuldade para fechar a boca, para a mastigação e respiração.
Em função disto, apresentava edema e inflamação leve na mucosa gengival e oral. A deglutição estava comprometida, assim como a mastigação. Dentes amolecidos e com irregular distribuição podiam ser observados ao exame físico e ao estudo radiológico (fig. 9).
Bertelf'³ e Vaillant 4 chamam a atenção para dentes incluídos em meio à massa tumoral, podendo apresentar oligodontia mandibular, caninos impaetados na maxila e problemas ortodônticos. Edema de gengiva na arcada inferior é muito freqüente.
Os aspectos clínicos do Querubismo podem ser evidenciados entre 1 e 3 anos de idade. Segundo Zachariades e col. (1985)5 a evolução é marcada pelo crescimento entre 2 e 8 anos de idade, iniciando sua parada por volta dos 10, estabilizando-se na puberdade e regredindo na vida adulta.
A manifestação clínica do Querubismo depende de três fatores determinantes
1° precocidade do aparecimento;
2" intensidade das alterações ósseas;
3° número de áreas atingidas.
O quadro clínico de nosso paciente era o mais acentuado da família (111-6 na fig. 13).Apresentava comprometimento de ambos os rebordos infra-orbitários com deslocamento das pálpebras inferiores e exposição da esclerótica, com a clássica aparência do "olhar para o céu". Juntamente com o abaulamento da região bucinadora provocado pelo comprometimento da maxila e mandíbula, constitui o aspecto típico de Querubismo.
Com relação aos irmãos do propósito, o irmão (III-5 na fig. 13) apresentou somente lesões na mandíbula, enquanto a irmã (111-4 na fig. 13) apresentou lesões na mandíbula e na maxila. Ambos foram submetidos à cirurgia modeladora e ficaram esteticamente muito bem (fig. 10), apenas com alterações dentárias que exigirão algum tipo de tratamento complementar (fig. 11 e 12).
Quanto à patogenia desta afecção, ela é desconhecida; contudo, sabe-se que tem condicionamento genético, relacionado com gene autossômico dominante com penetrância incompleta e expressividade variável, sabendo-se que 100% dos homens portadores do gene manifestam a doença, o que ocorre em 70% das mulheres.
O heredograma elaborado por informações da mãe do propósito é apresentado a seguir (fig. 13).
Para o diagnóstico, embora a presença de deformidades faciais e dados genéticos seja prevalente, o estudo radiológico é necessário.. Este muitas vezes serve como elemento para o diagnóstico precoce, pois as lesões podem ocorrer mesmo antes das manifestações clínicas serem evidentes.
Os ramos mandibulares geralmente são comprometidos bilateralmente, mas na maxila poderá ser unilateral, freqüentemente com a aparência clássica de "bolhas de sabão". Este aspecto caracteriza-se por lesões multioculares que se iniciam no ângulo da mandibula e tuberosidade e progressivamente comprometem toda a extensão da mandíbula e maxila, respeitando os côndilos.
FIGURA 5 - Corte tomográfico coronal, com extensa lesão radiotransparente, envolvendo todo o andar inferior da face, incluindo os dentes.
FIGURAS 6 - Histopatológico da lesão: tecido conjuntivo com celularidade aumentada e numerosas células gigantes com aspecto de osteoclastos. (HE - 100X)
FIGURA 7 - Tecido conjuntivo de padrão proliferativo, com evidência de células gigantes multinucleadas. (HE-200X)
FIGURA 8 - Sinal radiológico de portador do Querubismo ângulo mandibular mais aberto.
FIGURA 9 - Radiografia de perfil, onde se evidenciam os dentes em meio à massa tumoral, com o comprometimento de toda a região palatina.
FIGURA 10 - Mãe, paciente e irmãos. Estes, com resultado estético satisfatório no pós - cirúrgico.
CONCLUSÃOO Querubismo é uma entidade clínica pertencente à classificação dos tumores ósseos. Histopatologicamente, é quase impossível diferenciá-lo de outras afecções, tais como a displasia fibrosa, o granuloma reparador de células gigantes ou mesmo o tumor de células gigantes. Os dados clínicos, associados aos genéticos, definem o diagnóstico.
O critério cirúrgico estará na dependência das alterações anatõmicas e funcionais, uma vez que tende ao desaparecimento com a adolescência.
O uso da radioterapia está contra-indicado porque poderá levar à osteorradionecrose e ao osteossarcoma, sendo um consenso entre os diversos autores.
FIGURA 11 - Radiografia panorâmica de mandíbula da irmã, mostrando alterações em mandíbula bem características.
FIGURA 12 - Radiografia panorâmica do irmão, com seqüelas ósseas, porém com preservação maior dos dentes.
FIGURA 13 - Heredograma.
REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA1 . JONES, W. A.: Familial multiocular cystic disease of the jacas. Am: J. Carecer, 17: 946 - 50, 1933.
2. FORDYCE, G. L.; WEDGWOOD, G. L.: Experience with are intra-oral stepostectomy of the mandible for prognathism. Oral Surg. 41: 416-22, 1976.
3 . BERTELLI, A.P.: Contribuição ao estudo do querubismo. Patogenia, genética e aspectos andtomo-clínicos de uma família brasileira. São Paulo, 1975. Tese de Doutoramento - Escola Paulista de Medicina
4. VAILLANT, J. M.; RAMAIN, P.; DIVARIS, M.: Cherubism: findings ire three cases ire the same family. J. Cranio Max. Fac. Surg. 17: 345 - 9, 1989.
5 . ZACHARIADES, N.; PAPANNICOLAOU, S.; XYPOLLYTA, A.; CONSTANTINIDIS, L: Cherubism. Int. J. Oral Surg. 14: 138 - 45, 1985.
*Trabalho realizado no Dept° de ORL e Oftalmo da Santa Casa de São Paulo. R.Dr. Cesário Morta Jr. 112 São Paulo 01221
** Prof. Chefe de Clínica do Dept° de ORL e Oftalmologia da Santa Casa de São Paulo
*** Prof°Instrutora da Disciplina de ORL da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
**** Prof. Assistente do DepP de Ciências Patológicas da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
***** Prof Adjunto do Dept° de Ciências Patológicas da Fac. De Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
Artigo recebido em 21106193. Artigo aceito em 20107193.