INTRODUÇÃONos últimos anos, com a introdução cio teste das emissões otoacústicas evocadas (EOAE) na bateria de exames audiológicos, tornou-se possível encontrar um novo grupo clinico de pacientes, com diagnóstico de neuropatia auditiva6, 10.
A neuropatia auditiva é identificada pela presença de EOAE e/ou microfonismo coclear e ausência de potenciais auditivos evocados do tronco encefálico (ABR), evidenciando, respectivamente, função normal de células ciliadas externas (CCE) e sincronia neural anormal6, 10.
Indivíduos com neuropatia auditiva podem ter dificuldade para compreender a fala, principalmente na presença de ruído. Há dificuldade para acompanhar a conversação, tornando-se necessário o apoio de leitura orofacial6, 10.
O objetivo deste artigo é descrever o caso de uma criança cujo quadro de neuropatia auditiva foi diagnosticado nos primeiros meses de vida no programa de acompanhamento multidisciplinar de neonatos de risco, no Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), tendo sido realizada intervenção fonoaudiológica subseqüente.
REVISÃO DE LITERATURAA neuropatia auditiva caracteriza-se pelos seguintes achados6, 10:
- Pode manifestar-se isoladamente ou como parte de um processo neuropatológico generalizado.
- A acuidade auditiva pode ser normal ou o paciente pode apresentar perda auditiva de qualquer grau e configuração.
- Reconhecimento de fala alterado, sendo mais prejudicado na presença de ruído.
- Função de CCE normais, ou seja, EOAE e microfonismo coclear normais.
- Ausência de supressão eferente das EOAE na presença de estimulação acústica ipsi ou contralateral.
- Reflexos acústicos estapedianos ausentes ipsi e contralateralmente.
- Função neural anormal, ou seja, ABR ausentes ou severamente alterados.
- Incompatibilidade entre os limiares auditivos tonais e as EOAE, revelando a necessidade de realização de outros testes.
- Exame de imagem (ressonância magnética e tomografia computadorizada) normal.
- Etiologia variada, como intercorrências perinatais e fator genético (por exemplo, a síndrome Charcot - Marie - Tooth tipo I e II e a síndrome Guillain - Barré).
Indivíduos com neuropatia auditiva apresentam, inicialmente, história e testes comportamentais similares ao de indivíduos portadores de desordem do processamento auditivo central. Os resultados de medidas eletrofisiológicas, porém, revelam alterações mais periféricas na neuropatia auditiva, que podem estar localizadas nas células ciliadas internas (CCI), na membrana tectorial, na sinapse entre as CCI e o nervo auditivo, nos neurônios do gânglio espiral, nas fibras do nervo auditivo e/ ou relacionadas a uma anormalidade bioquímica dos neurotransmissores6, 10.
A reabilitação auditiva destes indivíduos requer uma abordagem diferente daquela adotada em casos de deficiência auditiva periférica comum6.
Geralmente, há pouco ou nenhum benefício com o uso de prótese auditiva. Alguns pacientes consideram útil o sistema FM (sistema para auxiliar a comunicação interpessoal e recepção da mídia') , uma Vez que melhora o sinal fala/ ruído. Se houver a tentativa de amplificação sonora, recomenda-se o uso de uma prótese auditiva com pouco ganho e- compressão WDRC (compressão dinâmica), para minimizar qualquer efeito deletério sobre as EOA6.
Pacientes diagnosticados como tendo uma perda auditiva severa/ profunda, que mostram pouco ou nenhum benefício com o uso de prótese auditiva, podem ser portadores de neuropatia auditiva, e merecem passar por uma reavaliação diagnostica, incluindo exames elas EOAE e ABR, que são testes sensíveis à função coclear e neural6.
As intercorrências no período neonatal, como a hiperbilirrubinenmia, estão entre os fatores etiológicos da neuropatia auditiva6. Assim, toma-se necessário realizara pesquisa das EOAE, ABR e observação comportamental a estímulos sonoros nos neonatos com estes indicadores de risco para distúrbios da audição o mais precocemente possível, de forma a possibilitar unia intervenção rápida e um melhor prognóstico.
APRESENTAÇÃO DE CASO CLÍNICOE. C. G., do sexo feminino, com 2 anos e 11 meses de idade, de cor branca, natural de São Paulo /SP. É da sexta gestação de uma prole de quatro filhos. A mãe teve dois filhos natimortos devido à desidratação.
