ISSN 1806-9312  
Terça, 30 de Abril de 2024
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253 - Vol. 3 / Edição 1 / Período: Janeiro - Fevereiro de 1935
Seção: - Páginas: 27 a 31
ESTENOSE DA LARINGE POR GOMA. CURA CIRÚRGICA (LARINGO-FISSURA) (1)
Autor(es):
DR. ROBERTO OLIVA. (Oto-rino-laringologista da Santa Casa de S. Paulo)

A correção das cicatrizes viciosas, pela sua tendencia ás recidivas, constitue, na cirurgia plastica, uma dificuldade de monta. E ainda mais se reforça esse asserto, quando elas se localizam em órgãos cuja função não permite a pratica de metodos profilaticos, como as vias aéreas superiores.

O tecido conjuntivo, em sua exuberancia proliferativa, consegue em breve prazo refazer o estado anterior e ás vezes tornando mais desfavoravel ainda a função do órgão, sobre o qual se assestára.

Por esse motivo, deante de um problema de tal ordem, não pode o especialista predizer o tempo que demorará o tratamento, e mesmo se este será coroado de sucesso; é indispensavel porém, alem de engenho e arte, sobretudo perseverança por parte do medico e muita paciencia do lado do doente.

Corroborando, em parte, o que acima ficou dito, esteve o nosso doente pacientemente em tratamento, durante perto de quatro anos, mas contrariando a grande quantidade de insucessos, sarou quasi totalmente.

E tambem em vista dessa cura cirurgica, que resolvemos comunicar este caso, pois nada mais se deve mencionar aqui como digno de registo.

Trata-se de um doente portador de afecção luética da glote e que em seu progredir, obliterou-a quasi totalmente.

E mesmo a sifilis uma das causas mais frequentes de estenose da laringe, principalmente nos adultos. E a glote, por ser o ponto mais angustiado do trato respiratorio e tambem o mais sujeito a traumatismos, por sua propria função, é a séde de predileção para afecções dessa natureza.

A sifilis ataca a laringe sob as seguintes formas mais comuns: catarro agudo e cronico, pápula e condiloma, ulceração simples, goma granulosa e infiltrativa, ulceração gomosa, pericondrite, abcesso ou necrose da cartilagem, finalmente sob a forma de cicatriz diafragmatica.

As pericondrites das aritenoides e tambem da cricoide, são, na sífilis, as causas mais frequentes de estenoses. Do mesmo modo podem os edemas passageiros ou cronicos, por meio de pericondrites ou ulcerações, obliterar a laringe.

Uma cicatriz é sempre a resultante de uma inflamação ou ulceração. Daí se depreende a grande variedade de molestias que podem provocar a estenose, alem da lues: difteria, tifo, tuberculose e lupus, papilomas, tumores, escleroma, pênfigo, edema de Quincke ou urticaria magna e até a influenza.

Mann cita um caso que se nos afigura interessantissimo de mixedema da laringe; a descripção do quadro da laringe é quasi identico ao do nosso doente e o tratamento especifico fez regredir as lesões.

H. Cordeiro tratou e curou um caso de estenose luetica, por meio de dilatação progressiva.

O nosso observado, alem da lesão principal, a sífilis, obliterante da glote, apresentava outro sério problema a resolver, qual era o porte ha longo tempo de canula traqueal, cuja retirada, ás vezes, oferece grandes dificuldades.

Após estas ligeiras notas que nos ocorreram mencionar a respeito do caso em apreço, passemos á sua observação, abandonando detalhes, que não nos mereceram a atenção:

Rosalino M. com 33 anos de idade, brasileiro, solteiro, residente em Penapolis, procurou o serviço do Dr. Schmidt Sarmento, na Santa Casa, em fins de janeiro de 1931. Queixa: desde cerca de um mês, sente suas pernas inchadas, ao mesmo tempo que se lhe tornou dolorosa a deglutição e rouca a voz. A disfagia ligava o doente a uma ulceração situada na lingua. Nos antecedentes pessoais consta cancro inicial ha cêrca de 18 anos.

Exame do doente: ulceração rasa, de bordos talhados a pique, de superficie lisa, vermelha, ocupando o terço posterior da lingua e atingindo sua base em quasi toda a sua extenção. A epiglote achava-se livre de qualquer lesão. As aritenoides estavam infiltradas e constituiam com as falsas cordas e talvez com as verdadeiras, um todo de côr avermelhada. Essa massa tumoral tinha a espessura comparavel a um dedo mínimo e apresentava, nas aritenoides, bem como em sua parte média, protuberancias do tamanho de lentilhas. Os movimentos fonatorios e respiratorios achavam-se muito diminuidos. Ligeira adenopatía cervical.