A paciente nasceu a termo (idade gestacional de 37 1/ 7 semanas - Capurro), de parto normal, pesando 3.185 gramas. Teve anemia hemolítica por incompatibilidade Rh. Necessitou de fototerapia e de duas transfusões ex-sangüíneas. Fez uso de ototóxico por 14 dias (Amicacina e Vancoinicina). Permaneceu 18 dias em incubadora.
Com um mês de idade, a paciente foi submetida à triagem auditiva comportamental, realizada pela Disciplina de Distúrbios da Audição, junto à Disciplina de Pediatria e Puericultura da UNIFESP. Nesta triagem, a criança apresentou ausência de reflexo cócleo-palpebral para sons de 100 decibels, nível de pressão sonora (dB NPS), tendo sido encaminhada, então, para avaliação audiológica completa no Setor de Audiologia Infantil. Na avaliação audiológica, a criança apresentou presença de EOAE transitórias e ausência de ABR bilateralmente a 130 dB NPS, permanecendo com ausência de reflexo cócleo-palpebral para sons intensos, compatível com diagnóstico de neuropatia auditiva.
QUADRO 1 - Acompanhamento Multidisciplinar de E.C.G.
Legenda (Quadro 1): RCP = Reflexo Cócleo-Palpebral; EOAE = Emissões Otoacústicas Evocadas; dB NPS = decibel nível ele pressão sonora; ABR = Potenciais Auditivos Evocados elo Tronco Encefálico; MT= membrana timpânica; LI. = localização lateral; LI) = localização direta: LI = localização indireta; ARV = Auclornetria com Reforço Visual; OD = orelha direita; OE = orelha esquerda; KHz = Kilo Hertz; ATL = Audiometria Tonal Liminar; AA = avaliação audiológica.
QUADRO 2 - indicadores de risco associados a alteração auditiva7.
NEONATOS ATÉ 28 DIAS
1. História familiar de perda auditiva neurossensorial hereditária.
2. Infecção congênita (Toxoplasmose, Rubéola, Citomegalovírus, Herpes, Sífilis).
3. Anomalias craniofaciais.
4. Peso ao nascimento inferior a 1500 gramas.
5. Hiperbilirrubinemia em níveis excedendo a indicação para ex-sangüíneo transfusão.
6. Mediação ototóxica (aminoglicosídeos, principalmente associado a diuréticos).
7. Meningite bacteriana.
8. APGAR 0 a 4/ 1° minuto e 0 a 6/ 5° minuto.
9. Ventilação mecânica por 5 dias ou mais.
10. Sinais sindrômicos.
NEONATOS DE 29 DIAS ATÉ 2 ANOS
1. Suspeita dos familiares de atraso no desenvolvimento da audição, fala e linguagem.
2. Meningite bacteriana e outras infecções associadas a perda auditiva neurossensorial.
3. Trauma craniano com perda de consciência ou fratura de crânio.
4. Sinais sindrômicos.
5. Medicamentos ototóxicos (quimioterápicos ou aminoglicosídeos, principalmente em combinação com diuréticos).
6. Otite média recorrente ou persistente por mais de 3 meses.
CRIANÇAS DE 6 MESES A 3 ANOS
o Indicadores associados a perda auditiva neurossensorial:
1. História familiar de deficiência auditiva hereditária.
2. Infecções congênitas.
3. Neurofibromatose tipo II e doenças degenerativas.
o Indicadores associados a perda auditiva condutiva:
1. Otite média recorrente ou persistente.
2. Deformidades anatômicas e doenças que afetam a função tubária.
3. Doenças neurodegenerativas.
Desde então, a paciente passou a ser acompanhada por equipe multidisciplinar composta por fonoaudiólogo, otorrinolaringologista, pediatra e neurologista. Nos ambulatórios de Distúrbios da Comunicação Humana e Distúrbios da Audição, foram realizadas avaliações audiológicas periódicas e orientação familiar em relação aos aspectos auditivos, de fala e linguagem.
O Quadro 1 descreve o acompanhamento multidisciplinar da paciente.
DISCUSSÃOA prevalência de alteração auditiva em recém-nascidos sem intercorrências (1:1.000) eleva-se para 10:1.000 em recémnascidos com fator de risco para perda auditiva7.