Tanto a lesão da lingua, como a da laringe fizeram suspeitar a lues, o que foi confirmado pela reação de Wassermann, fortemente positiva. O tratamento especifico foi iniciado sem demora, consistindo em injeções de neo-salvarsan em numero de 12 e muitas outras de Bi e Hg.

Poucos dias após sua internação, a voz do doente se tornou mais rouca e a respiração extremamente dificil, obrigando a pratica de uma traqueotomia de urgencia. O exame da laringe, praticado alguns dias após a operação, denunciou fixidez do órgão, bem como soldadura das hemi-laringes. A lesão da lingua dentro de pouco tempo cicatrizou-se.

A seguir, partiu o nosso doente para o interior onde se demorou cerca de quatro meses, tendo lá tomado 12 injeções de 914 alem de 25 de Bi.

Por occasião de sua volta para esta Capital, examinamo-lo de novo, tendo encontrado sua laringe no mesmo estado anterior.

Tentamos por diversos meios romper as aderencias do órgão, com galvano-cauterio, saca-bocado, dilatadores, sem nada conseguir de apreciavel. Resolvemos então praticar uma tirotomia, o que foi feito no dia 17 de agosto de 1933. Antes porém retirámos material para exame histopatologico, que deu o seguinte resultado: inflamação cronica sem carater especifico. Wassermann negativo.

A tirotomia decorreu sob anestesia local, tipicamente, sem incidentes, na qual foi usado o bisturí electrico, que empregámos pela primeira vez. Aberta a laringe, fizemos a diatermo-coagulação da glote, separando as aderencias oclusivas do órgão. A operação terminou-se com o fechamento da ferida e permanencia da canula traqueal. Cessada a reação inflamatoria, e a cicatrização da ferida, iniciámos nova série de dilatações com sondas metalicas, curvas, tipo Schroetter, das quais conseguimos passar até o numero 5. Infelizmente essa primeira operação não teve o sucesso desejado, pois o doente era ainda obrigado a usar a canula. Todavia as aderencias da glote não eram já tão intensas e os dilatadôres passavam até abaixo da fistula traqueal, mas apenas eram eles retirados, voltava o estado anterior. O doente achava no entanto que havia melhorado um pouco na sua voz, que era mais clara, bem como na respiração; sentia passar pequena quantidade de ar pelo nariz.

Passados cerca de 14 meses após a tirotomia, resolvemos intervir de novo, mas de modo mais amplo. Essa operação foi praticada no dia 2 de outubro de 1934. Aberta de novo a laringe, com bisturi eletrico e sob anestesia local, desfizemos mais amplamente as aderencias da glote, prolongamos a incisão até abaixo da fistula traqueal, substituimos a canula por um tubo de borracha e removemos e cauterizamos as granulações da traquéa, provocadas pela canula, que já aí permanecia ha perto de quatro anos. Esta operação diferiu da primeira, pois foi feita uma verdadeira laringo-fissura, que permaneceu aberta, com uma sonda em T de metal, sendo que um dos ramos penetrava na traquéa, outro na laringe e o outro exteriormente. Essa sonda facilmente desmontavel, foi retirada passado algum tempo, pois a brecha operatoria com a sua cicatrização, não permitia mais a sua aplicação. Foi ela então substituída pela antiga sondá de Luer. Nessa ocasião, já era possivel passar os dilatadôres de Schroetter mais calibrosos.

Finalmente o proprio doente sentindo a desnecessidade da sonda traqueal, retirou-a ha cinco dias, e hoje respira normalmente durante o dia, sentindo ligeira dispnéa ao esforço. A sua voz acha-se tambem suficientemente clara.

O estado atual da laringe é o seguinte: movimentos bastante amplos, embora ainda não perfeitamente normais; as aritenoides acham-se tumefeitas, bem como as falsas e as cordas verdadeiras, mas completamente independentes das do lado oposto.

Interessante foi a facilidade com que se fechou a fistula traqueal; vimos o doente um dia após a retirada da canula e a cicatrização já era quasi completa.

Epicrise. - Dentre as doenças apontadas no inicio deste trabalho, somos capazes de provocar estenose da laringe, nenhuma se enquadra tão justamente no nosso caso, como a lues. O aspecto clinico do órgão, a ulceração extensa da lingua, o Wassermann fortemente positivo, dispensam o diagnostico diferencial. A historia do doente refere doença venerea com os caracteristicos do cancro inicial. O tratamento especifico energico, se não conseguiu fazer regredir totalmente as lesões, fez estacioná-las em estado de reliquats e por isso mesmo irredutiveis.

A ulceração da língua cicatrizou-se rapidamente, permanecendo ainda, bem visível, a cicatriz.

De todas as modalidades clinicas da sifilis, parece-nos enquadrar melhor no nosso caso, a infiltração gomosa. Sabe-se que esse processo luetico costuma infiltrar enormemente a glote, pondo em contacto as hemi-laringes, donde a erosão ou ulceração, que posteriormente provocará a cicatrização viciosa.

A terapeutica não podia deixar de ser aquela de que lançamos mão. A principio tratamento medico, acompanhado de pequenas intervenções tendentes a abrir brecha na laringe estenosada; mais tarde, a tirotomia e finalmente a laringo-fissura.

Justifica-se essa resolução por assim dizer tardia na pratica da laringo-fissura. E operação senão de manejo difícil, de resultados problematicos e ainda mais, de taxa letal bastante elevada. Sargnon assinala 4% de mortes; Fundstroem em 83 casos operados, sendo 73 laringo-fissuras e 10 tirotomias, teve 7 mortes; essas mortes recaíram 6 sobre os operados de laringo-fissura e 1 sobre os tirotomizados. Pondo de parte os casos de morte, os insucessos são tambem apontados em grande escala. Dos 73 operados por Fundstroem apenas 49 sararam. Schroetter diz a respeito da laringo-fissura: a excisão do tecido cicatricial, dá, no momento, otimo resultado, mas o estreitamento sobrevem em breve prazo e em grau mais elevado. A opinião de Balatier é a seguinte: a laringo-fissura é seguida frequentemente de recidivas; uma nova intervenção estaria votada a insucesso. Gottstein é partidario da dilatação não sangrenta e diz que na maioria dos casos os doentes operados de laringo-fissura, estão condenados a trazer a canula para o resto da vida, além da perspetiva de uma voz pior.

Quasi todos os autores referem-se a uma grande desvantagem da laringo-fissura: a perda da voz. Mas esse fato não pode condenar a operação, porque esta se propõe a curar a estenose e alem disso a voz já se acha comprometida.

É bem explicavel por conseguinte o receio que sempre nos assaltou cada vez que figuramos a necessidade da laringo-fissura.

O bisturi eletrico deve ser usado sempre nas operações das vias aereas, mormente quando houver perigo de penetração de sangue nos bronquios. A sua incisão é por assim dizer exangue e quando um vaso mais calibroso é seccionado, a hemorragia é dominada com pinçamento seguido de diatermo-coagulação. Alem dessa vantagem, o bisturi eletrico secciona com certa facilidade a cartilagem tireoide, o que em muitos casos é de pratica difícil, em vista de sua grande resistencia, demandando tesoura especial.

Outro ponto que merece ser anotado, é a aplicação na traquéa, durante a operação, de um tubo de borracha, em substituição á canula. Esse tubo permite uma respiração bôa, ao mesmo passo que impede a entrada de sangue nos bronquios.

As melhoras obtidas pelo nosso observado e que se acentuam nestes ultimos dias, aliás de acôrdo com o estado satisfatorio de sua laringe, observado por todos os colegas que o examinaram, permite-nos confiar em que sua cura será um fato definitivo.

NOTA: - Este doente foi visto de novo 5 meses após a operação e a cura se mantem.

RESUMÉ:

Dr. ROBERTO OLIVA - Sténose du larynx par gomme syphilitique. Laryngo-fissure. Guérison.

L'A. présente le cas d'un homme de 33 ans, syphilitique, que se plaignait d'enrouément et dysphagie. 28. 1. 1931 - Examen: Ulcération espécifique du tiers postérieur de la langue; infiltration rougeâtre des arythnoides, masses vegétantes au niveau des fausses cordes. Epiglotte, libre. Wassermann: fortérnent positif. Traitément especifique (Hg, Bi et Neosalvarsan). Quelques jours plus tard, tracheotomie d'urgence. Par la laryngoscopie, on avait l'impression de la soudure des 2 hemi-larynx. Plusieurs tentatives pour désobstruction de la glotte: thermocautèrisations, dilatations, petites opérations endo-laryngiennes, sans succès. Le malade est obligé de garder sa canule.

17. 8. 1933 - 1.e opération: tirotomie, au couteau diathermique. Après cicatrisation, dilations de la glotte avec sondes metalliques courbes, type Schroetter. Malgré tout, le malade ne pouvait pas encorese débarasser de sa canule.

2. 1. 1934 - 2.e opération: laringo-fissure (couteau diathermique) ample, incision jusqu'à la fistule trachéale; cautérisation des granulations produites par la langue durée de la canule; placernent d'une canule en T. Quelques temps après on retire la canule. La cicatrisation de la plaie est compléte. Présentement le malade respire très bien, sans canule. Guérison de la stenóse.

(1) Comunicação apresentada á Secção do Oto-rino-laringologia da Associação Paulista de Medicina, em 17 de Dezembro de 1934.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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