Os dados do prontuário hospitalar da criança em estudo permitem classificá-la como de alto risco para alteração auditiva, de acordo com o Joint Conimittee on Infant Hearing 1994 (Quadro 2).
Desde 1987, vimos desenvolvendo uni programa de triagem auditiva na UNIFESP, com o objetivo de identificar precocemente alterações auditivas periféricas ou centrais, de forma a permitir uma intervenção imediata. O protocolo de triagem auditiva inclui a pesquisa do reflexo cócleo-palpebral para sons de 100 dB NPS e das medidas das EOAE transitórias2. Tal protocolo é recomendado pelo Comitê Brasileiro Sobre Perdas Auditivas na Infância5.
A criança em estudo foi encaminhada para a realização de unia avaliação audiológica completa, por ter apresentado, na triagem auditiva, ausência de reflexo cócleo-palpebral. Como-o reflexo cócleo-palpebral ocorre em mais de 90% dos recém-nascidos ouvintes1, a sua ausência implica em suspeita de alteração auditiva.
Nos últimos anos, com o avanço tecnológico, as medidas das EOAE transitórias foram incluídas na bateria de testes audiológicos infantis9, como um método objetivo de avaliar a presença das CCE da cóclea. As EOAE transitórias presentes na audição da criança indicaram, portanto, função coclear preservada.
O ABR é particularmente útil para identificar alteração da sincronia neural, desde a porção distal do nervo auditivo até o tronco encefálico4, 8. A criança em estudo apresentou ausência ele respostas a 130 dB NPS neste teste.
O caso apresentou as características descritas na literatura consideradas essenciais para o diagnóstico de neuropatia auditiva - EOAE presentes e ABR ausentes6, 10. O diagnóstico realizado nos primeiros dois meses de vida possibilitou uma intervenção precoce, com orientação familiar e acompanhamento do desenvolvimento da fala e da linguagem.
Estudos recentes11 têm demonstrado a relevância da intervenção fonoaudiológica antes dos seis meses de vida, devido à plasticidade e maturação do sistema nervoso central, no prognóstico do desenvolvimento da linguagem. Crianças que tiveram a alteração auditiva diagnosticada no primeiro semestre de vida apresentam desenvolvimento cognitivo, da fala e linguagem muito superior ao daquelas identificadas após este período. Além disso, com intervenção antes cios seis meses de vida, a dinâmica familiar é preservada, reduzindo o stress materno e a culpa que freqüentemente os pais sentem quando o diagnóstico é tardio11.
De fato, a terapia fonoaudiológica instituída já no primeiro ano de vida vem possibilitando uma evolução das habilidades lingüísticas e auditivas da criança, que pode ser observada no Quadro 1.
COMENTÁRIOS FINAISMostrou-se fundamental a realização da bateria completa de testes audiológicos em recém-nascidos de risco, incluindo EOAE, ABR e avaliação comportamental.
Este caso revela a importância da avaliação multidisciplinar realizada em berçário, pois houve a identificação precoce da neuropatia auditiva, possibilitando a intervenção multidisciplinar no primeiro ano de vida, período crítico de maturação e plasticidade do sistema nervoso central.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. AZEVEDO, M. F.; VIEIRA, R. M. & VILANOVA, L. C. P. - Desenvolvimento auditivo de crianças; e de alto risco. São Paulo, Plexus, 1995.
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* Fonoaudióloga com Especialização em Distúrbios da Comunicação Humana-Campo: Fonoaudiológico, para Fonoaudiológos, na Universidade Federal de São Paulo, e Especialização em Distúrbios da Comunicação Humana-Área: Audiologia, na Universidade Federal de São Paulo.
** Fonoaudióloga com Especialização em Distúrbios da Comunicação Humana-Campa: Fonoaudiológico, para Fonoaudiológos, na Universidade Federal de São Paulo.
*** Fonoaudióloga. Professora Adjunto da Disciplina de Distúrbios da Audição do Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana, da Universidade Federal de São Paulo.
**** Fonoaudióloga. Professora Adjunta da Disciplina de Distúrbios da Comunicação Humana do Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana, da Universidade Federal de São Paulo.
Instituição: Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo.
Endereço para correspondência: Cristiana Rodrigues Belo Abe - Rua Amadeu Gamberini, 208 - 08010-110 São Paulo/ SP - Telefone: (0xx11) 6137-7225.
Artigo recebido em 16 de setembro de 1999. Artigo aceito em 28 de setembro de 2000.